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Flavio Mendes (Bossa Nova), O Pato (João Gilberto), O ARRANJO #22 (English subtitles)

O Pato (João Gilberto), O ARRANJO #22 (English subtitles)

João Gilberto tinha ficado horas ensaiando a canção O Pato e quando levantou e abriu a janela para respirar o ar fresco

o seu gato se jogou pela janela por não aguentar mais ouvir aquela música

Essa é apenas mais uma das várias lendas sobre João Gilberto e um dos seus grandes sucessos, O Pato

Em Março de 1960 João Gilberto estava no estúdio gravando o seu segundo disco quando recebeu um telefonema da sua mulher, Astrud

O gato do casal, chamado de Gato, havia caído da janela, e o andar era muito alto

João abandonou a gravação e ainda levou o gato com vida ao veterinário, mas ele não resistiu

Ainda no estúdio os músicos criaram a lenda que, de tão repetida, quase virou verdade:

Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem vindo

Se você está gostando de assistir aos episódios pense na possibilidade de apoiar O ARRANJO,

e assim ajudar a que eu continue a fazer os programas

A contribuição começa com apenas 10 reais

Maiores informações em apoia.se/oarranjo, e se você mora fora da Brasil acesse patreon.com/oarranjo

O Pato é uma composição de Jayme Silva e Neusa Teixeira

e foi gravada pela primeira vez por João Gilberto em seu segundo disco

A música fazia parte do repertório do grupo vocal Garotos da Lua,

um dos muitos grupos vocais que existiam no Rio de Janeiro no fim dos anos 1940

O cantor principal do conjunto, ou o crooner, como se falava na época era o pernambucano Jonas Silva,

que tinha saído de Recife em um caminhão pau-de-arara com os amigos Milton e Miguel

com destino à então capital federal, Rio de Janeiro

No caminho pararam em Salvador e dois baianos, Alvinho e Acyr, se juntaram ao grupo - estava formado o Garotos da Lua

Chegaram no Rio em 1946, exatamente no ano em que o presidente Dutra fechou os cassinos,

o que diminuiu muito o campo de trabalho para os músicos e conjuntos

Depois de um ano de muitas dificuldades foram contratados por uma rádio importante, a Rádio Tupi

Jonas Silva era um excelente crooner mas a sua voz pequena estava fora dos padrões da época

O diretor artístico da Rádio Tupi, o jornalista e compositor Antônio Maria,

achava que o grupo cantava sussurrado pra não cantar mais alto que o seu crooner,

e que então o grupo não tinha volume de som suficiente

Maria deu um ultimato: ou mudam o crooner ou serão demitidos

Um dos baianos, Alvinho, se lembrou de um cantor que ele conheceu em Salvador,

que tinha uma boa voz e cantava com um bom volume: João Gilberto

João cantou muitas vezes O Pato com os Garotos da Lua,

na rádio e em shows, mas o grupo nunca gravou a música

João gravou o samba 10 anos depois e virou um sucesso instantâneo,

o que animou o compositor Jayme Silva a mostrar outras músicas suas para João Gilberto

João ouviu mas não se animou: eram todas na mesma linha Mundo Animal: A Vaca, O Marreco, O Sapo... e nada era tão bom

Com arranjo de Tom Jobim, é a versão de O Pato gravada no disco O amor, o sorriso e a flor de João Gilberto,

de 1960 que eu vou analisar nesse vídeo

UM POUCO DE HISTORIA

A consagração definitiva da Bossa Nova começou quando a revista O Cruzeiro resolveu fazer uma grande matéria

com a música jovem, nova, que estava surgindo

O Cruzeiro era a maior revista do Brasil, com circulação nacional, vendia 700 mil exemplares por semana,

estar nas suas páginas era a glória

Para fazer a matéria a revista reuniu na casa do pianista Bené Nunes, na gávea,

todos os compositores e músicos do movimento, e convidou Ary Barroso para representar a velha guarda,

era o grande compositor do Brasil dando o seu aval para os jovens músicos

E Ary Barroso realmente gostou da Bossa Nova desde o começo, ao contrário de muitos dos seus contemporâneos,

mas era um artista da geração anterior, a que tava passando a ser considerada antiquada

No apartamento de Bené Nunes, cercado por toda a Bossa Nova, Ary perguntou: afinal, o que é Bossa Nova?

Bôscoli foi o único que respondeu, e a sua resposta ficou conhecida: Bossa Nova é um estado de espírito

Era o ano de 1959, o ano de lançamento do disco Chega de Saudade, de João Gilberto,

considerado o marco de lançamento da Bossa Nova

A partir desse disco João começou a fazer shows e ganhar algum dinheiro e sair da sua condição de eterno durango

Roberto Menescal conta que quando conheceu João, em 1957,

ele morava em um quarto alugado no apartamento de uma senhora em copacabana,

mas ele dividia o quarto com mais 5 caras

Morou ainda de favor na casa de amigos como Sérgio Ricardo, Tito Madi e Ronaldo Bôscoli

João foi parar no apartamento de Bôscoli depois de brigar com Tito Madi e ficar sem teto

Bôscoli já tinha ouvido falar em João Gilberto, diziam que era um cara maluco, que já tinha sido internado como louco,

usava cabelo grande e barba, e só saía de noite, meio vampiro,

mas que tocava um violão bem diferente e cantava diferente também

Mas o João que bateu na porta do apartamento não correspondia a essa descrição:

cabelo cortado, barba feita e, sim, um violão

Passou a noite inteira tocando e todos no apartamento ficaram encantados

Quando amanheceu o dia, já era mais um morador do apartamento

Um quarto e sala, que já abrigava, além do Bôscoli, Miéle, Chico Feitosa e um amigo deles

A vida de João começou a mudar também quando ele conheceu uma das meninas da turma que frequentava o apartamento da Nara Leão, Astrud

Astrud a princípio não se interessou por João Gilberto,

disse pro Ronaldo Bôscoli que ele não fazia o tipo dela, ela gostava de louros altos e fortes

Mas a resistência durou só até ele começar a jogar o charme pra cima dela e a dizer que ela deveria ser cantora

- o que realmente era um desejo secreto dela

Se casaram em pouco tempo, e aos 28 anos João Gilberto pagaria o primeiro aluguel da sua vida

O disco Chega de Saudade foi um marco para a Bossa Nova, mas não foi um disco pensado como um todo

Primeiro foi gravado um compacto com Chega de Saudade e Bim Bom,

depois outro compacto com Desafinado e Hôba-la-lá e só depois gravaram as outras músicas para preencher o resto do disco

Mas para o segundo disco Tom e João resolveram pensar todo o repertório do disco antes,

equilibrar entre músicas inéditas e as regravações que João fazia de canções praticamente desconhecidas

Era verão de 1960 e Tom estaria no sítio da família, na região serrana do Rio,

e acharam uma boa ideia o João subir a serra para eles trabalharem tranquilos

Choveu muito nesse verão, e Tom imaginou que João não conseguiria chegar, o caminho era de estrada de terra

Até que numa noite chega um trator rebocando o táxi com João e Astrud, que tinha atolado na estrada

O detalhe é que o táxi tinha atolado quando o João pediu pra parar porque tinha visto uma jararacuçu,

uma cobra enorme, e tinha resolvido matá-la - outros tempos, nada ecológicos

Quando chegou no sítio, abriu o porta-malas do carro pra mostrar pras crianças, os filhos do Tom, a linda cobra morta

Sobre essa temporada, Tom escreveu na contracapa do disco:

"Fugimos da sala onde brincavam as crianças presas pela chuva , fomos para um dos quartos vazios,

com forro de madeira, que aliás dá boa acústica

Lá, longe da cidade e do telefone, trabalhamos sossegados uns 10 dias"

No fim do texto, Jobim escreve: P.S. - as crianças adoraram o Pato

Quando ainda morava no minúsculo apartamento de Bôscoli

João se lembrou desse samba que cantava com o grupo Garotos da Lua

Nas palavras do jornalista Sérgio Cabral, a música era uma bobagem,

mas que permitia João Gilberto dar um show de ritmo, na voz e no violão

Para desespero de Bôscoli e dos demais moradores do apartamento,

João ensaiou a música exaustivamente, por seis meses

Uma das coisas que ele ensaiava era a emissão da sua voz:

ele saía do apartamento e pedia pro Bôscoli ficar na porta enquanto ele se afastava

cantando pra saber até que distância a voz ainda ficava audível sem aumentar o volume

Segundo o músico e professor de linguística Luiz Tatit,

João priorizava a sonoridade do texto em detrimento do sentido, da semântica

E isso fica claro nas próprias composições do João, Bim Bom e Hôba-la-lá,

em que as letras são quase surrealistas, cheias de onomatopeias criadas por João

E alcança o auge na sua canção Unidú, em que não há letra

Então uma letra quase infantil como a de O Pato não importava,

o que ele queira era exercitar toda a sua capacidade de sincopar e dividir de forma diferente

Carlos Lyra escreveu no seu livro "Eu & a Bossa" que até o início dos anos 1960 a Bossa Nova se caracterizou pela busca da forma, na melodia, na letra, na harmonia, no ritmo e na interpretação

O conteúdo era o mais lírico possível, era a fase do amor, do sorriso e da flor

Mas na sequência dos anos 60 outros tópicos surgiram com força,

como nacionalismo, realidade brasileira, justiça social e consciência política

Ainda segundo Carlos Lyra, se delinearam duas facções:

uma fiel à filosofia da forma e a outra comprometida com o conteúdo

Nesse momento, perto do golpe de 1964, Menescal e Bôscoli estavam no auge,

tudo o que compunham era gravado, segundo Menescal até as músicas ruins eram gravadas

"O Ronaldo um dia me chamou e falou, Beto, vamos tomar um café juntos

E falou 'olha, a barra está pesada', e eu digo: aconteceu alguma coisa com você?

'Não, está pesado é o clima que está na música

É música que na verdade nem importa muito a música, importa mais a letra do que a música,

que são as músicas de protesto

E nós não temos nada a ver com isso, nós somos dois alienados totais a isso que está acontecendo

A gente vive em Copacabana, na praia, então acho que a gente tinha que dar uma parada'

Mas Ronaldo, para e fazer o que? Eu vivo disso, de tocar e fazer as nossas músicas

'Beto, temos que parar, vamos dar uma hibernada, acho que daqui a dois anos a gente pode voltar a fazer as coisas'

Os dois anos viraram vinte"

Um momento de radicalização do conteúdo aconteceu no festival da canção de 1968,

com a música Caminhando e cantando, de Geraldo Vandré

A música é uma quase não-música, o que importava ali era a letra, a mensagem

A música tem dois acordes, e não importa mais o arranjo elaborado,

então é acompanhado só por um violão tocado propositalmente de forma simplória

Mas logo se encontrou o equilíbrio: da junção da forma com o conteúdo nasceu a MPB, a Música Popular Brasileira,

que abriu caminho pra chegada de uma geração incrível, de Chico Buarque, Caetano, Gil,

Francis Hime, Milton Nascimento, Dori Caymmi, Joyce, Edu Lobo e tantos outros

1. MELODIA O pato é um samba, e como todo samba tem uma melodia sincopada, ou seja,

as notas caem nos tempos fracos do compasso - é o balanço que caracteriza o samba

Mas algumas frases da música se aproximam da linguagem do choro,

com uma sequência grande de semicolcheias, sem síncopes

Outra característica marcante de o pato é o seu refrão: parece ser feito à medida para um grupo vocal,

como inclusive a letra sugere antes: pato, marreco, ganso e cisne ensaiando o vocal cantando "quém"

São notas repetidas em ataques curtos e sincopados

Com as vozes harmonizadas em um grupo vocal, soariam mais ou menos assim:

2. ORQUESTRAÇÃO João Gilberto revolucionou a forma de se tocar samba no violão, criou um estilo que foi seguido e até hoje é copiado,

mas ele também mudou a forma de se tocar um outro instrumento

Segundo o pesquisador Zuza Homem de Mello, João Gilberto interferiu decisivamente no modo de o baterista tocar samba

Na sua primeira gravação ele pediu para desmontarem toda a bateria e só ficou a caixa e os pratos de contratempo

Para tocar a caixa só escovinhas, ou vassouras, nada de baquetas,

e como o João gostava de uma levada mais cheia nas escovinhas o baterista dos seus primeiros disco, Juquinha,

usava as duas mãos pra fazer essa levada

Mas não sobrava mão pra tocar o aro e fazer o tec-tec-tec do ritmo,

então o percussionista Guarany usou tamboretes

que Aloysio de Oliveira tinha trazido dos estados unidos pra fazer o ritmo que João Gilberto indicava

"João não aceitava percussão nenhuma nas gravações dele. E então o que fazer? Vamos criar alguma coisa,

O Guarany pegou um instrumento chamado caixeta, que são tubos com couro em cima e fez aquele pac, pac, pac, o João adorou

Isso marca muito, qualquer bateirista do mundo vai tocar bossa nova fazendo isso,

e ninguém nunca falou que foi o Guarany que criou isso dentro do estúdio assim de supetão, e foi o que ficou, não teve jeito"

Além do ritmo com Juquinha e Guarany a gravação conta ainda com o violão do João Gilberto, o piano de Tom Jobim

e mais flauta, oboé, sax alto, clarone e um quarteto de violinos

Sempre usados com o máximo de economia, é claro, a marca registrada da orquestração da bossa nova

3. A FORMA DO ARRANJO A forma de o pato é AABCD, todas as partes com 8 compassos menos a parte D, que é o refrão, que tem 6 compassos

Nessa gravação, sucinta como eram as gravações do início da bossa nova, a música acontece duas vezes

Era uma busca estética, ou seja, pensando na forma, que as orquestrações fossem muito simples,

segundo João Gilberto as músicas pré bossa nova tinham violinos demais, orquestra demais

A gravação de O Pato não tem nem introdução, é o canto direto

Percebam a sonoridade da bateria com escovas e o ritmo na caixeta

Resposta do clarone no grave

Oboé fazendo uma segunda voz no "quém quém"

E agora acordes de violinos com a voz mais aguda em 3 notas descendentes cromáticas

Flauta e piano em uníssono em uma frase sincopada

Resposta no clarone

Sax e flauta tocam a mesma melodia com duas oitavas de diferença

Comentário do clarone cromático ascendente

Flauta e oboé em uníssono e sax uma terça abaixo

A resposta do clarone faz uma quinta justa descendente até a tônica do acorde

Os acordes dos violinos estão em posição fechada, as notas bem próximas umas das outras

Essa resposta do clarone também desce uma quinta justa até a tônica do acorde

Na coda, as respostas do clarone e a cama harmônica dos outros sopros

Sax em notas cromáticas seguindo a harmonia e flauta e oboé sempre nas mesmas notas

Bom, esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal,

E pense na possibilidade de apoiar o programa, a partir de apensa 10 reais

Acesse apoia.se/oarranjo, e se você morar fora do Brasil acesse patreon.com/oarranjo

Muito obrigado, até uma próxima

O Pato (João Gilberto), O ARRANJO #22 (English subtitles)

João Gilberto tinha ficado horas ensaiando a canção O Pato e quando levantou e abriu a janela para respirar o ar fresco

o seu gato se jogou pela janela por não aguentar mais ouvir aquela música

Essa é apenas mais uma das várias lendas sobre João Gilberto e um dos seus grandes sucessos, O Pato

Em Março de 1960 João Gilberto estava no estúdio gravando o seu segundo disco quando recebeu um telefonema da sua mulher, Astrud

O gato do casal, chamado de Gato, havia caído da janela, e o andar era muito alto

João abandonou a gravação e ainda levou o gato com vida ao veterinário, mas ele não resistiu

Ainda no estúdio os músicos criaram a lenda que, de tão repetida, quase virou verdade:

Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem vindo

Se você está gostando de assistir aos episódios pense na possibilidade de apoiar O ARRANJO,

e assim ajudar a que eu continue a fazer os programas

A contribuição começa com apenas 10 reais

Maiores informações em apoia.se/oarranjo, e se você mora fora da Brasil acesse patreon.com/oarranjo

O Pato é uma composição de Jayme Silva e Neusa Teixeira

e foi gravada pela primeira vez por João Gilberto em seu segundo disco

A música fazia parte do repertório do grupo vocal Garotos da Lua,

um dos muitos grupos vocais que existiam no Rio de Janeiro no fim dos anos 1940

O cantor principal do conjunto, ou o crooner, como se falava na época era o pernambucano Jonas Silva,

que tinha saído de Recife em um caminhão pau-de-arara com os amigos Milton e Miguel

com destino à então capital federal, Rio de Janeiro

No caminho pararam em Salvador e dois baianos, Alvinho e Acyr, se juntaram ao grupo - estava formado o Garotos da Lua

Chegaram no Rio em 1946, exatamente no ano em que o presidente Dutra fechou os cassinos,

o que diminuiu muito o campo de trabalho para os músicos e conjuntos

Depois de um ano de muitas dificuldades foram contratados por uma rádio importante, a Rádio Tupi

Jonas Silva era um excelente crooner mas a sua voz pequena estava fora dos padrões da época

O diretor artístico da Rádio Tupi, o jornalista e compositor Antônio Maria,

achava que o grupo cantava sussurrado pra não cantar mais alto que o seu crooner,

e que então o grupo não tinha volume de som suficiente

Maria deu um ultimato: ou mudam o crooner ou serão demitidos

Um dos baianos, Alvinho, se lembrou de um cantor que ele conheceu em Salvador,

que tinha uma boa voz e cantava com um bom volume: João Gilberto

João cantou muitas vezes O Pato com os Garotos da Lua,

na rádio e em shows, mas o grupo nunca gravou a música

João gravou o samba 10 anos depois e virou um sucesso instantâneo,

o que animou o compositor Jayme Silva a mostrar outras músicas suas para João Gilberto

João ouviu mas não se animou: eram todas na mesma linha Mundo Animal: A Vaca, O Marreco, O Sapo... e nada era tão bom

Com arranjo de Tom Jobim, é a versão de O Pato gravada no disco O amor, o sorriso e a flor de João Gilberto,

de 1960 que eu vou analisar nesse vídeo

UM POUCO DE HISTORIA

A consagração definitiva da Bossa Nova começou quando a revista O Cruzeiro resolveu fazer uma grande matéria

com a música jovem, nova, que estava surgindo

O Cruzeiro era a maior revista do Brasil, com circulação nacional, vendia 700 mil exemplares por semana,

estar nas suas páginas era a glória

Para fazer a matéria a revista reuniu na casa do pianista Bené Nunes, na gávea,

todos os compositores e músicos do movimento, e convidou Ary Barroso para representar a velha guarda,

era o grande compositor do Brasil dando o seu aval para os jovens músicos

E Ary Barroso realmente gostou da Bossa Nova desde o começo, ao contrário de muitos dos seus contemporâneos,

mas era um artista da geração anterior, a que tava passando a ser considerada antiquada

No apartamento de Bené Nunes, cercado por toda a Bossa Nova, Ary perguntou: afinal, o que é Bossa Nova?

Bôscoli foi o único que respondeu, e a sua resposta ficou conhecida: Bossa Nova é um estado de espírito

Era o ano de 1959, o ano de lançamento do disco Chega de Saudade, de João Gilberto,

considerado o marco de lançamento da Bossa Nova

A partir desse disco João começou a fazer shows e ganhar algum dinheiro e sair da sua condição de eterno durango

Roberto Menescal conta que quando conheceu João, em 1957,

ele morava em um quarto alugado no apartamento de uma senhora em copacabana,

mas ele dividia o quarto com mais 5 caras

Morou ainda de favor na casa de amigos como Sérgio Ricardo, Tito Madi e Ronaldo Bôscoli

João foi parar no apartamento de Bôscoli depois de brigar com Tito Madi e ficar sem teto

Bôscoli já tinha ouvido falar em João Gilberto, diziam que era um cara maluco, que já tinha sido internado como louco,

usava cabelo grande e barba, e só saía de noite, meio vampiro,

mas que tocava um violão bem diferente e cantava diferente também

Mas o João que bateu na porta do apartamento não correspondia a essa descrição:

cabelo cortado, barba feita e, sim, um violão

Passou a noite inteira tocando e todos no apartamento ficaram encantados

Quando amanheceu o dia, já era mais um morador do apartamento

Um quarto e sala, que já abrigava, além do Bôscoli, Miéle, Chico Feitosa e um amigo deles

A vida de João começou a mudar também quando ele conheceu uma das meninas da turma que frequentava o apartamento da Nara Leão, Astrud

Astrud a princípio não se interessou por João Gilberto,

disse pro Ronaldo Bôscoli que ele não fazia o tipo dela, ela gostava de louros altos e fortes

Mas a resistência durou só até ele começar a jogar o charme pra cima dela e a dizer que ela deveria ser cantora

- o que realmente era um desejo secreto dela

Se casaram em pouco tempo, e aos 28 anos João Gilberto pagaria o primeiro aluguel da sua vida

O disco Chega de Saudade foi um marco para a Bossa Nova, mas não foi um disco pensado como um todo

Primeiro foi gravado um compacto com Chega de Saudade e Bim Bom,

depois outro compacto com Desafinado e Hôba-la-lá e só depois gravaram as outras músicas para preencher o resto do disco

Mas para o segundo disco Tom e João resolveram pensar todo o repertório do disco antes,

equilibrar entre músicas inéditas e as regravações que João fazia de canções praticamente desconhecidas

Era verão de 1960 e Tom estaria no sítio da família, na região serrana do Rio,

e acharam uma boa ideia o João subir a serra para eles trabalharem tranquilos

Choveu muito nesse verão, e Tom imaginou que João não conseguiria chegar, o caminho era de estrada de terra

Até que numa noite chega um trator rebocando o táxi com João e Astrud, que tinha atolado na estrada

O detalhe é que o táxi tinha atolado quando o João pediu pra parar porque tinha visto uma jararacuçu,

uma cobra enorme, e tinha resolvido matá-la - outros tempos, nada ecológicos

Quando chegou no sítio, abriu o porta-malas do carro pra mostrar pras crianças, os filhos do Tom, a linda cobra morta

Sobre essa temporada, Tom escreveu na contracapa do disco:

"Fugimos da sala onde brincavam as crianças presas pela chuva , fomos para um dos quartos vazios,

com forro de madeira, que aliás dá boa acústica

Lá, longe da cidade e do telefone, trabalhamos sossegados uns 10 dias"

No fim do texto, Jobim escreve: P.S. - as crianças adoraram o Pato

Quando ainda morava no minúsculo apartamento de Bôscoli

João se lembrou desse samba que cantava com o grupo Garotos da Lua

Nas palavras do jornalista Sérgio Cabral, a música era uma bobagem,

mas que permitia João Gilberto dar um show de ritmo, na voz e no violão

Para desespero de Bôscoli e dos demais moradores do apartamento,

João ensaiou a música exaustivamente, por seis meses

Uma das coisas que ele ensaiava era a emissão da sua voz:

ele saía do apartamento e pedia pro Bôscoli ficar na porta enquanto ele se afastava

cantando pra saber até que distância a voz ainda ficava audível sem aumentar o volume

Segundo o músico e professor de linguística Luiz Tatit,

João priorizava a sonoridade do texto em detrimento do sentido, da semântica

E isso fica claro nas próprias composições do João, Bim Bom e Hôba-la-lá,

em que as letras são quase surrealistas, cheias de onomatopeias criadas por João

E alcança o auge na sua canção Unidú, em que não há letra

Então uma letra quase infantil como a de O Pato não importava,

o que ele queira era exercitar toda a sua capacidade de sincopar e dividir de forma diferente

Carlos Lyra escreveu no seu livro "Eu & a Bossa" que até o início dos anos 1960 a Bossa Nova se caracterizou pela busca da forma, na melodia, na letra, na harmonia, no ritmo e na interpretação

O conteúdo era o mais lírico possível, era a fase do amor, do sorriso e da flor

Mas na sequência dos anos 60 outros tópicos surgiram com força,

como nacionalismo, realidade brasileira, justiça social e consciência política

Ainda segundo Carlos Lyra, se delinearam duas facções:

uma fiel à filosofia da forma e a outra comprometida com o conteúdo

Nesse momento, perto do golpe de 1964, Menescal e Bôscoli estavam no auge,

tudo o que compunham era gravado, segundo Menescal até as músicas ruins eram gravadas

"O Ronaldo um dia me chamou e falou, Beto, vamos tomar um café juntos

E falou 'olha, a barra está pesada', e eu digo: aconteceu alguma coisa com você?

'Não, está pesado é o clima que está na música

É música que na verdade nem importa muito a música, importa mais a letra do que a música,

que são as músicas de protesto

E nós não temos nada a ver com isso, nós somos dois alienados totais a isso que está acontecendo

A gente vive em Copacabana, na praia, então acho que a gente tinha que dar uma parada'

Mas Ronaldo, para e fazer o que? Eu vivo disso, de tocar e fazer as nossas músicas

'Beto, temos que parar, vamos dar uma hibernada, acho que daqui a dois anos a gente pode voltar a fazer as coisas'

Os dois anos viraram vinte"

Um momento de radicalização do conteúdo aconteceu no festival da canção de 1968,

com a música Caminhando e cantando, de Geraldo Vandré

A música é uma quase não-música, o que importava ali era a letra, a mensagem

A música tem dois acordes, e não importa mais o arranjo elaborado,

então é acompanhado só por um violão tocado propositalmente de forma simplória

Mas logo se encontrou o equilíbrio: da junção da forma com o conteúdo nasceu a MPB, a Música Popular Brasileira,

que abriu caminho pra chegada de uma geração incrível, de Chico Buarque, Caetano, Gil,

Francis Hime, Milton Nascimento, Dori Caymmi, Joyce, Edu Lobo e tantos outros

1\. MELODIA O pato é um samba, e como todo samba tem uma melodia sincopada, ou seja,

as notas caem nos tempos fracos do compasso - é o balanço que caracteriza o samba

Mas algumas frases da música se aproximam da linguagem do choro,

com uma sequência grande de semicolcheias, sem síncopes

Outra característica marcante de o pato é o seu refrão: parece ser feito à medida para um grupo vocal,

como inclusive a letra sugere antes: pato, marreco, ganso e cisne ensaiando o vocal cantando "quém"

São notas repetidas em ataques curtos e sincopados

Com as vozes harmonizadas em um grupo vocal, soariam mais ou menos assim:

2\. ORQUESTRAÇÃO João Gilberto revolucionou a forma de se tocar samba no violão, criou um estilo que foi seguido e até hoje é copiado,

mas ele também mudou a forma de se tocar um outro instrumento

Segundo o pesquisador Zuza Homem de Mello, João Gilberto interferiu decisivamente no modo de o baterista tocar samba

Na sua primeira gravação ele pediu para desmontarem toda a bateria e só ficou a caixa e os pratos de contratempo

Para tocar a caixa só escovinhas, ou vassouras, nada de baquetas,

e como o João gostava de uma levada mais cheia nas escovinhas o baterista dos seus primeiros disco, Juquinha,

usava as duas mãos pra fazer essa levada

Mas não sobrava mão pra tocar o aro e fazer o tec-tec-tec do ritmo,

então o percussionista Guarany usou tamboretes

que Aloysio de Oliveira tinha trazido dos estados unidos pra fazer o ritmo que João Gilberto indicava

"João não aceitava percussão nenhuma nas gravações dele. E então o que fazer? Vamos criar alguma coisa,

O Guarany pegou um instrumento chamado caixeta, que são tubos com couro em cima e fez aquele pac, pac, pac, o João adorou

Isso marca muito, qualquer bateirista do mundo vai tocar bossa nova fazendo isso,

e ninguém nunca falou que foi o Guarany que criou isso dentro do estúdio assim de supetão, e foi o que ficou, não teve jeito"

Além do ritmo com Juquinha e Guarany a gravação conta ainda com o violão do João Gilberto, o piano de Tom Jobim

e mais flauta, oboé, sax alto, clarone e um quarteto de violinos

Sempre usados com o máximo de economia, é claro, a marca registrada da orquestração da bossa nova

3\. A FORMA DO ARRANJO A forma de o pato é AABCD, todas as partes com 8 compassos menos a parte D, que é o refrão, que tem 6 compassos

Nessa gravação, sucinta como eram as gravações do início da bossa nova, a música acontece duas vezes

Era uma busca estética, ou seja, pensando na forma, que as orquestrações fossem muito simples,

segundo João Gilberto as músicas pré bossa nova tinham violinos demais, orquestra demais

A gravação de O Pato não tem nem introdução, é o canto direto

Percebam a sonoridade da bateria com escovas e o ritmo na caixeta

Resposta do clarone no grave

Oboé fazendo uma segunda voz no "quém quém"

E agora acordes de violinos com a voz mais aguda em 3 notas descendentes cromáticas

Flauta e piano em uníssono em uma frase sincopada

Resposta no clarone

Sax e flauta tocam a mesma melodia com duas oitavas de diferença

Comentário do clarone cromático ascendente

Flauta e oboé em uníssono e sax uma terça abaixo

A resposta do clarone faz uma quinta justa descendente até a tônica do acorde

Os acordes dos violinos estão em posição fechada, as notas bem próximas umas das outras

Essa resposta do clarone também desce uma quinta justa até a tônica do acorde

Na coda, as respostas do clarone e a cama harmônica dos outros sopros

Sax em notas cromáticas seguindo a harmonia e flauta e oboé sempre nas mesmas notas

Bom, esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal,

E pense na possibilidade de apoiar o programa, a partir de apensa 10 reais

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Muito obrigado, até uma próxima