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Podcast do projeto Querino (*Generated Transcript*), 4. O colono preto - Part 1

4. O colono preto - Part 1

Uma polêmica em sala de aula. A lei sancionada pela presidente Dilma, que cria cotas para estudantes de escolas públicas nas universidades federais, divide opiniões.

De um lado, os alunos do ensino particular que são contra.

Justamente porque diminui a quantidade de vagas aumentando a relação com o didato vagas.

Você tem que estudar mais pra isso, colocar mais de você.

Agora a gente talvez tenha que estudar mais, abedificar mais de outras coisas.

Talvez até do tempo de diversão, pra buscar uma coisa que era menos impossível.

Em 1760, uma mulher, o nome dela era Isabel, fez um pedido pro juiz de órfãos de Mariana, em Minas Gerais.

O marido da Isabel tinha morrido e quem administrava a herança não era ela, mas o juiz.

A Isabel estava pedindo uma quantia pra que os dois filhos dela pudessem continuar a estudar, pedindo dinheiro dela da herança do marido dela, do pai dos filhos dela.

Ela argumentou que um dos garotos estava estudando pra virar boticário, que é quem nessa época fazia os medicamentos, seria o equivalente hoje ao farmacêutico.

E o outro filho, mais novinho, estava aprendendo a ler e a escrever.

O juiz disse não.

Falou pra Isabel que como os filhos dela eram pardos, e foi essa a palavra que ele usou, como eles eram pardos, que não se justificava gastar dinheiro com educação.

E que o que eles deveriam mesmo fazer era trabalhar.

As cotas raciais foram aprovadas há pouco por unanimidade.

Mas acima dessa discussão há um princípio que não podemos ignorar.

Neste país, todo cidadão é igual perante a lei, digno das mesmas oportunidades, seja branco, negro ou índio.

Em 1856, um professor, o nome dele era Pretestato dos Passos e Silva, enviou um dossiê pro Império.

Ele estava tentando há algum tempo já abrir uma escola no Rio de Janeiro.

E o principal argumento dele era, olha, eu estou sendo convocado por várias famílias que estão pedindo pra eu montar um curso pras suas crianças, de cor preta e parda.

O Pretestato dizia lá que em outras escolas,

O professor Pretestato ainda escreveu que, por causa do preconceito, as crianças negras não estavam recebendo uma ampla instrução por estarem coagidas.

E que na escola dele, esses casos de discriminação não aconteceriam, por ser ele, o Pretestato, um homem negro.

Em 1967, a revista Realidade, que não existe mais, resolveu fazer um experimento.

Colocou dois repórteres para passarem pelas mesmas situações em Salvador, na Bahia.

Um era negro, um era branco.

Um desses testes era, por exemplo, tentar matricular uma criança numa escola infantil.

Não levando a criança junto, claro.

Mas o repórter, se passando por um pai, chegava, pedia pra conhecer a estrutura e perguntava se tinha vaga.

E foi lá o primeiro repórter.

A diretora, com toda cordialidade, disse pra ele que, lamentavelmente, não tinha mais lugar.

Passou um tempinho, lá foi o segundo.

E a diretora sorriu muito, consultou a lista de matrícula e concluiu alegre.

O senhor tem sorte, ainda tenho vagas. Quer fazer a matrícula já?

Eu preciso dizer qual que era o branco e qual que era o negro?

Vocês estão enganando os negros, achando que eles vão fazer faculdade, vão conseguir.

Vai ter muito negro laranja nessa situação aqui. Laranja.

Vão ser enganados. Vai cozinhar aqui, briga entre nós.

Estamos alimentando ódio entre brancos e negros.

A primeira constituição do Brasil, aquela lá de 1824, imposta pelo Dom Pedro I, é também a mais longeva da nossa história.

Ela durou todo o império, só caiu em 1891.

E essa nossa primeira constituição previa instrução primária e gratuita para todos os cidadãos.

E você lembra, porque a gente já falou sobre isso lá no primeiro episódio, quem que era considerado cidadão nessa época, né, pela lei.

Toda pessoa livre, nascida no Brasil, ou então portugueses que já moravam aqui desde antes da independência.

Quem ficava de fora, quem não era cidadão e por isso não teria direito à educação,

eram os africanos, ainda que fossem livres, e os escravizados.

Dez anos depois, um ato adicional determinou que os estados, na época eram províncias, é que deveriam legislar sobre educação.

Daí teve estado que achou melhor reforçar essa proibição para pessoas escravizadas em sala de aula.

Minas Gerais e Goiás aprovaram em 1935, leis dizendo que

somente as pessoas livres podem frequentar as escolas públicas.

Tipo, isso já estava claro pela constituição, mas eles precisavam reforçar.

Em 1954, na corte teve um decreto que regulamentou o ensino primário e secundário

e dizia lá que os escravizados não seriam admitidos em nenhum dos dois.

Daí nos anos 70, bom, vai vendo.

Na escola, você deve ter aprendido sobre a Lei do Ventre Livre.

A gente vai falar mais sobre ela em outro episódio, mas resumindo bem,

foi uma lei aprovada em 1871 que dizia que

Daí os senhores podiam escolher quando eles dariam a liberdade para a criança.

Aos 8 anos de idade, recebendo uma indenização do império,

ou aos 21 anos, quando a criança já era um adulto e aí seria sem indenização.

Quer dizer, todos esses anos de trabalho forçado da criança,

depois adolescente, contariam como indenização.

Segundo um historiador que estudou a aplicação da lei, o Ricardo Salles,

em 95% dos casos, os senhores escolheram a segunda opção.

Bom, mas o que isso tem a ver com educação?

É que se o senhor escolhesse a segunda opção, ele também era obrigado a educar aqueles jovens.

Daí teve Estado como Minas Gerais, e Minas Gerais,

mas também Bahia, Santa Catarina, Goiás, Paraíba e São Paulo

que fizeram novas leis reforçando que escravizados não poderiam frequentar a sala de aula.

Para que nem mesmo esses jovens que dali a alguns anos ficariam livres pudessem estudar.

Olha o nível de crueldade disso.

E assim, mesmo para quem era livre e por isso tinha direito de estudar,

mesmo para quem era, na teoria, um cidadão brasileiro,

o que era o acesso à educação numa sociedade alicerçada na escravidão?

Numa sociedade em que um professor negro precisava criar uma escola na casa dele

porque as crianças negras da vizinhança não eram aceitas em outras escolas pelos pais das crianças brancas.

Uma sociedade em que um juiz dizia para uma viúva que ela não poderia usar o dinheiro dela

para educar os filhos dela porque, como pardos, eles deveriam mesmo trabalhar.

E mesmo depois da abolição e mais recentemente.

Uma aluna de uma escola particular na Zona Sul foi vítima de ataques racistas

feitos por colegas da escola num grupo de conversa por aplicativo.

A família registrou o caso na polícia.

Em mensagens num grupo de WhatsApp, um garoto de 14 anos foi alvo de ataques racistas pelos colegas de classe.

Nas mensagens, os alunos praticaram bullying dizendo não saber que negros não eram pobres

ou que podiam ter celular ou estudar e que tinham saudade de quando eles eram escravos.

E esses foram só alguns exemplos, mas eu literalmente poderia citar dezenas, centenas.

Mas olha, se teve uma coisa que o povo preto nunca fez neste país foi ficar parado.

Aceitar a condição de presa.

Ficar de braços cruzados.

Mesmo com todos esses impedimentos e mesmo na época da escravidão,

houve pessoas e houve muitas pessoas que conseguiram estudar.

Que aprenderam a ler para ensinar seus camaradas.

E não só isso.

Pelas regras do próprio jogo que tentava de todo jeito impedir o acesso delas,

pessoas negras que se tornaram intelectuais.

Referências.

Revolucionárias.

Tão incríveis e inspiradoras que não se pode imaginar.

Referências.

Revolucionárias.

Tão incríveis e inspiradoras que hoje dão nome, por exemplo, a este projeto.

Eu sou o Tiago Rogero, este é o podcast do Projeto Quirino, produzido pela Rádio Novelo.

Tem um período que é considerado um dos mais turbulentos da história do Brasil.

Você lembra que em 1831, o Dom Pedro I renunciou e deixou no comando o filho dele,

o Dom Pedro II, que tinha só cinco anos?

Como não dava para deixar uma criança no poder,

ficou acertado que até o menino atingir a maior idade, o Brasil seria governado por um regente.

Daí os políticos se revezaram nesse posto.

No segundo episódio, a gente falou um pouco sobre como os ânimos estavam inflamados nessa época.

Porque, pensa só, não tinham nem dez anos que o Brasil tinha se separado de Portugal.

Daí já rolava um medo de recolonização, o imperador renuncia, entra um monte de político no lugar,

e isso num país gigantesco, com regiões que não tinham nada a ver uma com a outra.

Por causa dessa instabilidade política, começou a ter revolta atrás de revolta pelo país.

Teve, por exemplo, a Rebelião Malê, promovida por africanos muçulmanos na Bahia,

e a gente vai falar mais sobre ela em outro episódio.

Teve também a Revolução Farropilha no Rio Grande do Sul,

a Cabanagem no Grão-Pará, e teve a Balaiada no Maranhão.

A Balaiada estourou por causa de tensões entre o poder local,

as autoridades da província, como se fosse uma sucursal do poder imperial,

versus os proprietários rurais e comerciantes locais.

Uma disputa pelo poder.

E teve muita participação popular.

É considerada a maior revolta popular camponesa de todo o período do Império no Brasil.

Aliás, ela tem esse nome porque um dos líderes era o Manuel Balaio.

Mas não é dele que eu vou falar.

Primeiro, o que eu acho que é interessante, é o nome completo do Cosme.

Cosme Bento Balaio.

É o nome completo do Cosme. Cosme Bento das Chagas.

Esta é a Maria Natividade Silva Rodrigues, professora e historiadora e socióloga.

Ela está falando sobre outro líder da Balaiada, um que entrou para a história como Negro Cosme.

Como é que ele se colocava, qual era o olhar do Cosme dentro dessa sociedade escravista?

Ele sempre teve consciência da sua negritude, ele sabia ler e escrever,

foi um líder da existência e é um símbolo para nós, para todo o povo negro,

inclusive nós aqui do Maranhão, onde aconteceu todo esse emaranhado da Balaiada.

Quando estourou a Balaiada, a fuga de escravizados aumentou.

E essas pessoas foram formando quilombos e acabaram participando da resistência também.

Tem uma estimativa de que o Cosme chegou a comandar tropas de mais de 3 mil quilombolas.

E no meio dessa confusão toda, ele criou uma escola de primeiras letras para ensinar a ler e a escrever

dentro de um quilombo, em Chapadinha, que fica a uns 250 quilômetros de São Luís.

Quando a gente pensa sobre essa questão da escola, era uma necessidade, como ele sabia ler e escrever,

não era possível ter autonomia, não era possível ter justiça e liberdade sem uma escolaridade.

Então, essa escola quebrou um paradigma também do momento, que não era acessível escola.

Ele ousou, ele foi extremamente ousado nessa construção ligada ao outro.

Isso é a visão também do outro, enxergou as crianças que seriam os futuros militantes,

num termo mais de agora, mas que seria esse pessoal que iria construir essa sociedade justa,

liberta, como era o grande sonho de Cosme.

Esse quilombo onde ficava a escola, o nome era Fazenda Lagoa Amarela.

Acabou durando dois anos, até que foi destruído pelas forças imperiais.

A repressão do Império, a Balaiada, foi comandada pelo Duque de Caxias.

Sabe o Duque de Caxias, que é patrono do exército brasileiro?

Ele comandou todas as repressões de grandes revoltas desse período.

Só na Balaiada, a operação matou cerca de 100 mil militares.

Só na Balaiada, a operação matou cerca de 6 mil pessoas.

6 mil pessoas.

É por isso que tem muita gente que chama ele de genocida, mas tem quem chame de pacificador também.

Durante a campanha, houve momentos de divisão entre os eleitores.

Que palavras você daria agora para pacificar o país?

Não sou Caxias, mas sigo o exemplo desse grande herói brasileiro.

Vamos pacificar o Brasil e, sob a construção e as leis, vamos construir uma grande nação.

Curioso que quem começou o governo se autodenominando pacificador

chegue ao fim do mandato sendo chamado de genocida também.

Enfim, mas voltando para o que interessa,

os registros que ainda existem sobre a escola criada pelo negro Cosme

são dos relatórios dessa repressão.

Vários líderes brancos da Balaiada foram presos e depois anistiados,

mas o Cosme foi enforcado em praça pública.

O Clóvis Moura, grande intelectual que a gente citou no episódio passado,

escreveu que o Duque de Caxias só se referia ao Cosme como o infame Cosme.

Era medo.

Não só do Cosme em si, mas do que a figura dele representava e representa.

E ele pensar nessa coisa de educação, pensar no outro.

Isso que eu acho que é interessante do Cosme,

que é uma grande lição que ele deixa pra gente.

Eu não posso mais pensar só em mim.

E esses outros, essa liberdade que eu tanto sonho,

se não tiver escolaridade, ela não é completa.

Chama muita atenção, porque além de um líder de resistência e de vulto,

ele criou uma escola no quilombo,

mas essas iniciativas durante esse período da escravidão,

de pessoas negras criando escolas de primeiras letras, é muito, muito comum.

Olha a Maria Firmino, exemplo, criou também.

E a dela é uma escola mista.

Pois era, mais ousado ainda.

Como é que ela ia juntar menino e menina, já imaginou?

Aí a gente percebe, Tiago, o grau de consciência política e de engajamento

dessas pessoas, mesmo nesse tempo duro, restrito.

E aí eles gritaram.

Então, assim, quando eu penso nessa escola do Cosme,

essa consciência política incrível que ele tinha,

que essa alteridade social só se passa pela questão da educação.

Maria Firmino dos Reis.

A maranhense Firmino foi a primeira mulher a publicar um romance

abolicionista na América Latina e a primeira autora negra a publicar um livro

em todos os países de língua portuguesa.

Isso em 1860.

Maria Firmino dos Reis é, antes de tudo, uma precursora.

Maria Firmino dos Reis é, antes de tudo, uma pioneira,

enquanto mulher e enquanto mulher negra.

Este é o Eduardo de Assis Duarte, escritor, professor e criador do Literafro,

o portal da literatura afro-brasileira.

Uma precursora enquanto autora de literatura e precursora em várias outras instâncias

também no que diz respeito à condição da mulher.

Podemos dizer que foi uma feminista avant-lettre,

uma feminista antes do feminismo realmente desabrochar no século XX.

A Firmino nasceu livre. A mãe dela, Leonor, era uma ex-escravizada e mãe solo.

Aqui nós já estamos na Praça do Panteão, chegando à Praça do Panteão.

Praça do Panteão, em São Luís, capital do Maranhão.

Esse que estava me mostrando tudo por lá é o Agenor Gomes,

ele é autor da biografia Maria Firmino dos Reis e o cotidiano da escravidão no Brasil.

Na biblioteca, o Nascimento Moras Filho pesquisou, ele encontrou Maria Firmino.

Acredito que o primeiro encontro dele com Maria Firmino foi aqui, né, Agenor?

E esta é Adilecia Adler, professora, escritora e pesquisadora,

e uma das responsáveis por ter feito a história da Firmino chegar aos dias de hoje.

Foi nessa biblioteca que Nascimento Moras Filho fez muitas das suas pesquisas.

Ele encontrou o trabalho de Maria Firmino, foi no porão da biblioteca de pesquisa.

E dali a gente foi até outro ponto do centro de São Luís.

Olha o Palácio dos Leões, aqui é o muro do palácio.

O jardim fica atrás, é lindíssimo. Olha só a construção, a arquitetura do palácio.

Aqui é o Palácio do Governo, já na época de Maria Firmino já existia esse palácio.

Quando ela é aprovada no concurso público,

para a cadeira de primeiras letras do sexo feminino em Guimarães,

e depois ela é convocada para vir receber o ato de nomeação aqui no Palácio do Governo.

Guimarães é o nome dessa cidade do interior do Maranhão onde a Firmino morou.

Em 1847, olha lá, essa filha de escrava negra, ela faz um concurso naquela situação, olha lá,

em plena escravidão, ela consegue ser aprovada no concurso público,

com todas aquelas barreiras da sua etnia, de ser mulher, tudo isso em 1847.

E é absolutamente revolucionário, porque havia escolas para professores de ensino básico.

Mas essas escolas eram todas destinadas aos rapazes.

A maioria dos professores primários, vamos chamar assim, eram homens.

Depois que ela passou no concurso, ela voltou para Guimarães,

que fica a mais ou menos uns 200 quilômetros de São Luís.

Mas na verdade é um pouco mais longe, porque você precisa pegar um ferry boat

para atravessar a Baía de São Marcos, daí mais umas três horas de carro.

E foi isso que eu fiz.

A casa era dessas duas, era daqui até lá naquele outro...

Era bem no centro, na praça.

E aqui foi a placa que foi colocada naquele período.

Esta casa foi escola e residência de Maria Firmina dos Reis.

Este é o Antônio Marcos, cientista social, que me recebeu lá em Guimarães,

onde a Firmina morou e deu aula por quase toda a vida dela.

Aqui tinham várias fazendas, tinha um barracão que era feito para armazenar produtos,

ela teria pedido aquele barracão, já aposentada, para lecionar,

abrindo para meninos, meninas, pessoas de diversas origens sociais.

Dizem que ela também foi pioneira no transporte escolar,

porque ela alugava carro de boi, ou chamava o pessoal de carro de boi,

para levar os alunos para assistir aula.

Uma outra coisa importante sobre a escola mista

é que não era só uma questão de juntar menino e menina na mesma sala,

o que já foi muito disruptivo para a época.

A criação de uma sala de aula mista naquela época

implicava uma coisa que é absolutamente nova,

que é fornecer a meninas e meninos o mesmo conteúdo.

De novo, o professor Eduardo de Assis Duarte.

Isso era absolutamente revolucionário para a época,

já que o currículo da educação feminina

mal passava das primeiras letras e das primeiras operações aritméticas,

e incluía bordado, música e tudo mais que fosse necessário

a uma futura mãe de família daquela época.

Desde muito tempo no Brasil, os currículos eram diferenciados

de acordo com o sexo da criança.

Meninas praticamente eram educadas só para serem donas de casa e nada mais.

Isso as que podiam estudar, que como a gente viu,

não era o caso do curso de educação feminina.

E de toda a população.

Eu sou a professora Cláudia Cristina Rodrigues da Silva.

Sou professora de língua portuguesa

do Centro de Ensino Nossa Senhora da Asunção, em Guimarães.

Não faz muito tempo que a gente desenvolve um trabalho

voltado para falar da professora Maria Firmina.

Porque o que nós tínhamos de material sobre Maria Firmina era muito pouco.

Até porque os nossos livros nem falam quase de mulheres.

É verdade. Os escritores são todos homens.

Todos homens e brancos.

E brancos. A gente não vê a mulher.

Eu estudei literatura, me formei aqui, nunca estudei numa mulher.

E para os alunos daqui de Guimarães, saber que teve essa intelectual que morou aqui,

que escreveu um romance abolicionista totalmente à frente do seu tempo,

que diferença faz para eles? Como você sente isso?

É uma diferença muito grande porque eles se identificam.

Porque nós temos muitas comunidades quilombolas e os nossos alunos

vêm dessas comunidades. Então ter alguém como referência nacional e até mundial

para eles é assim. Eles se sentem valorizados.

Porque Maria Firmina Negra morou em Guimarães e para os alunos

eles se sentem valorizados, importantes.

Ainda mais que as famílias daqui todas são afrodescendentes.

Tem muita comunidade quilombola nessa região entre São Luís e Guimarães.

E aqui fica, por exemplo, Alcântara, onde centenas de comunidades quilombolas

estão lutando contra a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara,

um complexo da Força Aérea Brasileira construído durante a ditadura militar

e que foi foco de um acordo assinado entre o Bolsonaro e o Donald Trump em 2019.

Para que não haja mais remoções dessas famílias,

as comunidades têm resistido há anos no judiciário, inclusive em tribunais internacionais.

E a base para uma dessas ações foi a pesquisa e o livro desse cara.

Bom, meu nome é Davi Pereira Júnior, mas aqui dentro do território todo mundo me chama de Júnior.

Onde eu fui crescido, socializado com as pessoas, eu sou nascido e criado aqui no Itamatatiwa.

Itamatatiwa é o nome da comunidade quilombola, quer dizer, terra, água e peixe.

Depois de estudar os primeiros anos todos na comunidade,

o Davi fez graduação em História, mestrado em Antropologia

e depois doutorado nos Estados Unidos em estudos da América Latina e da diáspora africana.

Os pais vinham e construíam a escola para poder os filhos estudarem,

porque a prefeitura nunca tinha ligado fazer o prédio, por exemplo, de alvenaria.

Então a escola era aqui.

Era uma escola de taipa que tinha mais ou menos aí uns quatro metros de frente com uns oito de fundo.

Era uma sala, né, que tinha cadeira de madeira.

Tinha aí umas 20, 25 cadeiras de madeira e tinha um quadro negro lá atrás.

Ela era coberta de palha, né, e tapada de barro, o chão batido também de barro.

Na época do Davi, essa escola ia só até a terceira série.

Então, para seguir os estudos, precisava ir até a cidade de Alcântara,

que fica a uns 60 quilômetros de Itamatatiwa.

Precisava ir e voltar todo dia, mas não tinha transporte público escolar.

Daí tinha a outra opção.

Terminar a terceira série e ficar fazendo a terceira série, repetindo, repetindo, repetindo, repetindo, repetindo.

No meu caso, eu repeti três vezes.

A maioria das pessoas acabavam desistindo, porque a escola perde a graça.

É como se vocês acordassem de manhã e repetissem todo o seu dia um déjà vu, que você faz isso todo ano.

E eu acho que muito da minha não desistir do processo de educação também teve pelo fato da minha mãe ser professora, né?

Então isso me abriu a possibilidade de continuar na escola e também dela não deixar que eu me evadisse da escola.

A mãe do Davi era professora dessa escola da comunidade.

Qual era o nome dela?

Maria Tereza de Jesus Pereira.

Ela nasceu aqui?

Ela nasceu aqui.

Essas formas de organização eram bem interessantes, né?

Porque aí você se organiza em torno da escola também, né?

Porque a escola também é um movimento de mobilização da comunidade no sentido de as pessoas terem a consciência.

Pessoas que nunca foram à escola, por exemplo, que nunca tiveram a oportunidade de ir à escola,

mas tinham consciência da necessidade dos filhos poderem estudar.

Isso fazia com que, por exemplo, o processo de construção de escola fosse um processo que as pessoas se engajavam.

Histórias de superação, contar essas histórias carregam um risco.

O risco de cair no discurso raso da meritocracia.

Como se esses casos, que são a exceção, fossem a resposta para tudo.

Como se todos os anos de impedimento de acesso ao ensino antes da abolição

e todos os anos de ensino precarizado e preconceituoso depois da abolição,

como se tudo isso pudesse ser resolvido se as pessoas tivessem força de vontade.

Se fossem mais como Cosme, como a Firmina, como a mãe do Davi.

O que eu vou dizer agora é uma obviedade, mas a gente precisa lembrar.

Educação é um dever do Estado para todos os seus cidadãos.

E para quem ainda cai na balela da meritocracia,

você lembra, porque a gente falou sobre isso no segundo episódio,

quem que realmente trabalhou e se esforçou para produzir todas as riquezas do Brasil.

Para possibilitar que filhos de brancos pudessem fazer faculdade até fora do país.

Para gerar as heranças que hoje pagam a educação dos descendentes desses senhores.

Força de vontade, esforço, luta, mérito.

Nada disso nunca faltou para as pessoas negras no Brasil.

Se não fosse por tudo isso, nós hoje nem estaríamos aqui.

Porque o que o Estado brasileiro queria, depois que foi obrigado a acabar com a escravidão

e que não via mais valor nenhum na parcela negra da sua população,

o que o Estado brasileiro queria, como ainda quer, é eliminar essa parcela da população.

Mas a gente está aqui, mais da metade da população. Maioria.

E o próprio Quirino, este projeto, é um resultado direto dessas pessoas que nunca desistiram de lutar.

E está na hora de você entender por que o projeto tem este nome.

Em 1851, nasceu um menino em Santo Amaro da Purificação, na Bahia.

Ele ficou órfão aos quatro anos de idade.

Os pais morreram de uma epidemia de cólera que atingiu o sertão baiano.

O menino, que era livre, foi levado para Salvador e entregue para um tutor.

O Manuel Correa Garcia, que é o tutor dele,

ele foi um dos primeiros professores e fundadores de uma escola no Brasil

ou seja, uma escola que treinava professores.

Esta é a Sabrina Gladhill, pesquisadora e escritora inglesa que morou por muitos anos no Brasil.

E ela está contando que foi esse tutor que ensinou para o menino as primeiras letras.

E naquela época era extremamente raro para qualquer pessoa branca ou negra saber ler e escrever.

Em 1864, teve início a Guerra do Paraguai.

Em 1864, teve início a Guerra do Paraguai.

4. O colono preto - Part 1 4. Der schwarze Siedler - Teil 1 4. The Black Settler - Part 1 4. Le colon noir - Partie 1

Uma polêmica em sala de aula. A lei sancionada pela presidente Dilma, que cria cotas para estudantes de escolas públicas nas universidades federais, divide opiniões.

De um lado, os alunos do ensino particular que são contra.

Justamente porque diminui a quantidade de vagas aumentando a relação com o didato vagas.

Você tem que estudar mais pra isso, colocar mais de você.

Agora a gente talvez tenha que estudar mais, abedificar mais de outras coisas.

Talvez até do tempo de diversão, pra buscar uma coisa que era menos impossível.

Em 1760, uma mulher, o nome dela era Isabel, fez um pedido pro juiz de órfãos de Mariana, em Minas Gerais.

O marido da Isabel tinha morrido e quem administrava a herança não era ela, mas o juiz.

A Isabel estava pedindo uma quantia pra que os dois filhos dela pudessem continuar a estudar, pedindo dinheiro dela da herança do marido dela, do pai dos filhos dela.

Ela argumentou que um dos garotos estava estudando pra virar boticário, que é quem nessa época fazia os medicamentos, seria o equivalente hoje ao farmacêutico.

E o outro filho, mais novinho, estava aprendendo a ler e a escrever.

O juiz disse não.

Falou pra Isabel que como os filhos dela eram pardos, e foi essa a palavra que ele usou, como eles eram pardos, que não se justificava gastar dinheiro com educação.

E que o que eles deveriam mesmo fazer era trabalhar.

As cotas raciais foram aprovadas há pouco por unanimidade.

Mas acima dessa discussão há um princípio que não podemos ignorar.

Neste país, todo cidadão é igual perante a lei, digno das mesmas oportunidades, seja branco, negro ou índio.

Em 1856, um professor, o nome dele era Pretestato dos Passos e Silva, enviou um dossiê pro Império.

Ele estava tentando há algum tempo já abrir uma escola no Rio de Janeiro.

E o principal argumento dele era, olha, eu estou sendo convocado por várias famílias que estão pedindo pra eu montar um curso pras suas crianças, de cor preta e parda.

O Pretestato dizia lá que em outras escolas,

O professor Pretestato ainda escreveu que, por causa do preconceito, as crianças negras não estavam recebendo uma ampla instrução por estarem coagidas.

E que na escola dele, esses casos de discriminação não aconteceriam, por ser ele, o Pretestato, um homem negro.

Em 1967, a revista Realidade, que não existe mais, resolveu fazer um experimento.

Colocou dois repórteres para passarem pelas mesmas situações em Salvador, na Bahia.

Um era negro, um era branco.

Um desses testes era, por exemplo, tentar matricular uma criança numa escola infantil.

Não levando a criança junto, claro.

Mas o repórter, se passando por um pai, chegava, pedia pra conhecer a estrutura e perguntava se tinha vaga.

E foi lá o primeiro repórter.

A diretora, com toda cordialidade, disse pra ele que, lamentavelmente, não tinha mais lugar.

Passou um tempinho, lá foi o segundo.

E a diretora sorriu muito, consultou a lista de matrícula e concluiu alegre.

O senhor tem sorte, ainda tenho vagas. Quer fazer a matrícula já?

Eu preciso dizer qual que era o branco e qual que era o negro?

Vocês estão enganando os negros, achando que eles vão fazer faculdade, vão conseguir.

Vai ter muito negro laranja nessa situação aqui. Laranja.

Vão ser enganados. Vai cozinhar aqui, briga entre nós.

Estamos alimentando ódio entre brancos e negros.

A primeira constituição do Brasil, aquela lá de 1824, imposta pelo Dom Pedro I, é também a mais longeva da nossa história.

Ela durou todo o império, só caiu em 1891.

E essa nossa primeira constituição previa instrução primária e gratuita para todos os cidadãos.

E você lembra, porque a gente já falou sobre isso lá no primeiro episódio, quem que era considerado cidadão nessa época, né, pela lei.

Toda pessoa livre, nascida no Brasil, ou então portugueses que já moravam aqui desde antes da independência.

Quem ficava de fora, quem não era cidadão e por isso não teria direito à educação,

eram os africanos, ainda que fossem livres, e os escravizados.

Dez anos depois, um ato adicional determinou que os estados, na época eram províncias, é que deveriam legislar sobre educação.

Daí teve estado que achou melhor reforçar essa proibição para pessoas escravizadas em sala de aula.

Minas Gerais e Goiás aprovaram em 1935, leis dizendo que

somente as pessoas livres podem frequentar as escolas públicas.

Tipo, isso já estava claro pela constituição, mas eles precisavam reforçar.

Em 1954, na corte teve um decreto que regulamentou o ensino primário e secundário

e dizia lá que os escravizados não seriam admitidos em nenhum dos dois.

Daí nos anos 70, bom, vai vendo.

Na escola, você deve ter aprendido sobre a Lei do Ventre Livre.

A gente vai falar mais sobre ela em outro episódio, mas resumindo bem,

foi uma lei aprovada em 1871 que dizia que

Daí os senhores podiam escolher quando eles dariam a liberdade para a criança.

Aos 8 anos de idade, recebendo uma indenização do império,

ou aos 21 anos, quando a criança já era um adulto e aí seria sem indenização.

Quer dizer, todos esses anos de trabalho forçado da criança,

depois adolescente, contariam como indenização.

Segundo um historiador que estudou a aplicação da lei, o Ricardo Salles,

em 95% dos casos, os senhores escolheram a segunda opção.

Bom, mas o que isso tem a ver com educação?

É que se o senhor escolhesse a segunda opção, ele também era obrigado a educar aqueles jovens.

Daí teve Estado como Minas Gerais, e Minas Gerais,

mas também Bahia, Santa Catarina, Goiás, Paraíba e São Paulo

que fizeram novas leis reforçando que escravizados não poderiam frequentar a sala de aula.

Para que nem mesmo esses jovens que dali a alguns anos ficariam livres pudessem estudar.

Olha o nível de crueldade disso.

E assim, mesmo para quem era livre e por isso tinha direito de estudar,

mesmo para quem era, na teoria, um cidadão brasileiro,

o que era o acesso à educação numa sociedade alicerçada na escravidão?

Numa sociedade em que um professor negro precisava criar uma escola na casa dele

porque as crianças negras da vizinhança não eram aceitas em outras escolas pelos pais das crianças brancas.

Uma sociedade em que um juiz dizia para uma viúva que ela não poderia usar o dinheiro dela

para educar os filhos dela porque, como pardos, eles deveriam mesmo trabalhar.

E mesmo depois da abolição e mais recentemente.

Uma aluna de uma escola particular na Zona Sul foi vítima de ataques racistas

feitos por colegas da escola num grupo de conversa por aplicativo.

A família registrou o caso na polícia.

Em mensagens num grupo de WhatsApp, um garoto de 14 anos foi alvo de ataques racistas pelos colegas de classe.

Nas mensagens, os alunos praticaram bullying dizendo não saber que negros não eram pobres

ou que podiam ter celular ou estudar e que tinham saudade de quando eles eram escravos.

E esses foram só alguns exemplos, mas eu literalmente poderia citar dezenas, centenas.

Mas olha, se teve uma coisa que o povo preto nunca fez neste país foi ficar parado.

Aceitar a condição de presa.

Ficar de braços cruzados.

Mesmo com todos esses impedimentos e mesmo na época da escravidão,

houve pessoas e houve muitas pessoas que conseguiram estudar.

Que aprenderam a ler para ensinar seus camaradas.

E não só isso.

Pelas regras do próprio jogo que tentava de todo jeito impedir o acesso delas,

pessoas negras que se tornaram intelectuais.

Referências.

Revolucionárias.

Tão incríveis e inspiradoras que não se pode imaginar.

Referências.

Revolucionárias.

Tão incríveis e inspiradoras que hoje dão nome, por exemplo, a este projeto.

Eu sou o Tiago Rogero, este é o podcast do Projeto Quirino, produzido pela Rádio Novelo.

Tem um período que é considerado um dos mais turbulentos da história do Brasil.

Você lembra que em 1831, o Dom Pedro I renunciou e deixou no comando o filho dele,

o Dom Pedro II, que tinha só cinco anos?

Como não dava para deixar uma criança no poder,

ficou acertado que até o menino atingir a maior idade, o Brasil seria governado por um regente.

Daí os políticos se revezaram nesse posto.

No segundo episódio, a gente falou um pouco sobre como os ânimos estavam inflamados nessa época.

Porque, pensa só, não tinham nem dez anos que o Brasil tinha se separado de Portugal.

Daí já rolava um medo de recolonização, o imperador renuncia, entra um monte de político no lugar,

e isso num país gigantesco, com regiões que não tinham nada a ver uma com a outra.

Por causa dessa instabilidade política, começou a ter revolta atrás de revolta pelo país.

Teve, por exemplo, a Rebelião Malê, promovida por africanos muçulmanos na Bahia,

e a gente vai falar mais sobre ela em outro episódio.

Teve também a Revolução Farropilha no Rio Grande do Sul,

a Cabanagem no Grão-Pará, e teve a Balaiada no Maranhão.

A Balaiada estourou por causa de tensões entre o poder local,

as autoridades da província, como se fosse uma sucursal do poder imperial,

versus os proprietários rurais e comerciantes locais.

Uma disputa pelo poder.

E teve muita participação popular.

É considerada a maior revolta popular camponesa de todo o período do Império no Brasil.

Aliás, ela tem esse nome porque um dos líderes era o Manuel Balaio.

Mas não é dele que eu vou falar.

Primeiro, o que eu acho que é interessante, é o nome completo do Cosme.

Cosme Bento Balaio.

É o nome completo do Cosme. Cosme Bento das Chagas.

Esta é a Maria Natividade Silva Rodrigues, professora e historiadora e socióloga.

Ela está falando sobre outro líder da Balaiada, um que entrou para a história como Negro Cosme.

Como é que ele se colocava, qual era o olhar do Cosme dentro dessa sociedade escravista?

Ele sempre teve consciência da sua negritude, ele sabia ler e escrever,

foi um líder da existência e é um símbolo para nós, para todo o povo negro,

inclusive nós aqui do Maranhão, onde aconteceu todo esse emaranhado da Balaiada.

Quando estourou a Balaiada, a fuga de escravizados aumentou.

E essas pessoas foram formando quilombos e acabaram participando da resistência também.

Tem uma estimativa de que o Cosme chegou a comandar tropas de mais de 3 mil quilombolas.

E no meio dessa confusão toda, ele criou uma escola de primeiras letras para ensinar a ler e a escrever

dentro de um quilombo, em Chapadinha, que fica a uns 250 quilômetros de São Luís.

Quando a gente pensa sobre essa questão da escola, era uma necessidade, como ele sabia ler e escrever,

não era possível ter autonomia, não era possível ter justiça e liberdade sem uma escolaridade.

Então, essa escola quebrou um paradigma também do momento, que não era acessível escola.

Ele ousou, ele foi extremamente ousado nessa construção ligada ao outro.

Isso é a visão também do outro, enxergou as crianças que seriam os futuros militantes,

num termo mais de agora, mas que seria esse pessoal que iria construir essa sociedade justa,

liberta, como era o grande sonho de Cosme.

Esse quilombo onde ficava a escola, o nome era Fazenda Lagoa Amarela.

Acabou durando dois anos, até que foi destruído pelas forças imperiais.

A repressão do Império, a Balaiada, foi comandada pelo Duque de Caxias.

Sabe o Duque de Caxias, que é patrono do exército brasileiro?

Ele comandou todas as repressões de grandes revoltas desse período.

Só na Balaiada, a operação matou cerca de 100 mil militares.

Só na Balaiada, a operação matou cerca de 6 mil pessoas.

6 mil pessoas.

É por isso que tem muita gente que chama ele de genocida, mas tem quem chame de pacificador também.

Durante a campanha, houve momentos de divisão entre os eleitores.

Que palavras você daria agora para pacificar o país?

Não sou Caxias, mas sigo o exemplo desse grande herói brasileiro.

Vamos pacificar o Brasil e, sob a construção e as leis, vamos construir uma grande nação.

Curioso que quem começou o governo se autodenominando pacificador

chegue ao fim do mandato sendo chamado de genocida também.

Enfim, mas voltando para o que interessa,

os registros que ainda existem sobre a escola criada pelo negro Cosme

são dos relatórios dessa repressão.

Vários líderes brancos da Balaiada foram presos e depois anistiados,

mas o Cosme foi enforcado em praça pública.

O Clóvis Moura, grande intelectual que a gente citou no episódio passado,

escreveu que o Duque de Caxias só se referia ao Cosme como o infame Cosme.

Era medo.

Não só do Cosme em si, mas do que a figura dele representava e representa.

E ele pensar nessa coisa de educação, pensar no outro.

Isso que eu acho que é interessante do Cosme,

que é uma grande lição que ele deixa pra gente.

Eu não posso mais pensar só em mim.

E esses outros, essa liberdade que eu tanto sonho,

se não tiver escolaridade, ela não é completa.

Chama muita atenção, porque além de um líder de resistência e de vulto,

ele criou uma escola no quilombo,

mas essas iniciativas durante esse período da escravidão,

de pessoas negras criando escolas de primeiras letras, é muito, muito comum.

Olha a Maria Firmino, exemplo, criou também.

E a dela é uma escola mista.

Pois era, mais ousado ainda.

Como é que ela ia juntar menino e menina, já imaginou?

Aí a gente percebe, Tiago, o grau de consciência política e de engajamento

dessas pessoas, mesmo nesse tempo duro, restrito.

E aí eles gritaram.

Então, assim, quando eu penso nessa escola do Cosme,

essa consciência política incrível que ele tinha,

que essa alteridade social só se passa pela questão da educação.

Maria Firmino dos Reis.

A maranhense Firmino foi a primeira mulher a publicar um romance

abolicionista na América Latina e a primeira autora negra a publicar um livro

em todos os países de língua portuguesa.

Isso em 1860.

Maria Firmino dos Reis é, antes de tudo, uma precursora.

Maria Firmino dos Reis é, antes de tudo, uma pioneira,

enquanto mulher e enquanto mulher negra.

Este é o Eduardo de Assis Duarte, escritor, professor e criador do Literafro,

o portal da literatura afro-brasileira.

Uma precursora enquanto autora de literatura e precursora em várias outras instâncias

também no que diz respeito à condição da mulher.

Podemos dizer que foi uma feminista avant-lettre,

uma feminista antes do feminismo realmente desabrochar no século XX.

A Firmino nasceu livre. A mãe dela, Leonor, era uma ex-escravizada e mãe solo.

Aqui nós já estamos na Praça do Panteão, chegando à Praça do Panteão.

Praça do Panteão, em São Luís, capital do Maranhão.

Esse que estava me mostrando tudo por lá é o Agenor Gomes,

ele é autor da biografia Maria Firmino dos Reis e o cotidiano da escravidão no Brasil.

Na biblioteca, o Nascimento Moras Filho pesquisou, ele encontrou Maria Firmino.

Acredito que o primeiro encontro dele com Maria Firmino foi aqui, né, Agenor?

E esta é Adilecia Adler, professora, escritora e pesquisadora,

e uma das responsáveis por ter feito a história da Firmino chegar aos dias de hoje.

Foi nessa biblioteca que Nascimento Moras Filho fez muitas das suas pesquisas.

Ele encontrou o trabalho de Maria Firmino, foi no porão da biblioteca de pesquisa.

E dali a gente foi até outro ponto do centro de São Luís.

Olha o Palácio dos Leões, aqui é o muro do palácio.

O jardim fica atrás, é lindíssimo. Olha só a construção, a arquitetura do palácio.

Aqui é o Palácio do Governo, já na época de Maria Firmino já existia esse palácio.

Quando ela é aprovada no concurso público,

para a cadeira de primeiras letras do sexo feminino em Guimarães,

e depois ela é convocada para vir receber o ato de nomeação aqui no Palácio do Governo.

Guimarães é o nome dessa cidade do interior do Maranhão onde a Firmino morou.

Em 1847, olha lá, essa filha de escrava negra, ela faz um concurso naquela situação, olha lá,

em plena escravidão, ela consegue ser aprovada no concurso público,

com todas aquelas barreiras da sua etnia, de ser mulher, tudo isso em 1847.

E é absolutamente revolucionário, porque havia escolas para professores de ensino básico.

Mas essas escolas eram todas destinadas aos rapazes.

A maioria dos professores primários, vamos chamar assim, eram homens.

Depois que ela passou no concurso, ela voltou para Guimarães,

que fica a mais ou menos uns 200 quilômetros de São Luís.

Mas na verdade é um pouco mais longe, porque você precisa pegar um ferry boat

para atravessar a Baía de São Marcos, daí mais umas três horas de carro.

E foi isso que eu fiz.

A casa era dessas duas, era daqui até lá naquele outro...

Era bem no centro, na praça.

E aqui foi a placa que foi colocada naquele período.

Esta casa foi escola e residência de Maria Firmina dos Reis.

Este é o Antônio Marcos, cientista social, que me recebeu lá em Guimarães,

onde a Firmina morou e deu aula por quase toda a vida dela.

Aqui tinham várias fazendas, tinha um barracão que era feito para armazenar produtos,

ela teria pedido aquele barracão, já aposentada, para lecionar,

abrindo para meninos, meninas, pessoas de diversas origens sociais.

Dizem que ela também foi pioneira no transporte escolar,

porque ela alugava carro de boi, ou chamava o pessoal de carro de boi,

para levar os alunos para assistir aula.

Uma outra coisa importante sobre a escola mista

é que não era só uma questão de juntar menino e menina na mesma sala,

o que já foi muito disruptivo para a época.

A criação de uma sala de aula mista naquela época

implicava uma coisa que é absolutamente nova,

que é fornecer a meninas e meninos o mesmo conteúdo.

De novo, o professor Eduardo de Assis Duarte.

Isso era absolutamente revolucionário para a época,

já que o currículo da educação feminina

mal passava das primeiras letras e das primeiras operações aritméticas,

e incluía bordado, música e tudo mais que fosse necessário

a uma futura mãe de família daquela época.

Desde muito tempo no Brasil, os currículos eram diferenciados

de acordo com o sexo da criança.

Meninas praticamente eram educadas só para serem donas de casa e nada mais.

Isso as que podiam estudar, que como a gente viu,

não era o caso do curso de educação feminina.

E de toda a população.

Eu sou a professora Cláudia Cristina Rodrigues da Silva.

Sou professora de língua portuguesa

do Centro de Ensino Nossa Senhora da Asunção, em Guimarães.

Não faz muito tempo que a gente desenvolve um trabalho

voltado para falar da professora Maria Firmina.

Porque o que nós tínhamos de material sobre Maria Firmina era muito pouco.

Até porque os nossos livros nem falam quase de mulheres.

É verdade. Os escritores são todos homens.

Todos homens e brancos.

E brancos. A gente não vê a mulher.

Eu estudei literatura, me formei aqui, nunca estudei numa mulher.

E para os alunos daqui de Guimarães, saber que teve essa intelectual que morou aqui,

que escreveu um romance abolicionista totalmente à frente do seu tempo,

que diferença faz para eles? Como você sente isso?

É uma diferença muito grande porque eles se identificam.

Porque nós temos muitas comunidades quilombolas e os nossos alunos

vêm dessas comunidades. Então ter alguém como referência nacional e até mundial

para eles é assim. Eles se sentem valorizados.

Porque Maria Firmina Negra morou em Guimarães e para os alunos

eles se sentem valorizados, importantes.

Ainda mais que as famílias daqui todas são afrodescendentes.

Tem muita comunidade quilombola nessa região entre São Luís e Guimarães.

E aqui fica, por exemplo, Alcântara, onde centenas de comunidades quilombolas

estão lutando contra a instalação do Centro de Lançamento de Alcântara,

um complexo da Força Aérea Brasileira construído durante a ditadura militar

e que foi foco de um acordo assinado entre o Bolsonaro e o Donald Trump em 2019.

Para que não haja mais remoções dessas famílias,

as comunidades têm resistido há anos no judiciário, inclusive em tribunais internacionais.

E a base para uma dessas ações foi a pesquisa e o livro desse cara.

Bom, meu nome é Davi Pereira Júnior, mas aqui dentro do território todo mundo me chama de Júnior.

Onde eu fui crescido, socializado com as pessoas, eu sou nascido e criado aqui no Itamatatiwa.

Itamatatiwa é o nome da comunidade quilombola, quer dizer, terra, água e peixe.

Depois de estudar os primeiros anos todos na comunidade,

o Davi fez graduação em História, mestrado em Antropologia

e depois doutorado nos Estados Unidos em estudos da América Latina e da diáspora africana.

Os pais vinham e construíam a escola para poder os filhos estudarem,

porque a prefeitura nunca tinha ligado fazer o prédio, por exemplo, de alvenaria.

Então a escola era aqui.

Era uma escola de taipa que tinha mais ou menos aí uns quatro metros de frente com uns oito de fundo.

Era uma sala, né, que tinha cadeira de madeira.

Tinha aí umas 20, 25 cadeiras de madeira e tinha um quadro negro lá atrás.

Ela era coberta de palha, né, e tapada de barro, o chão batido também de barro.

Na época do Davi, essa escola ia só até a terceira série.

Então, para seguir os estudos, precisava ir até a cidade de Alcântara,

que fica a uns 60 quilômetros de Itamatatiwa.

Precisava ir e voltar todo dia, mas não tinha transporte público escolar.

Daí tinha a outra opção.

Terminar a terceira série e ficar fazendo a terceira série, repetindo, repetindo, repetindo, repetindo, repetindo.

No meu caso, eu repeti três vezes.

A maioria das pessoas acabavam desistindo, porque a escola perde a graça.

É como se vocês acordassem de manhã e repetissem todo o seu dia um déjà vu, que você faz isso todo ano.

E eu acho que muito da minha não desistir do processo de educação também teve pelo fato da minha mãe ser professora, né?

Então isso me abriu a possibilidade de continuar na escola e também dela não deixar que eu me evadisse da escola.

A mãe do Davi era professora dessa escola da comunidade.

Qual era o nome dela?

Maria Tereza de Jesus Pereira.

Ela nasceu aqui?

Ela nasceu aqui.

Essas formas de organização eram bem interessantes, né?

Porque aí você se organiza em torno da escola também, né?

Porque a escola também é um movimento de mobilização da comunidade no sentido de as pessoas terem a consciência.

Pessoas que nunca foram à escola, por exemplo, que nunca tiveram a oportunidade de ir à escola,

mas tinham consciência da necessidade dos filhos poderem estudar.

Isso fazia com que, por exemplo, o processo de construção de escola fosse um processo que as pessoas se engajavam.

Histórias de superação, contar essas histórias carregam um risco.

O risco de cair no discurso raso da meritocracia.

Como se esses casos, que são a exceção, fossem a resposta para tudo.

Como se todos os anos de impedimento de acesso ao ensino antes da abolição

e todos os anos de ensino precarizado e preconceituoso depois da abolição,

como se tudo isso pudesse ser resolvido se as pessoas tivessem força de vontade.

Se fossem mais como Cosme, como a Firmina, como a mãe do Davi.

O que eu vou dizer agora é uma obviedade, mas a gente precisa lembrar.

Educação é um dever do Estado para todos os seus cidadãos.

E para quem ainda cai na balela da meritocracia,

você lembra, porque a gente falou sobre isso no segundo episódio,

quem que realmente trabalhou e se esforçou para produzir todas as riquezas do Brasil.

Para possibilitar que filhos de brancos pudessem fazer faculdade até fora do país.

Para gerar as heranças que hoje pagam a educação dos descendentes desses senhores.

Força de vontade, esforço, luta, mérito.

Nada disso nunca faltou para as pessoas negras no Brasil.

Se não fosse por tudo isso, nós hoje nem estaríamos aqui.

Porque o que o Estado brasileiro queria, depois que foi obrigado a acabar com a escravidão

e que não via mais valor nenhum na parcela negra da sua população,

o que o Estado brasileiro queria, como ainda quer, é eliminar essa parcela da população.

Mas a gente está aqui, mais da metade da população. Maioria.

E o próprio Quirino, este projeto, é um resultado direto dessas pessoas que nunca desistiram de lutar.

E está na hora de você entender por que o projeto tem este nome.

Em 1851, nasceu um menino em Santo Amaro da Purificação, na Bahia.

Ele ficou órfão aos quatro anos de idade.

Os pais morreram de uma epidemia de cólera que atingiu o sertão baiano.

O menino, que era livre, foi levado para Salvador e entregue para um tutor.

O Manuel Correa Garcia, que é o tutor dele,

ele foi um dos primeiros professores e fundadores de uma escola no Brasil

ou seja, uma escola que treinava professores.

Esta é a Sabrina Gladhill, pesquisadora e escritora inglesa que morou por muitos anos no Brasil.

E ela está contando que foi esse tutor que ensinou para o menino as primeiras letras.

E naquela época era extremamente raro para qualquer pessoa branca ou negra saber ler e escrever.

Em 1864, teve início a Guerra do Paraguai.

Em 1864, teve início a Guerra do Paraguai.