O BANQUETE ANTROPOFÁGICO - EDUARDO BUENO (2)
sabe o que que os astecas disseram quando viram que os espanhóis, os europeus bebiam
o sangue do seu próprio deus, e comiam o corpo do seu próprio deus... eles disseram
"cara, é o povo mais bárbaro que existe!
Eles comem o deus deles!".
Tá!?
Chama relativismo cultural, exatamente, então eu posso e digo e repetirei que aquele corpo
ali era uma hóstia.
Era uma hóstia, era um ritual eucarístico, era uma deglutição sagrada, era a incorporação
de uma entidade ao teu próprio corpo.
Aí o cara tava morto lá parará, pegavam o corpo dele e escaldavam.
Tinha um caldeirão assim, de água fervente, djuuuu, pra poder facilitar a raspagem da
pele.
Daí tiravam toda a pele, bararará, cara, espero que tu esteja na hora do almoço, porque
agora que vai começar a ser servido nosso banquete.
Daí tchhh, escaldavam o cara, tiravam o corpo escaldado e levavam pra grelha.
Levavam pra grelha, é, ia ser assado!
Daí tchhhh, começavam a assar, aí já dá aquele cheirão de churrasco gaúcho, né
cara, a gordura pingava na brasa e fazia tchhh, tchhh, neguinho já mmm, mmm, vai começar.
Viravam, tiravam o cadáver da grelha, né, abriam as costas pelo dorso, abriam as costelas,
né...
Peraí, esqueci de um detalhe importante.
Na hora que escaldava enfiavam um pequeno bastão numa parte de baixo para evitar a
excreção quando tava sendo escaldado e depois quando tava sendo assado também.
Daí viravam o cadáver de costas, já assado, abriam pelo dorso e abriam as costelas.
Depois viravam e aí abriam o ventre e aí tinham os intestinos.
Os intestinos eram oferecidos às crianças, aí as crianças "obaaa, intestinos!", né,
eu reclamava muito quando minha mãe me dava miúdos.
A minha ex mulher, mãe da minha filha, também ficava revoltada quando davam miúdos pra
ela.
Mas é o seguinte né, criança tem mais é que comer miúdos mesmo né, inclusive os
índios jovens tal e adultos deviam dizer pras crianças "olha, o bom mesmo é os intestinos,
deixa que a gente come as costelas, os braços e as pernas!.
Porque de fato o pernil, a costela 24 horas e os braços eram comidos pelos adultos.
Tinha todo um ritual!
Por exemplo, a língua, a língua e os miolos eram comidos pelos jovens guerreiros, bem
jovens mesmo, 14, 15 anos de idade.
A pele em torno do crânio era só pros grandes guerreiros, e a língua.
E os órgãos sexuais eram... das mulheres!
É, cortavam ali o salsichão, salsicha com ovos, etc., e aí isso era para as mulheres.
As mães com filhos recém-nascidos banhavam suas mãos no sangue e passavam nos seios
e davam de mamar pros bebês com os seios recobertos do sangue do recém-abatido.
As crianças pequenas também eram chamadas, participavam todas e comiam e elas tinham
que botar a mão assim nas tigelas onde havia o sangue que aquelas velhas tinham recolhido
e aí pintavam toda a cara assim de sangue e clamavam, gritavam pela vingança.
Tudo isso é óbvio né cara, com trilha sonora, trilha sonora!
Basicamente flauta, flauta feita pelos ossos de caras que já tinham sido comidos antes
e tambor uuuuu, os nativos estão alvoroçados, né.
O Hans Staden viu, como já contei no episódio dele, a execução de dois irmãos portugueses,
os irmãos Brega, os irmãos Braga, né, e aí ele não achou do mais agradável, né
cara.
Então cara, essa comelança, e bebelança, porque eles continuavam bebendo o cauim enquanto
professavam esse ritual...
Durava quatro horas, cara, quatro horas!
E depois era a hora da sesta.
Falando sério, eles caíam assim, poft, capotavam, capotavam, de bucho cheio meu chapa e bebum
total.
Agora tu imagina tu ver isso, tu presenciar isso, né... e aí também tu imagina que
coisa incrível é, quatrocentos anos depois, um outro antropólogo, esse cara, o Alfred
Métraux, interpretar isso desse jeito, desse relativismo cultural.
"O grande Alfred Metraux foi um dos pilares do relativismo cultural.
Em 1928, ele escreveu um livro maravilhoso sobre o ritual antropofágico chamado 'A Religião
dos Tupinambás' seguindo esses preceitos.
Relativismo cultural, ô mané, é uma perspectiva da antropologia de acordo com a qual um determinado
povo ou cultura não deve nem pode avaliar o outro a partir dos seus próprios valores,
como se esses fossem o padrão a ser seguido.
Viva, Metraux!
Viva o relativismo cultural!".
Óbvio que é horroroso, óbvio que é amedrontador, mas tinha todo um contexto religioso e era
consensual, tipo sexo SM assim, entendeu, cara...
Era consensual, o cara que era morto, pra ele era uma honra, era uma honra ser morto
porque ele sabia que ia dar continuidade a uma coisa que pra eles era ancestral e que
já tava acontecendo há mais de 500 anos, entendeu.
E eles travavam as guerras tribais entre si só pra capturar inimigos, ninguém queria
exterminar ninguém, pegava lá meia dúzia, entendeu.
Cara, é uma história louquíssima, né, e aí ela ainda iria adquirir um outro desdobramento
quando, você já viu aqui também no episódio do Hans Staden, quando o Eduardo Prado, que
era um ricaço, criador, um dos criadores da Academia Brasileira de Letras, adquire
o livro original do Hans Staden, livro publicado em 1557, um dos primeiros best-sellers da
história da humanidade, tanto é que... e o motivo pelo qual ele virou esse best-seller
foi porque ele escreve isso que eu acabo de te dizer, tu imagina tu ser um europeu assim,
o Michel de Montaigne, cara, o super filósofo, o Thomas Morus, o Erasmo de Rotterdam... esses
caras leram isso cara, e tinha acontecido há meia hora atrás, e os caras "deusolivre",
e tu imagina o povaréu, a gentalha, e os marujos que viriam navegar pro Novo Mundo
sabendo que isso acontecia.
E o mais incrível cara, é que isso só acontecia assim, desse jeito, no Brasil!
Nunca houve um ritual antropofágico, um festim canibal nesses moldes, como no Brasil!
Só no Brasil!
Só os tupis faziam isso!
Várias outras tribos comeram gente, várias outras tribos eram canibais mas assim, por
exemplo, os Yanomami, eles comiam, eles cozinhavam, eles assavam o cara até virar pó, até virar
pó, e aí misturavam com banana.
Aaah, coisa de boiola né cara, homem que é homem come desse jeito e criança que é
criança e mulher que é mulher come neguinho assim.
Então, desse jeito, só havia aqui, no Brasil.
Tu imagina os cara que vinham vindo pro Brasil.
O livro foi publicado no Brasil, por causa do Eduardo Prado, o Eduardo Prado era pai
do Paulo Prado, Paulo Prado foi o cara que financiou a Semana de Arte Moderna, que também
era um ricaço, cafeicultor paulista e aí através do Paulo Prado, o Oswald, a Tarsila,
o Heitor Villa Lobos leram, leram esse livro, em 1922 e aí cara, perceberam a metáfora,
né.
Perceberam a metáfora, disseram "invés de fazer uma passeata contra a guitarra elétrica,
vamos incorporar a guitarra elétrica".
É, resolveram então roubar toda a cultura europeia e transformar, degluti-la, eucaristicamente,
e transformá-la numa cultura genuinamente brasileira e assim surge o Movimento Antropofágico
que depois teria um desdobramento tropicalista, ainda!
Esses são os desdobramentos culturais desse evento que era genuinamente brasileiro, né.
E no qual se destacou o Cunhambebe, o Cunhambebe que era um líder tribal, um cacique que vivia
aqui no Rio de Janeiro e disse que tinha comido 52 portugueses.
Hahaha sensacional, o meu querido canibal.
Já falei aqui, um livro do Antônio Torres, né.
Então é isso, a gente queria te servir esse repasto, queria te servir essa refeição
requintada, né, esperamos que você esteja com o seu guardanapo de linho e também tenha
um... não, o seu babador de linho e tenha um guardanapo também bastante eficiente para
se alimentar de cultura.
E qual é o único lugar que tem um banquete toda a quarta-feira?
É o canal Buenas Ideias!
Espero que você esteja saciado, espero que você faça a digestão e espero que você
se alimente.
Tchau.
"O que você acaba de ver está repleto de generalizações e simplificações, mas o
quadro geral era esse aí mesmo.
Agora, se você quiser saber como as coisas de fato foram, ah, então você vai ter que
ler!"