Tecnocracia #54: Em menos de um ano, o Pix já fez mais que as criptomoedas em uma década (1)
Em 8 [oito] de dezembro de 2000 [dois mil], uma das maiores salas de reunião do hotel Hyatt Regency, perto do Aeroporto Internacional de São Francisco, tava reservada para uma reunião que exigiria bastante espaço. Lá, três das principais figuras do Vale do Silício seriam apresentadas à invenção que prometia ser o grande avanço tecnológico da década. Você tinha o John Doerr, que é o sócio da Kleiner Perkins, um dos fundos de investimento em tecnologia mais influentes da história; o Doerr foi o primeiro a chegar. O Jeff Bezos, fundador da Amazon, chegou logo depois. E faltava um, que estava sempre atrasado: era o Steve Jobs; ele só apareceu minutos depois das 8h30 [oito e meia] da manhã, quando a reunião deveria começar. A sala precisava ser grande porque o sujeito que convocou a reunião precisava fazer demonstrações que não cabiam dentro do computador. Assim que chegou à sala com grandes pacotes embalados em caixas de papelão, o Dean Kamen montou dois protótipos e deu para que o Bezos e o Doerr brincassem. Enquanto ambos testavam os protótipos, o Jobs chegou. A tecnologia que todos estavam ali para dar seus pitacos prometia revolucionar a mobilidade urbana da mesma maneira como o PC ou o celular revolucionaram a computação pessoal.
Passo para trás para entender quem era o sujeito capaz de reunir o Jobs, o Bezos e o Doerr numa mesma sala num hotel perto do aeroporto. O Kamen tinha acumulado bilhões de dólares após inventar a tecnologia por trás da bomba de perfusão, aquela geringonça que controla a dosagem de remédios na sua corrente sanguínea quando você está internado ou internada. Sem se preocupar mais em pagar contas — olha que maravilha —, o Kamen mergulhou na vida de inventor. Depois de anos e anos de pesquisa, ele criou o protótipo de uma cadeira de rodas autônoma capaz de responder aos movimentos do corpo de quem a usasse. O segredo da cadeira era um giroscópio. Giroscópios são dispositivos que mantêm o eixo de rotação estável sempre na mesma direção, ainda que forças externas o forcem para um lado ou para o outro. Com o protótipo pronto dessa cadeira, o Kamen entendeu que o mercado para cadeira de rodas era pequeno para um lançamento em escala. O giroscópio, porém, poderia alimentar um outro hardware de locomoção, não apenas para pessoas com dificuldades de mobilidade.
O protótipo daquela reunião no hotel era isso: uma espécie de patinete de duas rodas que você controlava usando o peso do próprio corpo. Até a reunião em São Francisco, o projeto se chamava Ginger. Quando tava pronto pro mercado, o Kamen mudou o nome e chamou-o de Segway. Em 2001 [dois mil e um], o hype ao redor do Segway era inacreditável, ainda que ninguém soubesse exatamente que diabo era aquilo — nem o nome era público. Em janeiro de 2001, um mês depois dessa reunião que a gente tá falando, vazou uma proposta secreta de livro que o Kamen tinha vendido à Harvard Business School Press por US$ 250 mil [duzentos e cinquenta mil dólares]. Além de relatar o investimento do Doerr, o documento tinha aspas de algum daqueles presentes na reunião: o Jobs dizia que a invenção “era significativa como o computador pessoal” e o Bezos a classificava de “revolucionária”. O problema é que o Kamen não explicava o que era aquilo e nem dizia o seu nome — na proposta do livro, usava-se apenas o termo "it", um pronome para animais, itens ou objetos na língua inglesa.
Com o estouro da bolha passando o trator no mercado de internet mundo afora, o mercado ficou alvoroçado. O Kamen já tinha provado ser um inventor de sucesso e os endossos de Bezos, Jobs e Doerr deram à iniciativa um elã de inovação séria. Não era um zé que apareceu do nada com uma ideia e botou um monte de gente na roda. Não era uma piada quando gente desse calibre elogia. Durante o ano de 2001, formou-se a certeza de que, assim que o "it" desse as caras, que o Kamen explicasse que bagulho era o "it", a gente começaria a viver numa nova realidade.
O Kamen finalmente mostrou o Segway ao mundo em dezembro de 2001, um ano depois daquela reunião no hotel, com uma apresentação ao vivo no Good Morning America, um dos programas de maior audiência da TV norte-americana. A reação da âncora, a Diane Sawyer, resumiu o que seria a história adiante do Segway: “é só isso?”. Era. O hype construído meticulosamente pela equipe de Kamen, alavancado por nomes gigantes do Vale do Silício, não durou um mês depois que o produto foi finalmente revelado. Justiça seja feita, o próprio Jobs tinha alertado Kamen das dificuldades adiante: “Se uma criança imbecil em Stanford se machucar usando o Ginger e anunciar online que a máquina é uma merda, a companhia afundaria, já que não existe forma de controlar isso ou responder caso as pessoas não consigam usar uma por si mesmas”. A história da reunião do Kamen com Jobs, Bezos e Doerr (de onde eu tirei também essas aspas) está bem documentada em um livro chamado Code Name Ginger, escrito por um sujeito chamado Steve Kemper, que presenciou por dentro a ascensão e queda do Segway. O site da Harvard Business School, aquela mesma que comprou o livro em 2001 por US$ 250 mil, publicou o trecho do livro sobre a reunião que você pode ler livremente.
O Jobs foi profético. Primeiro que o Segway era proibitivamente caro: o seu modelo mais simples custava US$ 5 mil [cinco mil dólares]. Segundo que o Segway exigia uma curva de aprendizado não óbvia e com consequências nada agradáveis: quem não se equilibra no Segway se esborracha no chão. Era uma questão de tempo até que uma crise de imagem aparecesse desencadeada pela inabilidade de algum usuário. Ela veio, óbvio, mas por alguém um pouco pior do que um jovem imbecil (nas palavras do Jobs) em Stanford.
Em 2003 [dois mil e três], o então presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, foi fotografado em um momento de folga se estabacando no chão enquanto um Segway revolto se descontrolava. Àquela altura, o Segway já mostrava que seria incapaz de preencher as enormes expectativas depositadas nele. A invenção que seria “para o carro o que o carro já tinha sido para os cavalos”, nas palavras do próprio Kamen, viraria nas décadas seguintes um gadget exclusivo de ricos entediados, tours históricos por cidades europeias e meio de locomoção para seguranças em ambientes privados, como shoppings ou condomínios fechados. Aquela história de revolucionar o transporte pessoal e fazer com que tivéssemos um para comprar pão de manhã? Nunca passou de delírio na cabeça de um sujeito pessoalmente interessado em seu sucesso, uma historinha que o mercado de tecnologia comprou com gosto.
Além de ser proibitivamente caro, o delírio não levou em conta alguns outros fatores muito importantes para o sucesso de uma tecnologia. Claro, haveria uma reação da indústria “atacada” por Kamen, mas achar que as montadoras mataram o Segway é um delírio tão grande quanto o próprio Segway. O Segway nunca chegou a ser uma ameaça séria o suficiente para que a indústria automobilística se mobilizasse contra. O episódio #44 do Tecnocracia, aliás, mostra como o carro e as pessoas por trás das montadoras foram responsáveis por moldar a forma como bilhões de pessoas — eu e você, incluídos — vivem no mundo. Agora, se não foi a indústria automobilística, qual que foi o principal motivo para o desastre? Projetar uma demanda gigantesca não a transforma necessariamente em realidade. O Jobs, inclusive, ficou famoso por defender que ele inventava produtos que as pessoas queriam, mas não sabiam até Jobs mostrar para elas. Muita gente lê a frase para se inspirar e se esquece que não é o Steve Jobs, mas enfim.
Enquanto o Kamen delirava e o mercado embarcava na ideia de que a grande revolução dos transportes seria um patinete de duas rodas com giroscópio interno para ir comprar ovo no mercadinho, a realidade se impôs. Vamos parar para pensar quais foram as grandes revoluções dos transportes nos últimos 20 anos? Eu pensei em duas, ambas envolvendo carros: uma é uma montadora provando que existe um modelo de negócios para veículos elétricos e uma outra é um aplicativo que faz a mediação entre passageiros e motoristas — respectivamente, Tesla e Uber, empresas sobre as quais você ouve falar ou fala com muito mais frequência do que o Segway nos últimos anos.
O Segway é um caso emblemático de como o mercado de tecnologia, em alguns momentos, decide qual vai ser a próxima onda. De onde eles tiram isso? Você sabe; você já deve ter falado mentalmente. Nesses casos, a realidade se impõe e dá um tapa na cara de todo mundo que caiu na historinha. É uma história constante, a gente já falou de outras aqui no Tecnocracia, como o Second Life ou as compras pela TV. Se você estiver com dificuldades de pensar em outra tecnologia dentro dessa mesma dinâmica, não se preocupa não: ela está passando na sua frente agora. É bem provável que você não só tenha ouvido falar nela, mas já a use com uma certa frequência.
Há uma década, o mercado financeiro global gasta suas energias confabulando sobre as eventuais aplicações revolucionárias de moedas nascidas digitalmente e geridas por redes compartilhadas. Há uma década todos nós aguentamos aquele papo repetitivo de que moedas como o bitcoin transformarão profundamente a forma como consumimos bens e serviços. Só precisa ter um pouco de paciência, bonitinho, bonitinha, está chegando, calma lá. Passa o reveillon e lá vem mais análises de publicações e influenciadores financeiros jurando que o ano é esse, não tem como escapar. Há uma década estamos esperando o Godot do bitcoin aparecer e nos levar para uma nova realidade do dinheiro 100% digital. Exceto que nunca chega. Tal qual Vladimir e Estragon da clássica peça do Samuel Beckett, a gente fica ali, entretidos em nossas misérias, em nossas memórias, acalentando uma promessa que nunca se realiza.
Dentro da história do começo, se o bitcoin é o Segway, quem é a Tesla ou o Uber? Três letras: P, I, X. Lançado há menos de um ano pelo Banco Central, o Pix já se tornou mais relevante para a economia brasileira do que qualquer criptomoeda em mais de uma década. Repetindo: em meses, o Pix já fez mais para a maior parte dos brasileiros que o bitcoin em uma década. Por quê? Essencialmente, porque o Pix se tornou uma ferramenta útil de pagamento. Você consegue comprar lapiseira, computador, aula de yoga, sessão de dominatrix, pão, pipoca e até carro usando o Pix. Até esmolas o crescente número de miseráveis no Brasil já recebe por Pix.
O que você compra com bitcoin? Na verdade, qual foi a última vez que você usou bitcoin ou qualquer moeda digital para comprar alguma coisa? Pode pensar, rememore das profundezas do cérebro. Bem provável que nunca, né? Taí uma diferença fundamental: o bitcoin e todas as criptomoedas que se seguiram não honram o sufixo que carregam no nome: o “coin”, moeda em inglês. Essencialmente, nenhuma delas é moeda, daquele tipo instituído no Egito Antigo como um meio comumente estabelecido de transferir valores entre pessoas e/ou empresas. Moeda exige o mínimo de estabilidade para ser útil. Na prática, porém, elas são bens especulativos, como a ação de uma varejista, por exemplo. Claro, você consegue investir em outras moedas estabelecidas para lucrar, mas nenhuma delas serve só para isso nem tem a volatilidade das criptomoedas.
Aí vai aparecer alguém esperto e vai me dizer: “Ah, Guilherme, mas eu consigo realizar o lucro da ação do Magalu que eu comprei há anos e transformar em bens para mim.” Exato, bonitinho e bonitinha, da mesma forma que você precisa converter os ganhos em bitcoin em real ou dólar para também comprar seu bullet coffee e seu corretivo para esconder as olheiras profundas de acordar todo dia 4h30 para ver live financeira no Instagram. Você não compra pizza ou pão com bitcoin, dogecoin ou qualquer outra coin. Já o Pix a sua tia usa para comprar agulha de tricô, crédito para ligar para as amigas e acessórios para sessões de sadomaso, mas certamente você não vai querer saber esse detalhe da sua tia.
No Tecnocracia da quinzena a gente vai falar sobre uma revolução financeira que está acontecendo diante dos nossos olhos, sem uma fração do hype, mas incontáveis vezes mais prática e útil que as criptomoedas. A cada 15 dias, o Tecnocracia traz histórias, estatísticas e um humor de gosto duvidoso para diminuir a espuma que o mercado de tecnologia insiste em espalhar e ajudar a mostrar o que está acontecendo de relevante atrás dos delírios de alguns megalomaníacos de boca mole. Eu sou o Guilherme Felitti. Além de episódios como esse que você está ouvindo, todo mês eu apresento um episódio ao vivo, o Tecnocracia Balcão, dentro do grupo do Manual do Usuário no Telegram. É parte dos benefícios da campanha de crowdfunding do Manual. Custa a partir de R$ 16/mês, e se você se interessou, http://manualdousuario.net/apoie. Resolvi falar o link inteiro dessa vez.
Bom, você, que atua na área de tecnologia, percebe quando um assunto fura a sua bolha profissional: é quando amigos e familiares, até então interessados só em smartphones, vêm perguntar alguma coisa. Há alguns anos vieram perguntar a minha opinião a respeito da digitalização do dinheiro. De início, vamos tirar uma coisa da frente: o dinheiro da bolha a que você pertence já é digital. Há uma foto clássica do Garrincha em que ele aparece na tesouraria do Botafogo, em General Severiano, recolhendo os maços de notas do seu salário. Durante um bom tempo, a mediação financeira foi feita quase que exclusivamente assim, em papel, ou papel-moeda, ou cheque.