Tecnocracia #53: O que foi a quebra do sistema Telebrás (2)
No ano seguinte, a primeira concessão para exploração de serviços telefônicos no Brasil foi dada a um representante da Bell.
Durante quase oitenta anos, o mercado foi um faroeste. Entrava quem queria, vendendo o que era possível e sem nenhum tipo de padrão. Sem surpresa nenhuma para ninguém, a cobertura do mercado brasileiro era lenta, o que não ajudava a criar demanda — até o fim da década de 1950, menos de 1 milhão de telefones tinham sido instalados, majoritariamente em um ou outro grande centro urbano. Naquele ritmo, o Brasil só falaria ao telefone um século depois. Em 1961, o Brasil dispunha de apenas 1,1 milhão de telefones para uma população de 70 milhões de habitantes. Os serviços telefônicos concentravam-se na região Sudeste, que abrigava quase 80% dos terminais existentes.
“Sob a vigência da Constituição de 1946, a União, os estados e os municípios outorgaram numerosas concessões para a exploração dos serviços de telecomunicação. A expansão das empresas operadoras ocorreu de forma desordenada, com custos altos e sem qualquer compromisso com a qualidade. O poder de fixação de tarifas também permaneceu dividido entre as três áreas de governo, impedindo o estabelecimento de critérios uniformes, tanto técnicos como econômicos. Reclamando das baixas tarifas, as operadoras estrangeiras deixaram de investir na ampliação e na modernização de plantas, provocando sérios atritos com os poderes concedentes”, segundo o verbete sobre Telebrás do CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Com o avanço em ritmo de carroça, a segunda fase começou a tomar forma no começo da década de 1960, quando o governo (nos seus últimos anos de democracia) começa a desenhar um plano para concentrar as operações de telecomunicações brasileiras em uma única estatal. Essa é uma tabelinha entre o governo democrático de João Goulart (e dos governadores) e o governo ditatorial dos militares a partir de 1964. Em 1962, governos estaduais passaram a estatizar operadoras — foi o que aconteceu no Rio Grande do Sul governado por Leonel Brizola, que “cassou as concessões e desapropriou os bens e serviços da Companhia Telefônica Nacional (CTN), transferindo-os para a Companhia Riograndense de Telecomunicações (CRT)”, e no Rio de Janeiro (então Guanabara), onde o governador Carlos Lacerda formou a Companhia Estadual de Telefones da Guanabara (Cetel) para concentrar as atividades.
Esse movimento não é simples. Mais do que chegar na porta e falar que tudo é do governo (no melhor estilo caudilho latino), há todo um arcabouço jurídico que precisa ser alterado. O caminho se abriu quando Goulart sancionou o Código Brasileiro de Telecomunicações em 1962, “colocando sob a jurisdição da União os serviços de telégrafo, radiocomunicações e telefonia interestadual”. É a partir dessa legislação que abriu-se caminho para a formação de uma empresa que concentrasse todas essas operadoras regionais e outras que o governo vinha criando para explorar serviços telefônicos. Já na ditadura, por exemplo, Castelo Branco usou o novo código para criar uma empresa responsável exclusivamente pelas ligações de longa distância: a Empresa Brasileira de Telecomunicações — como o nome era muito grande, abreviada para Embratel.
Àquela altura, o Brasil tinha sua AT&T;: era a Companhia Telefônica Brasileira (CTB), criada em 1916 pelo grupo Light para atender São Paulo e Rio de Janeiro — sim, aquele mesmo de energia de que sua mãe falava não ser sócia quando você deixava uma luz acesa sem razão na década de 1990. Na década de 1960, dois terços do mercado brasileiro de telefonia eram controlados pela CTB. Então foi fácil para o governo Castelo Branco estatizar praticamente o setor inteiro em 1966, fazendo com que a Embratel assumisse a CTB.
Só seis anos depois, em 1972, a ditadura criou uma empresa para juntar todas as concessionárias regionais agrupadas pelos governos estaduais e assimiladas pela Embratel. Nascia a Telecomunicações Brasileiras S.A., abreviada (o setor adora uma abreviação, você já notou) como Telebrás, com quatro empresas sob seu controle: a Embratel, a Companhia Telefônica Brasileira (CTB), a Companhia Telefônica de Minas Gerais (CTMG) e a Companhia Telefônica do Espírito Santo (CTES); e uma associada, a Companhia de Telecomunicações de Brasília (Cotelb). A partir da formação, a Telebrás passou a comprar de forma mais agressiva operadoras locais para unificá-las. Em dezembro de 1973, as quatro empresas e uma associadas iniciais já eram 25 subsidiárias (as Teles locais: Telesp, Telemig, Telerj, Telesc, Telebrasília, Telma e por aí vai) mais quatro associadas.
Ufa, vamos parar para respirar. Lembra de outra data que já falei no começo da década de 1970? Em 1974, os EUA anunciaram a quebra da AT&T. ; Dois anos antes, o Brasil criava a Telebrás. Enquanto os EUA estavam quebrando um sistema monopolista para dar mais opções aos consumidores, o Brasil adotava a rota totalmente contrária. E para quê?
O problema principal da primeira fase das telecomunicações no Brasil era o ritmo lento para capilarizar o serviço e atender mais brasileiros. No começo, até que deu certo: entre 1972 e 1977, o número de telefones instalados no Brasil foi de 2 milhões para 3,6 milhões, quase o dobro. Na década de 1980, o modelo se esgotou. Para surpresa de zero pessoas, porém, em médio prazo concentrar operadoras em uma estatal gigantesca não deu agilidade ao processo e o ritmo continuou se arrastando.
Pior: sem dinheiro para fazer investimentos que atualizassem a tecnologia e ampliassem o alcance da rede, a Telebrás passou a contar apenas com o dinheiro pago adiantado pelos assinantes ao contratar uma linha como investimento. “Os preços das linhas telefônicas explodem no chamado mercado paralelo. (…) Ao fim de 1987, a demanda represada no país chegava a quase 20 milhões de linhas telefônicas”, segundo um livro que vou citar daqui a pouco — você vai entender o porquê. É uma cena que qualquer um nascido perto de 1980 lembra: linha telefônica naquele período era um bem, daqueles que, de tão caros, você precisava declarar no Imposto de Renda. Incapaz de investir num cenário econômico calamitoso, com a inflação gerada na ditadura militar ganhando velocidade, a Telebrás era obrigada a fazer sorteios para distribuir as poucas linhas entre os vários interessados. Eu lembro claramente de chegar do colégio um dia, na década de 1990, e encontrar meu pai felicíssimo por ter ganho no sorteio o direito de comprar duas linhas telefônicas — uma para casa, outra para a empresa dele.
Já estava muito claro que o modelo de concentração do serviço telefônico no Estado estava esgotado. Enquanto o resto do mundo instalava milhões de telefones por ano com um modelo baseado na iniciativa privada, que tinha bolso mais fundo e mais agilidade para manter as redes atualizadas e aumentar a capilaridade, o Brasil andava com seu passinho de lesma. É aí que entra uma figura central para o processo de quebra da Telebrás, o biografado no livro cujo título eu ainda não citei: Sergio Motta.
José Sarney não mexeu na Telebrás, Fernando Collor não mexeu na Telebrás, Itamar Franco não mexeu na Telebrás. Todos sabiam que alguém haveria de fazer algo — só não seriam eles. À frente da implementação do Plano Real como Ministro da Fazenda do governo Itamar, Fernando Henrique Cardoso se transformou no natural favorito às eleições de 1994. Se você nunca viu, eu te aconselho a parar o podcast e buscar um gráfico mostrando o valor histórico da inflação mensal do Brasil até o Plano Real — é daqueles gráficos que definem exatamente o tamanho da façanha. Eleito, Fernando Henrique colocou no Ministério das Comunicações um sujeito já conhecido do PSDB, gorducho e apelidado de trator pelos bastidores de Brasília pela forma imparável de conduzir negociações. Era Sergio Motta.
Caiu no colo de Motta a obrigação de desfazer o nó e entender como quebrar o monopólio das telecomunicações. O governo FHC começou em 1º de janeiro de 1995 e o presidente nem tinha arrumado direito as gavetas quando Motta, em 6 de fevereiro, entregou ao Palácio do Planalto e, depois, à Câmara dos Deputados, a Emenda Constitucional 03-A/95, que, entre outros efeitos, alterava o inciso XI do Artigo 21 da Constituição para tirar da União a exclusividade do provimento de serviços de telecomunicações no Brasil. Abre aspas para o livro “Sergio Motta: O trator em ação”, que conta com detalhes (alguns bastante técnicos para quem gosta) o processo: “O Estado já não produz nem oferece serviços de comunicação. O Estado outorga, cobra, fiscaliza e cassa, se necessário.” Essa parte de fiscalizar cairia no colo de uma nova agência de fiscalização chamada Agência Nacional de Telecomunicações, ou (olha outra sigla aí) Anatel, que você já ouviu aqui várias vezes. A Emenda Constitucional, aprovada no Congresso Nacional em 11 de agosto e promulgada quatro dias depois, foi a primeira reforma do governo FHC. Uma Lei Geral das Telecomunicações ajudou a definir as novas regras.
Sem a legislação adiante, agora era preciso organizar a distribuição dos blocos, marcar o leilão e, principalmente, convencer quem tinha dinheiro para gastar. Com a economia brasileira estabilizada pela primeira vez em décadas, o melhor caminho foi buscar investimentos estrangeiros, principalmente operadoras de fora interessadas em um mercado gigante, mas ainda muito mal explorado. Operadoras gringas, porém, não foram as únicas: a quebra e privatização da Telebrás era uma rara porta a um setor com uma barra de entrada altíssima. É por isso que empresas brasileiras dos mais diferentes setores, de grupos de mídia como a Globo a construtoras como a Andrade Gutierrez, entraram no leilão.
Na divisão dos blocos, as 28 subsidiárias da Telebrás foram organizadas em 12 pedaços: três eram só de telefonia fixa (Telesp, só em SP, Tele Centro Sul, em estados do Norte e Centro-Oeste, e Tele Norte Leste, com estados do Norte, Nordeste e Sudeste), um era de telefonia a longa distância e serviços de dados (Embratel, com atuação no país todo) e oito eram de telefonia celular (Telesp Celular para SP, Tele Sudeste Celular para RJ e ES, Telemig Celular para MG, Tele Celular Sul PR e SC, Tele Nordeste Celular para PI, CE, RN, PB, PE e AL, Tele Centro Oeste Celular para DF, GO, TO, MS, MT, RR e AC, Tele Leste Celular para BA e SE e Tele Norte Celular para AM, RO, AP, PA e MA).
Três anos depois, o leilão finalmente aconteceu no Rio de Janeiro, em 29 de julho de 1998, após uma guerra de liminares na Justiça. No total, a venda dos blocos arrecadou mais de R$ 22 bilhões, um valor 66% acima do estipulado pelo Ministério das Comunicações. Na época, foi o leilão de telecomunicação que mais movimentou dinheiro na história do capitalismo mundial. Entre os vencedores, criou-se a configuração que hoje vemos no setor de telefonia. A espanhola Telefônica entrou no Brasil ao comprar os blocos da Telesp Participações (o fixo em São Paulo) e da Tele Sudeste Celular Participações (celular no RJ e ES). A italiana Telecom Itália (junto com as Organizações Globo e o Bradesco) levaram os blocos Tele Celular Sul e da Tele Nordeste Celular. A portuguesa Portugal Telecom entrou pelo bloco da Telesp Celular Participações S/A. Empresas menores capturaram as operadoras celulares locais.
A Claro demorou um pouco mais a entrar. Só cinco anos depois do leilão a mexicana Telmex articulou a junção de seis operadoras celulares, capitaneadas pela BCP e pela TESS. Uma das operadoras, do Rio Grande do Sul, chamava Claro Digital. A operação foi assimilada e o nome ficou.
O capital brasileiro ficou concentrado na telefonia fixa. A Brasil Telecom arrematou o bloco Tele Centro Sul e a Telemar pegou o bloco Tele Norte Leste. Uma década depois, com as duas operadoras mal das pernas pela rede excessivamente legada, a falta de investimentos e uma guerra de foice no escuro entre os sócios, o governo do ex-presidente Lula alteraria a Lei Geral de Telecomunicações para permitir a junção de dois gigantes e, com capital emprestado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES), Telemar e a Brasil Telecom se juntaram para formar a Oi, parte da política de Campeões Nacionais. Àquela altura, ninguém sabia, mas o cadáver já estava começando a esfriar. Oito anos depois dessa manobra, incapaz de pagar uma dívida que ultrapassava R$ 65 bilhões, a Oi quebrou, o que na época foi o maior pedido de recuperação judicial da história do capitalismo brasileiro (a Odebrecht viria anos depois para roubar essa coroa).