O BANQUETE ANTROPOFÁGICO - EDUARDO BUENO (1)
"Querida, vamos comer ferida?"
"Ferida não me seduz, prefiro um copo de pus!"
"Ahhh, pus só no prato!
E depois do banho, eu gosto mesmo é de um pouco de ranho" Haha achou nojento cara?
Sabe o que que é, é que tem muita gente que assiste aos episódios do NVCNE na hora
do almoço, então a gente tá fazendo uma homenagem especial pra essas pessoas.
Tá, tá bom, tá bom, foi de mau gosto: vamos então para um costelão 24 horas... ou então
um fígado acebolado ou, então, pra quem gosta de miolos... ou quem sabe você quer
trocar essa história em miúdos?
Vem comigo, você vai mergulhar no maior festim que você já participou na tua vida.
"Radical, radical!
Venha ver como era o banquete canibal!".
Cara, de todos os "costumes bárbaros" que professavam os nativos brasileiros quando
na chegada dos europeus no Novo Mundo... nenhum os espantou mais do que os requintes tétricos
do banquete antropofágico.
E nada mais natural, né, cara?
Embora o canibalismo não fosse prerrogativa dos nativos do Novo Mundo e já houvessem
casos de crise na Europa, ã, episódios em que, seres humanos, pra sobreviver, comeram
outros humanos...
Nada, nada pode ser comparado às minúcias, aos requintes desse ritual eucarístico cujo
sacramento quase único era a consumação da vingança.
Cara, as tribos tupis que ocupavam toda a costa do litoral brasileiro eram todas primas,
quase irmãs entre si, mas o que realmente as unia era uma teia de uma vingança infindável,
que até tinha toda uma explicação mitológica...
Por que que potiguar odiava tabajara, por que que tabajara odiava Caeté, por que que
Caeté odiava tupinambá, por que tupinambá odiava tupiniquim.
Eles eram todos aparentados, mas eles viviam o tempo inteiro em guerra entre si, eles não
queriam a paz, eles odiavam a paz, eles gostavam era de guerrear, eles eram afeitos à guerra,
a guerra era sagrada pros povos tupis!
E mais sagrado ainda que a guerra era a consumação dessa vingança, quando você devorava o inimigo.
E isso era de tal forma que, pra um guerreiro tupi, ser enterrado na terra e ser comido
por verme era a coisa mais vil, mais degradante que existia.
O verdadeiro, a verdadeira sepultura do guerreiro tupi era o estômago do seu inimigo.
É, os caras que eram comidos gostavam de ser comidos, porque eles sabiam que iam dar
continuidade a esse ciclo infindável de vingança.
Tanto é que isso era declarado nessa missa, nesse ritual, nesse festim canibal, nesse
banquete antropofágico, que eu vou servir pra você agora aí, na hora do seu almoço.
Cara, esse ritual que era realmente minucioso, que seguia regras de etiqueta muito claras,
né, ele foi descrito em minúcias especialmente pelo Hans Staden.
Você já viu aqui o episódio sobre o arcabuzeiro, sobre o soldado da fortuna, sobre o mercenário
Hans Staden, que foi capturado em Bertioga em 1554, e que assistiu e depois descreveu
em minúcias como isso acontecia.
Mas não foi só ele, o Jean de Léry, o pastor protestante que viveu no Rio de Janeiro, na
ilha de Villegangnon e também o André Tevet, que era um franciscano, era inimigo do Léry,
Tevet e Léry se odiavam, tomaram parte nessas guerras religiosas que eclodiram também aqui,
no anfiteatro da Guanabara, durante a ocupação francesa... eles também escreveram livros
maravilhosos no qual eles descrevem o ritual antropofágico.
Portanto, tem várias fontes documentais que mostram como é que isso acontecia.
E é era verdade, foi assim, é incrível!
Depois um francês, no século XX, Alfred Metraux, foi o cara que realmente estudou
isso já pela ótica da antropologia, não antropofagia, e da etnologia, e concluiu que
realmente era um ritual profundamente religioso.
A coisa era assim: eles travavam essas guerras e, quando você capturava um cara, esse cativo,
esse prisioneiro, pertencia àquele que primeiro o houvesse tocado nele no campo de batalha,
e então esse cara era conduzido, ou outros né, vários às vezes depois de uma guerra,
eram conduzidos amarrados pelo pescoço até a taba, até a aldeia dos vencedores.
Quando ele entrava na aldeia ele entrava amarrado pelos pés e pelas mãos e tinha que entrar
pulando e tinha que dizer "chegou vossa comida, pulando!".
Hahaha que é uma frase que depois seria bastante usada pela Tarsila do Amaral, pelo Oswald
de Andrade... mas isso, a gente vai chegar lá... porque nós ainda nós estamos nos
FATOS, verídicos, né!
E aí quando ele entrava as crianças e as velhas jogavam cascas de frutas, frutas, pequenos
pedregulhos nos caras e diziam "nós vamos te comer, nós vamos te comer!, nós vamos
te comer!", né, e de fato iriam.
Só que depois desse momento, depois dessa humilhação, depois dessa degradação pública,
esse prisioneiro era bem tratado.
Ele passava a fazer parte da tribo que iria devorá-lo... até porque eles falavam a mesma
língua, eles eram parentes, eles eram primos!
Eram aparentados.
E o cara logo recebia de presente uma filha ou a própria mulher do seu captor... ele
podia ir lá, transar com a filha do cara, com a mulher do cara, barará, a maior liberalidade
tupi, muito bom, etc., e ficava morando na própria oca do seu captor, ou numa oca próxima.
E aí botavam um colar de corda, tem até o nome da corda, agora me esqueci, daqui a
pouco aparece aqui o nome da corda, e essa corda tinha nós e esses nós eram o número
de luas que se passariam até a execução daquele cidadão.
E aí ficava andando solto porque fugir, como eu já falei no episódio do Hans Staden era
uma ignomínia impensável, era uma covardia imperdoável... se o cara fugisse e voltasse
pra sua tribo ele não seria aceito, ele não seria aceito, iam mandar ele de volta do tipo
assim "perdeu playboy", já era playboy, se deixou capturar...
Bom, chegava então, ia se aproximando a data da execução do cara, que tava ligado a uma
lua, determinada lua, determinado momento da história, barará... porque não era assim
na maior, entendeu, era um ritual, era um banquete!
Era um banquete, né.
E aí os momentos que antecediam o banquete propriamente dito durava de cinco dias a uma
semana, né, e aí na véspera da execução tinha uma super beberragem de cauim...
Cauim, você sabe, é claro que você sabe, era um fermentado de mandioca que é o seguinte
cara... 51 é fichinha.
O cara tomava um talagaço daquela mandioca que era feita com mandioca e cuspe, quem faziam
eram as velhas indígenas, velhas mesmo, a partir de 40 anos de idade já era tido como
velha nas tribos e ficavam lá sem dente ploft ploft ploft, cuspindo num caldeirão cheio
de mandioca ralada que daí fermentava e dava uma bebida poderosésima, cara, um absinto,
um abcego, um abmudo!
Era assim, o cara tomava e bloorgh blargh!
Bom, eles ficavam bebendo, homens e mulheres, ficavam bebendo aquela porra a noite inteira,
interinha!
E ainda uuuu, uuuu, cara assim ó, baaargh, se ouviam os cânticos, né, se ouviam as
rezas, rituais, ecoavam pela mata inteira.
E o cara ali já sabendo que ia ser morto, né.
Bom, aí amanhecia o dia da execução.
Quando amanhecia o dia da execução o cara que ia ser devorado era banhado com toda a...
o requinte, banhado por mulheres, barará, daí tinha seus pelos depilados e aí cobriam,
bezuntavam a pele dele com uma substância escura lá que agora esqueci, tipo assim o
urucum, essas coisas assim e aí depois cobriam ele de cascas de ovos de várias... eram tipo
purpurina, era uma purpurina de ovos, assim, e um monte de pena, o cara ficava que era
assim o Clóvis Bornay, pra tu ver como eu sou um cara antigo, Clovis Bornay!
Aí deixavam o cara fugir, era muito engraçado porque fazia parte, porque o cara ali era
o ator principal da história e ele incorporava o seu papel, ele já sabia que era assim!
Aí ele fugia pelo portão principal da taba só pra ser capturado de novo, logo em seguida,
ali, levado de volta pro centro da taba.
Aí tava toda a tribo reunida ali naquele pátio gigante, baãaãa, imagina a vibe,
entra na vibe, tá começando, tá começando agora.
E aí então tinha um momento de um grande discurso... o cara, o carrasco que ia executá-lo
que, em geral, era o próprio cara que o tinha capturado, tava vestido com o manto tupinambá...
é um manto de guará e de penas de tucano, um manto afu cara, existe um desses mantos
sagrados, o único que sobreviveu, tá em Copenhagen, na Dinamarca, né, o único sobrevivente...
Penas de arara!
Era um manto incrível!
Daí o carrasco que aí já tava doidão, né cara, o carrasco já tinha ali, verão
da lata, tal, ia lá no mar, pegava umas latas que davam...
Naquela época o mar era tão incrível que mandava latas, no litoral brasileiro, aí
abria a lata e mmm, tinha erva mate, erva que não mate...
E aí o carrasco já tava doidaço, não só de cauim como também ele ficava retirado
num temascal, sabe o que que é temascal ô ananás, é uma tenda que ficava cercada lá,
toda fechada e vinha uma fumaceira e o cara ooohhh... porque não era assim cara, não
era na maior!
E aí ele pegava, a, como é, não lembro.., Ibirama, acho que é ibirama, se eu errei
o nome aparece o nome certo aqui, que era a clava ritual, a clava que o cara ia ser
abatido cara, ela ficava uma semana pendurada dentro de uma tenda sagrada onde era incensada
e onde era untada com óleos especiais, parará, parará...
Sobreviveu também uma dessas clavas, tá em museu em algum lugar, sei lá, em Berlim,
no cacete, sei lá, eu não sei, não interessa.
Mas existe uma dessas clavas ainda, que era duma madeira nobre e tal.
Bom, aí o carrasco... eu não sei se era bem o carrasco, mas alguém perguntava pro
cara que ia ser executado "tu és ou não és nosso inimigo!?"
e o cara "siiim, sou inimigo!", "inimigo ferrenho?"
"sim, inimigo ferrenho?", "tu és colorado, desgraçado?", "sim, sou colorado!", "então
nós somos gremistas, nós vamos te matar!!!"
e aí o colorado respondia "nãaao, mas eu também já matei vários de vocês em vários
grenais!".
É, eles ficavam discutindo assim, o cara dizia "já matei fulano, já matei beltrano,
não sei o que, não sei o que" e o cara diz "pois agora serás morto e serás devorado
por nós" e o cara respondia "sim, mas a minha tribo vai vir aqui e vai me vingar e vai devorar
vocês também!"
"ah tá, mas agora quem vamo devorar é você".
No meio dessa conversa o cacique que já tinha entrado mas tava com os olhos revirando, doidão,
vinha e POFT, disferia a clava na nuca do cara, pelas costas...
O cara sabia que ia morrer...
Não, antes, desculpa, esqueci, ele tava preso por cordas na sua cintura...
Não que ele fosse fugir, mas fazia parte do ritual, um puxava pra lá, outro puxava
pra cá, outro puxava pra cá, outro puxava pra lá, quatro, os quatro pontos cardeais,
com essa corda, também ritual enrolada no ventre dele, e aí o cara vinha por trás
e POFT e puft, estourava a mufa do fulano e o cara pum, caía morto né, pelo menos
era rapidinho.
Aí velhas, velhas velhas, de mais de cinquenta anos, vinham correndo e recolhiam o sangue
e os miolos em gamelas, em tigelas, e aí cara, o sangue tinha que ser bebido ainda
quente e então elas passavam quente e todo mundo glug glug glug e aí papapá, já comiam
os miolo que tinham sobrado ali.
Aí pegavam o cadáver, o corpo, cadáver nada, corpo, o maná, pegavam a hóstia, sim
cara, a hóstia, aquilo era uma hóstia.
Afinal né cara, os cara não, na religião católica o cara não diz assim "saaangue
de Deus, corpo de Deus!".
Tá, inclusive vou ter que abrir um parêntesis, cara, vou ter que abrir um parêntesis: tu