ESTEREÓTIPO
Senhor diretor, meu bem, instala o chuveiro pra mim.
Rita, não sei instalar chuveiro. (voz do diretor)
Mas o senhor não é homem?
Sou, mas... (voz do diretor)
Bom, como você já deve ter visto, em algum local desta tela, o tema do vídeo de hoje
é: "Estereótipos". E senta que lá vem história.
Bom, eu sempre gosto de dar início às nossas reflexões propondo
um exercício imaginativo de forma mais prática, né?
Pra que a gente já estabeleça uma relação de horizontalidade
com que vamos aprender. E a primeira coisa quando
a gente traz, aqui, em mente, "estereótipos" é, talvez,
fazer um exercício imaginativo. Eu gostaria
que você, que tá me assistindo, fechasse os olhinhos.
Vamos lá, eu sou um vídeo, mas eu sinto quem
tá de olho aberto. Depois pra eu achar onde você mora e te esfaquear é 1, 2.
Agora, de olhos fechados, eu vou pedir que você traga à mente a primeira imagem
que vem quando você escuta as seguintes palavras:
Palavra número um: "travesti".
Palavra número dois: "mulata".
Palavra número três: "meliante", "delinquente", "menor infrator".
E, agora, eu peço que você abra os olhos.
Bom, essas imagens que apareceram na sua cabeça
elas são resultados de um processo intrincado
de fazer parte de uma cultura, né? É um processo
cognitivo, quase que involuntário, através do qual
essa imagem, que tá armazenada dentro da sua
memória, é trazida à tona quando a gente precisa
fazer com que esse som signifique algo. E essas imagens
elas estão colocadas nas nossas mentes via
nossa vivência, nossa experiência e nossa cultura.
A gente não controla o campo da cultura.
Aqui, no canal, a gente fala muito sobre isso.
E a grande questão central de pensar "estereótipo" é pensar:
quando eu te convidei a pensar "travesti", a imagem
que veio na sua cabeça era periférica? Era imagem
de exclusão? Tava hipersexualizada? Tava relegada à prostituição?
Quando eu falei "mulata", tinha alguma coisa a ver
com as mulatas do Sargentelli? Como "mulata tipo exportação"?
Tinha a ver com o corpo nu da globeleza, domingo
no horário nobre, só coberto de glitter, sambando
para que você, família tradicional brasileira, se divertisse ao assistir?
E, por um acaso, o "meliante", o "delinquente",
o "menor infrator" eram racializados? Eram corpos
marcados pela negritude? Eles estavam periféricos,
eles eram corpos reconhecíveis como "da favela"?
E se você respondeu "sim" pra alguma dessas coisas,
eu não sou adivinha, né? Eu tô só fazendo um processo
de análise da nossa cultura e de quais são as
imagens que permeiam os nossos meios de comunicação
e, muito provavelmente, se ligam a esse significado
ideal que esse som puxa no nosso cérebro.
O que eu pretendo mostrar, aqui no vídeo muito curto, é como esse
processo de estereotipagem tem efeitos e impactos
negativos em toda nossa vida e, por
exemplo, na nossa pretensa democracia.
"Mas, Dona Rita, estereótipo é só negativo?"
E aí, logo de cara, eu te respondo, a gente vai ver isso
durante o vídeo, mas, de primeira, depende.
Depende para quem, né? Você que tá vendo o vídeo,
já foi autuado, autuada, autuade pela polícia? Já tomou
um enquadro? Já foi alvo de revista policial?
De violência policial? Blitz da Lei Seca, já pararam
seu carro? E aí a resposta, talvez, tem a ver com
o estereótipo. Porque que alguns carros são parados
e outros não. Porque que alguns corpos são abordados
com violência e outros não. E tudo isso tem a ver
com essa ideia. Será que existem estereótipos
positivos? Ô se existem, né? Basta conversar com
quem nunca tomou enquadro da polícia. Nunca
foi parado por uma blitz, etc, etc, etc.
Como boa aluna que sou do Raymond Williams, eu quero aqui traçar com vocês,
talvez, primeiro, um entendimento da palavra "estereótipo".
Neste livro do Raymond Williams, "Palavras-chave",
o Seu Raimundinho vai fazer uma pesquisa atenciosa
para quando palavras entram na língua inglesa
e o que elas significam então. Quais são os processos
sociais que transformam seus significados
e o que acontece toda vez que existe uma disputa
pelo sentido das palavras. Quando a gente pensa
em "estereótipo", a gente tá falando de dois radicais
gregos: "esteros", que ainda tá vivo no português como "austeridade", né?
Essa coisa rígida, dura. E "tipos", que ainda tá
vivo no português como "tipógrafo", "tipologia"
é "que é escrita". Logo, "estero" "tipos", né, seria uma escrita dura, rígida
O primeiro uso que a gente tem registrado é de
1798, por esse rapaz simpático, Firmim Didot,
que trabalhava com prensa, com a imprensa na Europa. E "estereótipo"
surge como "rebimboca da parafuseta", o nome duma
peça numa indústria, né? O "estereótipo" era uma
chapa dura de metal, rígida, que era usada, no
lugar do original, para fazer cópias em sequência.
Atentem para o fato de que, em 1850, no dicionário
de Oxford, a gente tem a primeira entrada do termo,
na língua inglesa, então ele vem do francês
para o inglês, não mais como rebimboca da parafuseta,
não mais como uma peça numa indústria, mas já como
uma imagem. É um substantivo que designa uma
imagem replicada, em série, sem alterações.
Essa já é uma noção muito aproximada da que a
gente tem hoje quando pensa em estereótipo, mas eu vou
levar a gente além. 1922 é um ano no qual Walter
Lippmann, esse jornalista norte-americano
publica um livro, famosérrimo pra quem estuda Teoria
da Comunicação, que é "The Public Opinion", né, "Opinião Pública".
E eu acredito que bons livros eles fazem esse
trabalho de, já no título, nos informarem ao que vieram.
Opinião Pública? "Pera! Opinião não era particular? Privada?
A gente não fala 'essa é a minha opinião?"
Então, o que que Walter Lippmann, em 1922, tá querendo dizer quando
ele chama um livro de "A Opinião Pública"? E essa
é uma discussão para a gente ter no horizonte quando
pensa o estereótipo como um fenômeno social.
Meu capítulo preferido da obra, é o capítulo 15,
onde Walter Lippmann vai debater conosco que
a noção de democracia passa por uma mudança,
sem precedentes, a partir do momento que a gente
tem um quarto poder, uma imprensa. Walter está
debatendo a democracia norte-americana de
mil novecentos... então, pera... é democracia? Pobre vota? Favelado vota? Preto vota?
Analfabeto vota? Mulher vota? Aqui, no Brasil,
a mulher só ia começar a votar, de forma FA-CUL-TA-TI-VA,
lá pros anos 30, começo dos anos 30. Então, primeiro, né,
não é democracia. Não, não são todos que participam,
não é democracia porque não é para todos, né?
Chama "ditadura da burguesia", mas bora lá. Vamos entender do que que eu tô falando.
Então, nesse livro, "Opinião Pública", o Walter Lippmann tá tentando
fazer com que a gente ENTENDA que essa classe
capaz de produzir e circular mensagens, imagens
e ideias, tende a desenvolver uma coisa
que ele chama de "a fabricação do consenso" e esse
termo é ótimo porque "fa-bri-ca-ção" nos chama a atenção
pra um processo industrial, um processo de
produção em série. E quando a gente tem em mente as mídias
que conhecemos, inclusive as redes sociais,
é disso que a gente tá falando, de uma produção em série de um conteúdo
que pode gerar consensos nas pessoas que apenas
acessam este conteúdo por esta via. Daí a importância
de você entender quem é a pessoa, a classe, a empresa
que produz as informações que você acessa. É,
quais são os interesses dessa pessoa, classe, empresa.
E o que acontece quando a sua única fonte
de acesso à informação é UMA fonte exclusiva.
Inclusive esse tema da "manufatura do consenso",
ele vai ser desdobrado aqui, no Ocidente, muito
depois do Walter Lippmann. Tem esse livro, de 88, do Noam Chomsky,
e do Edward S. Herman, chamado "Manufaturando", né, "Fabricando
o Consenso - o processo político da mídia de massas".
No Brasil, também, o Paulo Henrique Amorim publicou esse
"O Quarto Poder", né? No qual ele vai tentar entender,
desde o Vargas até o PT, o que que acontece e como
são esses movimentos de aproximação da mídia com
a política, quão política é a mídia.
"Mas, Dona Rita, a gente não veio discutir estereótipo?"
Mas, meus anges, vocês acham que os estereótipos que são
produzidos em uma cultura, são produzidos, circulados
e se agarram como significado aos nossos termos
através do quê? Eu espero que vá ficando delimitado pra vocês
que esse processo de produzir o estereótipo,
ele é, como tudo, um processo industrial e, portanto,
político. Ou vocês nunca perceberam que os grupos
pior estereotipados são os grupos minorizados
politicamente? Pra Psicologia Social, a gente
tem três momentos importantes, no século passado,
no Século 20, pra pensar o estudo do estereótipo.
O primeiro momento, sendo esse estudo seminal
do Daniel Katz e do Kenneth Braly, pra entende como grupos são estereotipados.
E eles vão pegar um grupo de alunos de uma universidade
de elite, em 33 (1933), nos Estados Unidos (ou seja,
grupo de homens brancos) E vão apresentar para
esse grupo uma série de estereótipos raciais:
italiano, negro, polonês, cigano e vão pedir, então,
que os alunos adequem, a esses estereótipos
raciais, adjetivos que eles podem escolher
de uma caixa com opções. Talvez não seja surpresa
para ninguém que o único grupo que vai receber
adjetivos positivos é o grupo do norte-americano branco.
Os demais grupos todos vão ser retratados com
adjetivos negativos como preguiçoso, displicente,
corrupto e etc. É ainda lá nesse estudo de 33, que a gente
começa a se instrumentalizar com palavras
diferentes para debater o tema: estereótipo,
preconceito e discriminação. Estereótipo sendo essa
esfera cognitiva, quase inconsciente,
de como circulam as imagens naquela cultura
e de como aquelas imagens aparecem para nós.
Se agente desce um pouco, a gente chegaria em preconceito
sendo resultado do estereótipo e se debruçando
sobre um campo sentimental. A gente passa dum campo
de cognição pra um campo afetivo e o preconceito
é como a gente se sente em relação a grupos estereotipados.
Se a gente caminhar um passo além, quando esse
sentimento vira ação, nós estamos falando de consciência
e de discriminação. Toda discriminação é consciente
e ela é um processo onde estereótipo vira preconceito e, agora,
preconceito vira política. Vira uma forma de agir
no mundo. Os estudos mais pro meado do século
passado, eles vão nos ajudar a entender que o estereótipo
nem sempre é negativo. A gente começa a pensar
os estereótipos nessas duas linhas como competência
e amistosidade. Competência sendo "qual é o status
com qual aquele grupo é representado naquela
sociedade?". E amistosidade é "aquele grupo compete
comigo por recursos ou vagas?". A partir daí, a gente
teria, por exemplo, a ideia "judeu", na Europa
Um grupo entendido como "pouco amistoso" porque existe
competição por vagas, por recursos. E "muito competente"
porque, normalmente, alcança posições de destaque.
Esse seria o resultado de uma estrutura de sentimento
em relação ao estereótipo. Quando lá do início do vídeo,
eu peço que você imagine a mulata e esse
corpo específico, que durante muito tempo,
na cultura brasileira, era colocado nu, semi nu,
hipersexualizado, associado ao Carnaval, associado
a exploração sexual. Quando esse corpo aparece,
no jogo da velha, a gente teria algo como "baixa
competência" e "alta amistosidade". É um corpo
que não compete com o meu por recursos, por vagas,
mas é um corpo retratado como de baixo nível
intelectual. A partir daqui, toda vez que a gente
troca o grupo que olha e o grupo que é representado,
a gente conseguiria, nesse joguinho da velha, entender
qual é o estereótipo, o preconceito e a discriminação
que advém daí. Em 1995, existe um estudo seminal,
também publicado, que entende a ameaça do estereótipo
e é uma investigação sobre o desempenho intelectual
de alunos afro-americanos nos Estados Unidos.
Esse estudo foi feito pelo Claude Steele e o Joshua Aronson.
Basicamente é uma prova que vai ser aplicada
em quatro contextos diferentes sendo sempre
a mesma prova. Numa universidade de elite, Standord, nos
Estados Unidos. Os alunos são recolhidos em
nível racial parecido, então eles são submetidos
a uma prova, um número X de alunos afrodescendentes e
número X de alunos não afrodescendentes, ou
seja, brancos e racializados, na sua maioria,
afrodescendentes. Na primeira fase do teste,
ele é aplicado como um teste corriqueiro, que não
não vai ter impacto na vida acadêmica dos alunos,
que não vai medir nada. Que é um teste de rotina.
E os alunos brancos e negros performam mais ou menos
igual. Existe um outro cenário no qual,
antes de ser aplicado, existe uma pressão que é feita
"Esse teste mede a capacidade intelectual,
ele pode ter resultado na sua bolsa de estudos, ele é muito
importante para a universidade, você vai ficar
conhecida pelo seu resul..." E aí os alunos negros performam
pior que os alunos brancos. Na mesma prova. O teste
é reformulado e, agora, a primeira página dele, dessa segunda etapa,
é um questionário socioeconômico. Na
primeira vez que ele é aplicado, não existe nenhuma
pergunta referente a etnia ou raça e alunos
brancos e negros performam mais ou menos iguais.
No segundo cenário, o teste pergunta coisas como
grau de instrução dos pais, dos avós. E aí eu peço
que você imagine um aluno ou uma aluna afrodescendente,
em 1995, quando pensa sobre seus avós, tá pensando
nas leis de segregação racial "Jim Craw", dos Estados Unidos
Tá pensando num processo de Apartheid,
violência, apagamento, assassinato, perseguição.
E "grau de instrução"? Que tipo de pergunta é essa?
E esse questionário socioeconômico se encerra pedindo que o aluno preencha a sua etnia,
se ele é branco, hispânico, afrodescendente ou outro.
O resultado é que os alunos afrodescendentes performam
muito pior do que os alunos brancos.
A partir desse estudo, a gente absorve o entendimento
de que os estereótipos têm impacto nos nossos desempenhos,
nos nossos seres sociais, quer acreditemos
neles ou não. Estar exposto a essa situação de
estigma, de estresse, né? Tem um impacto super
negativo sobre quem a gente é, como a gente se comporta,
qual é o resultado da nossa produtividade em
sociedade e também na nossa saúde psíquica.
"Mas, Dona Ritinha, como a gente combate o estereótipo?"
Bom, existem muitas frentes de combate. Aqui, eu poderia falar, talvez,
de uma ação numa micro esfera pessoal
e numa macro esfera política. Nessa micro esfera pessoal,
a gente precisa, ativamente, buscar outras referências.
Como quando a gente debate a questão da representatividade,
a importância de saber intelectuais
mulheres negras e mostrar para as pessoas que
esse caminho existe e que as mulheres negras
são intelectuais, não são apenas corpos que sambam
na TV. No entanto, a micro esfera e a representatividade
não são pontos de mudança e transformação social.
Quando a gente pensa nossa macro esfera, quando a gente
pensa o confronto político e histórico das
classes é aí que a gente tá falando sobre transformações
sociais. E aí a gente pode ter em mente sistemas
de cotas, a gente pode ter em mente leis que reformam
sistemas. Mas tudo isso ainda não muda as coisas
como um todo, né? O que mudaria seria a possibilidade
de que imagens e ideias não fossem produzidas
e circuladas por uma única classe. Que os processos
de violência não fossem destinados a um único
grupo racial. Que funções sociais não fossem desempenhadas
por um único gênero. E a única coisa que pode transformar
isso é uma mudança estrutural na sociedade.
Bom, essa fui eu tentando resumir uma aula minha
de 4 horas num videozinho de 20 minutos.
Espero que vocês saiam daqui com questionamentos,
com apontamentos e com referências pra continuar
a provocação, a discussão e a reflexão de vocês.
É isso. Muito obrigada e até a próxima. Um beijinho. Tchaaau.