Onde aconteceu o 1º casamento gay, há exatos 20 anos
Ao longo da história da Humanidade, o amor entre pessoas do mesmo sexo foi constantemente
perseguido e punido. Casais homossexuais se viram obrigados a disfarçar seus sentimentos,
enquanto religião, polícia e Justiça eram usados para intimidar e punir relações amorosas.
Sem falar que homossexuais não apenas tiveram que esconder o amor. Outros direitos,
comuns a casais heterossexuais, eram e, em alguns lugares, ainda são bloqueados.
Mas, finalmente, na virada do século passado para este século, isso começou a mudar.
Neste mês de abril são comemorados vinte anos desde o primeiro casamento
oficial entre pessoas do mesmo sexo, ocorrido na Holanda, em 2001.
Sou Camilla Veras Mota, da BBC News Brasil, e este é mais um vídeo da nossa
série 21 notícias que marcaram o século 21.
Vou contar como os países vêm evoluindo no reconhecimento de direitos e derrubando preconceitos,
até mesmo dentro de instituições religiosas que, por séculos, discriminaram a homoafetividade.
Pra começar, veja estaa declarações . "Homossexuais têm o direito de estar numa família"
"Eles são filhos de Deus e têm direito a uma família."
“Nós temos que criar uma lei de união civil. Deste jeito, eles estão cobertos”
Sabe quem fez estas declarações? O Papa Francisco, em outubro de 2020,
para um documentário chamado Francesco. Destaco esta fala do pontífice porque a
religião sempre foi usada para justificar limites e até mesmo agressões às pessoas homossexuais.
A Religião Católica, por exemplo, resiste a mais igualdade quando o assunto é casamento
homoafetivo. E, assim, interfere na forma como os Estados nacionais tratam do assunto.
Por isso, o papa citar a união legal, civil, simboliza uma mudança importante.
Até porque, a união civil foi a primeira forma de reconhecimento de parcerias homoafetivas
a quebrar a barreira da proibição e do preconceito. Antes mesmo do casamento.
Nos anos 60, havia países, como o Reino Unido, onde ser gay era crime. Em outros,
como Estados Unidos e Brasil, ser homossexual era considerado uma doença mental.
Até hoje, estima-se que mais de sessenta países – principalmente na Ásia e na
África - considerem a homossexualidade um crime. A repressão foi, ironicamente, o gatilho para um
dos mais importantes movimentos em defesa dos direitos e liberdades da História: Stonewall.
Em 1969, quando a polícia invadiu o bar Stonewall Inn, em Nova York,
tirou à força duzentas pessoas e bateu em muitas. Em resposta, a partir dali, uma série de marchas
tomaram as ruas de Nova York exigindo igualdade. Já em mil novecentos e setenta e dois, a primeira
marcha do orgulho gay aconteceu em Londres. Logo, ocorreriam em diversos lugares, sempre
dando destaque ao acesso a direitos iguais. Vinte anos se passaram desde os primeiros
protestos em Nova York até que, finalmente, a união entre pessoas do mesmo sexo fosse permitida.
E, veja, aqui estamos falando de união civil, não de casamento. Na união civil,
o estado reconhece e atribui direitos, mas não todos os direitos, como a adoção de filhos,
por exemplo. Por isso, muitos chamam a união civil de um casamento de segunda classe.
Ainda assim, em 1989, quando a Dinamarca se tornou o
primeiro país a adotar a união civil para casais do mesmo sexo, muita gente celebrou.
Logo, os vizinhos Noruega, Suécia e Islândia acompanharam,
e aprovaram a união civil ainda em meados dos anos 90.
A Holanda seguiu as nações escandinavas em 98. Mas os holandeses aceleraram as mudanças.
A permissão para a união civil, em vez de acalmar as demandas por direitos iguais,
levou a um aumento da pressão pelo casamento homoafetivo. Os diretos mais
limitados da união civil tornavam evidente a discriminação contra casais homoafetivos,
como na possibilidade de adoção de crianças. Em dezembro do ano 2000, pouco antes da
virada do milênio, a rainha Beatrix da Holanda assinou a lei aprovada pelos
congressistas: passava a valer o casamento homoafetivo, igualando todos os direitos.
A legislação holandesa entrou em vigor no dia primeiro de abril de 2001.
Noivos e noivas nem sequer esperaram o amanhecer. Logo após a meia-noite,
quatro casais foram unidos em matrimônio em Amsterdã, numa cerimônia civil conduzida pelo
prefeito da cidade e transmitida pela televisão. A novidade vinda da Holanda foi elogiada por
entidades de defesa de direitos humanos mundo afora. Era o grande momento de uma
luta de décadas por igualdade. No novo milênio, a mudança iria se espalhar.
O curioso é que muitos imaginaram que o que ocorreu nos países do Norte da Europa
tinha relação com religiosidade – ou a falta dela. Afinal, cerca de metade dos
holandeses diziam não ter religião. Mas, aí, ocorreu o que ninguém
esperava. E num país religioso. Em janeiro de 2003, o
Parlamento belga repetiu seu vizinho e votou a favor da medida. A Bélgica, onde mais da metade
da população era católica, inicialmente não permitiu a adoção de crianças por casais gays,
decisão que seria tomada três anos depois. Após Bélgica, novamente um país de maioria
católica aprovaria o casamento homoafetivo. E foi em dois mil e cinco, um ano particularmente
complicado para a Igreja Católica. Com a morte e o fim do papado de João Paulo
Segundo, o alemão Joseph Ratzinger, o Bento Dezesseis, se tornava papa.
Ratzinger era um conhecido conservador, que dirigia no Vaticano o órgão responsável por
manter a disciplina em assuntos eclesiásticos. Apenas dois meses depois da escolha do novo papa,
a Espanha, com mais de setenta por cento da população católica,
aprovava o casamento homoafetivo e dava direitos aos casais de adotar crianças.
Claro, houve oposição dos bispos espanhóis. Os religiosos chegaram
a dizer que o casamento homoafetivo fere os princípios da moral e da ordem.
Mas nem Ratzinger nem a pressão dos bispos espanhóis impediu que o direito ao casamento
fosse estendido a outros casais homossexuais. Ao longo das duas décadas seguintes, o casamento
homoafetivo foi sendo aprovado em diversos países. Muitos, como Portugal e Argentina, bem católicos.
O maior golpe para a Igreja Católica na Europa ainda estava por vir.
Na República da Irlanda, onde setenta e oito por cento dos habitantes se diziam
seguidores da Igreja de Roma, a população, e não o Parlamento ou a Suprema Corte, decidiu.
Num referendo, o voto popular dos irlandeses aprovou o casamento homoafetivo
Com participação de mais de 60% da população, o sim venceu com folga.
62% dos votos, contra 38% do não.
Os irlandeses garantiram aos homossexuais as mesmas garantias constitucionais
de qualquer outra família do país. A votação na Irlanda parece sinalizar
algo inevitável. Derrotada no país, a Igreja Católica não só evitou influenciar a votação
como sinalizou que algo havia mudado. As transformações também ocorreram
do outro lado do Oceano Atlântico. O Canadá foi o primeiro a aprovar o casamento
entre pessoas do mesmo sexo em dois mil e cinco. Dez anos depois, os Estados Unidos consolidariam
mudanças que já aconteciam em seus Estados. Antes de falar do Brasil, vou entrar mais
um pouco no caso dos Estados Unidos. Além de país precursor nos protestos
públicos em defesa de igualdade para homossexuais, o país pass por uma longa batalha,
cheia de idas e vindas. E de questões pessoais de seus líderes.
Para começar, antes da virada do milênio, o estado de Vermont havia decidido que era ilegal
limitar os direitos de casais homossexuais. Já a Califórnia limitaria o casamento a
união entre um homem e uma mulher. E aí, o então presidente entrou no debate para
frear as chances de uma lei nacional. E, para isso, ele usou a... religião.
Mas o vice-presidente dos Estados Unidos na época,
Dick Cheney, cuja filha Mary é lésbica, se distanciou do colega de chapa no assunto.
Assim como nos mais altos postos do país, a divergência também dividiu as Cortes.
Só na Califórnia, batalhas judiciais levaram anos, com vitórias parciais para ambos os lados.
E a divisão estava nas ruas. Segundo o instituto Gallup, em 2009 os
americanos ainda eram contrários ao casamento gay, numa proporção de 57% contra 40%. Em 2011,
o jogo virou, com a parcela da população favorável atingindo 53% contra 45%. A nova tendência se
manteve, e em meados de 2015, 60% dos americanos eram a favor do casamento gay, e 37% contra.
Finalmente, a Suprema Corte tomou a histórica decisão no dia 26 de
junho de 2015. Referindo-se à décima-quarta
emenda à Constituição americana – que em 1868 garantiu direitos
iguais e proteção da lei a todos os cidadãos do país, – a mais alta corte americana decidiu,
por cinco votos a quatro, que todos os Estados Unidos deveriam realizar e respeitar casamentos
entre pessoas do mesmo sexo com os mesmos direitos aplicados aos casais de sexos opostos
Em 2020, o Gallup registrou
que 67% por cento dos americanos defendem o direito ao casamento de homossexuais,
contra trinta e um por cento contrários. E no Brasil?
Com o fim do regime militar e a promulgação de uma nova Constituição, em
1988, os direitos civis dos cidadãos brasileiros foram garantidos por lei.
Ou seja, qualquer discriminação com base na sexualidade passou a ser um
desrespeito à Constituição.
O documento da liberdade
Foi preciso, no entanto, que o movimento de lésbicas, gays, bis, trans e demais avançasse em visibilidade e reconhecimento.
Um dos marcos na gradual conquista de reconhecimento social foi a realização
da primeira Parada Gay, em 1997, na cidade de São Paulo.
A festa contou com cerca de duas mil pessoas. Com o passar dos anos, passou a reunir mais
de um milhão de pessoas e entrou no calendário oficial da cidade. Sempre tendo como destaque
luta por igualdade para casais do mesmo sexo. Nos anos 2000, alguns Estados brasileiros
começaram a aceitar o estabelecimento de união civil homoafetiva. Entretanto,
com a constante recusa de cartórios pelo país em aceitar a realização de casamentos,
incluindo direito a herança e partilha de bens, a questão chegou ao Supremo Tribunal Federal.
Em 2011, a corte decidiu ser ilegal qualquer discriminação contra casais homoafetivos
no que se refere à união civil de duas pessoas. Dois anos depois, o Conselho Nacional de Justiça
publicou uma resolução estabelecendo que casais do mesmo sexo tinham o direito de se
casar com um registro civil, da mesma maneira que casais heterossexuais. Estava criado o casamento
homoafetivo no Brasil – não com uma nova lei, mas como resultado de decisões da Justiça com
base no que estabelece a Constituição. Os vizinhos sul-americanos Argentina,
Uruguai e Colômbia também aprovaram a medida, mas nem toda a América Latina seguiu o mesmo caminho.
O resto do mundo também é marcado por uma mistura de avanços e resistência a mudanças.
O mapa do casamento gay na Europa mostra uma clara linha divisória no centro do Velho
Continente. Uma faixa do lado ocidental, começando em Portugal, passando por Reino Unido a Finlândia,
já aprovou o casamento de pessoas do mesmo sexo. Ao mesmo tempo, o Leste Europeu continua
avesso à ideia. No meio, países como Itália, Grécia e outros adotaram leis de união civil,
sem oferecer a igualdade completa. No Leste da Europa houve retrocesso em relação
ao tema. Na Rússia, as duas primeiras décadas do milênio, sob a liderança de Vladimir Putin,
cresceu intolerância à homossexualidade. Em julho de dois mil e vente, os russos aprovaram
nas urnas várias mudanças na Constituição. Entre elas, uma que define o casamento exclusivamente
como a união entre um homem e uma mulher. No Oriente Médio, homossexuais correm o risco de
punições severas, como prisão, em nações do Mundo Árabe, e até a pena de morte, adotada no Irã.
Na região, o país mais tolerante à homossexualidade é Israel,
cuja cidade de Tel Aviv é conhecida por sua diversidade e por sua anual Parada do Orgulho Gay.
Em 2018 , a Índia descriminalizou a homossexualidade.
Desde então, homossexuais no país passaram a pedir a possibilidade da adoção do casamento. Na China, o Partido
Comunista deu sinais de que considera propostas de aprovação do casamento gay, mesmo sem medidas concretas
No Japão, aumentou a pressão para que as autoridades no país adotem a mudança.
Mas, apesar das promessas e dos avanços concretos, decisões obtidas em tribunais ou mesmo nas
urnas sempre podem acabar revistas.
As duas primeiras décadas do século 21 foram marcadas por vitórias dos defensores dos direitos humanos, particularmente
no caso do casamento homoafetivo. Mas, em grande parte do mundo,
a discriminação e várias outras formas de violência ainda ameaçam homossexuais.
E tudo isso por uma questão quase tão antiga quanto a Humanidade: o amor.
Em breve voltaremos com mais um vídeo da série 21 notícias que
marcaram o século 21. Se tiver dicas ou sugestões, deixe nos comentários.
Obrigado e até a próxima!