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O Assunto (*Generated Transcript*), 26.05.23-Porte de drogas na pauta do STF I O ASSUNTO

26.05.23-Porte de drogas na pauta do STF I O ASSUNTO

Acho que a questão de droga tem que levar em conta, em primeiro lugar, o poder que o

tráfico exerce sobre as comunidades carentes e o mal que isso representa.

Segundo lugar, o altíssimo índice de encarceramento de pessoas não perigosas decorrentes dessa

criminalização.

Em terceiro lugar, também a questão do usuário.

Não é um debate fácil, não é juridicamente fácil, nem moralmente barato, mas precisa

ser feito.

A declaração que você acabou de ouvir foi dada pelo ministro Luiz Roberto Barroso, do

Supremo Tribunal Federal, em 2015.

A corte estava prestes a discutir se o porte de drogas para uso pessoal é crime ou não.

Para o ministro Gilmar Mendes, relator nesse julgamento, o porte de drogas para uso pessoal

não deve mais ser considerado crime, porque isso contraria a Constituição, a liberdade

individual e a privacidade do usuário.

A percepção geral é de que o tratamento criminal aos usuários de droga alcança,

em geral, pessoas em situação de fragilidade econômica, com mais dificuldade de superar

as consequências de um processo penal e reorganizar suas vidas depois de qualificados como criminosos

por condutos que não vão além da lesão pessoal.

Dois ministros acompanharam a decisão.

O primeiro a votar foi o ministro Edson Fachin.

Ele defendeu que criminalizar o consumo de drogas fere a intimidade e autonomia dos cidadãos,

mas votou pela descriminalização apenas do porte de maconha.

O segundo a votar foi o ministro Roberto Barroso.

Para ele, a repressão não ajudou a diminuir o consumo de drogas.

E usar ou não substâncias ilícitas é uma decisão pessoal.

Até que...

O julgamento foi interrompido a pedido do ministro Teori Zavascki.

Ainda faltam oito votos para uma decisão.

Em 2017, Teori morreu num acidente de avião e foi substituído por Alexandre de Moraes,

que devolveu o pedido de vista ao plenário.

A discussão ficou quase oito anos parada até voltar à pauta da corte nesta semana.

Da redação do G1, eu sou Nathuzaneri e o assunto hoje é o porte de drogas na pauta

do STF.

Como a descriminalização da posse foi parar no Supremo Tribunal Federal, os argumentos

que circulam na corte e as consequências para o sistema penal brasileiro.

Neste episódio, eu converso com o criminalista Pierre Paulo Bottini, professor de Direito

Penal da Universidade de São Paulo e autor do livro Porte de Drogas para o Uso Próprio

e o STF.

E com o Cristiano Marona, diretor do Justa, organização que analisa dados sobre financiamento

e gestão do sistema de justiça.

Quinta-feira, 25 de maio.

Pierre, quase oito anos já se passaram desde o início do julgamento no Supremo sobre a

descriminalização do porte de drogas para consumo.

Quando o julgamento foi interrompido, três ministros já haviam dado seus votos.

Então, para começar, você pode nos lembrar o que está em jogo nesse julgamento e em

que pé ele estava quando ele foi interrompido?

Então, Natuza, na verdade, a discussão inicial era a descriminalização do uso de drogas.

Ou seja, se é ou não constitucional caracterizar como crime o fato de usar drogas.

Esse era o tema inicial que foi discutido.

Nesse sentido, ou seja, no sentido de descriminalizar, de entender como inconstitucional essa criminalização,

votaram três ministros.

O ministro Barroso, o ministro Fachin e o ministro Gilmar Mendes.

Os três no sentido de descriminalizar, mas em maior ou menor medida.

Cada um dos votos teve as suas características, as suas peculiaridades.

Alguns só para descriminalizar o uso da maconha, outros para descriminalizar mais

drogas.

Então, houve aí uma diferença entre os votos, mas todos eles no sentido de que, pelo

menos, a maconha deveria ser descriminalizada.

O primeiro voto foi do ministro Luiz Edson Fachin.

O dependente é vítima e não criminoso germinal.

Afigura-se nessa passada relevante a separação de mercados e a divisão entre espécies de

drogas.

O seguinte a votar foi o ministro Luiz Roberto Barroso.

Se um indivíduo, na solidão das suas noites, beber até cair desmaiado na cama, isso pode

parecer ruim, mas não é ilícito.

Se ele fumar meia carteira de cigarros entre o jantar e a hora de ir dormir, isso certamente

parece ruim, mas não é ilícito.

Pois digo eu, o mesmo deve valer se ele, em vez de cigarro, fumar um baseado entre

o jantar e a hora de ir dormir.

Você entrou, inclusive, no processo representando a ONG Viva Rio como uma espécie de consultor

externo da corte e apresentou alguns argumentos a favor da descriminalização do porte.

Pode nos explicar que argumentos são esses, Pierre?

Então, Natuza, na verdade o que a gente diz naquela petição e são os argumentos

em favor da descriminalização é que a nossa Constituição Federal tem como princípio

fundamental a dignidade humana.

O que significa isso?

Que eu não posso criminalizar qualquer tipo de prática ou de conduta que diga respeito

apenas a mim mesmo, que não tem nenhuma capacidade de lesionar terceiros.

Então o uso de drogas, ainda que se alegue que faz mal para a saúde da pessoa, que afeta

as capacidades psíquicas da pessoa, o que até isso é questionado no campo médico,

mas ainda que isso fosse verdade, isso afeta apenas aquela pessoa.

Ela não tem capacidade de afetar terceiros.

Então nesse sentido não haveria constitucionalidade, não seria legítimo do Estado tratar com

uma pena, com uma repressão criminal, esse ato, esse ato de uso de drogas.

Então esse é o argumento central de todos aqueles que defendem essa descriminalização.

Agora, na época em que o julgamento começou, a Procuradoria Geral da República se pronunciou

pela criminalização do porte de qualquer droga para uso pessoal.

Você pode nos ajudar a pontuar quais são os argumentos de quem segue esse raciocínio?

Quem segue esse raciocínio acaba argumentando de que, em primeiro lugar, quando você autoriza

ou descriminaliza o uso, você acaba contribuindo com o tráfico, porque dizem eles que onde

há demanda, há oferta.

Então, se eu permitir a demanda, se eu permitir o consumo, eu de alguma forma vou estar incentivando

a prática do tráfico de drogas.

O artigo, que é o que está valendo hoje, classifica como crime adquirir, guardar, manter

em depósito, transportar ou carregar drogas para consumo pessoal, sem autorização ou

em desacordo com determinação legal.

E um segundo argumento nesse ponto, nesse sentido, seria que aquele que consome drogas

teria mais propensão a cometer outros delitos.

E em relação a isso, então, o consumo de drogas afetaria terceiros, porque aquela pessoa

acabaria sendo predisposta ou tendo a possibilidade de cometer delitos para manter o seu vício,

para manter o seu consumo de drogas.

Então ele furtaria alguma coisa, ele roubaria alguma coisa, ou ele, por estar num estado

psíquico alterado, acabaria cometendo outros crimes.

Agora, na prática, o que significa dizer que esse julgamento é de repercussão geral?

Esse julgamento, é importante dizer, ele, na verdade, trata de um caso específico de

uma pessoa que foi criminalizada pelo uso, pelo porte de maconha para uso pessoal.

Então não é um caso em que alguém entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade,

um partido político, a Ordem dos Advogados do Brasil.

Ele se originou de um caso concreto, de um caso pontual.

A discussão foi parar no Supremo depois que um preso foi flagrado com três gramas

de maconha dentro da cela.

Eu apelei na hora, não achei justo ser condenado por causa de uma grama de maconha, duas gramas,

três gramas de maconha.

O doutor, o meu defensor público, que é o doutor Leandro, foi e levou para frente

a minha apelação até a última instância.

No primeiro dia de julgamento, a defesa alegou que a lei é inconstitucional.

Hoje quem compra, transporta ou é perro com droga, mesmo que para consumo pessoal,

tem que prestar serviços à comunidade ou cumprir medidas educativas e perde a condição

de réu primário.

Mas o Supremo Tribunal Federal, entendendo que o que estava sendo discutido ali é mais

importante, tem uma repercussão maior do que naquele caso, ele então entendeu dar

uma repercussão geral.

Ou seja, ele vai discutir essa questão e se ele entender pela constitucionalidade ou

pela inconstitucionalidade de criminalizar o uso de drogas, isso vai valer para todo

mundo.

Não só para as partes envolvidas nesse processo, mas para todas as pessoas.

Daí porque várias entidades, como você mesmo mencionou, foram admitidas como amigos

da corte, ou seja, são entidades que têm a contribuir com esse debate, porque esse

debate não vai afetar só as partes naquele processo, mas todo o país.

A gente está falando, na verdade, da política de drogas, da política de saúde de drogas,

da política de prevenção ao uso de drogas, então isso tem um impacto muito grande nacional.

A gente ainda não sabe se o julgamento vai terminar em breve, Pierre, porque outros ministros

ainda podem pedir vista, ou seja, mais tempo para analisar o caso.

De toda forma, qual é a sua expectativa sobre o resultado do julgamento?

O que você imagina que vai acontecer pelo que você sabe do processo e pelo termômetro

que você tem mesmo da Suprema Corte?

Ana Tuzé, é claro que é muito difícil a gente prever o que vai acontecer no Supremo

Tribunal Federal, mas pelas características dos ministros, pelo menos que em sua maioria

acompanha a corte, eu imagino que vai haver uma decisão pela descriminalização.

Eu acho que o Supremo vai entender que há uma incompatibilidade desse dispositivo da

lei penal, desse crime com essa previsão da dignidade humana na nossa Constituição.

E eu acho que os ministros vão enfrentar esses argumentos que a gente conversou aqui,

daqueles que defendem a criminalização, eu acho que de duas formas.

Em primeiro lugar, imagino que eles vão dizer que quando...

Eu não posso culpar alguém, o consumidor, por aquele que o afeta, que é o traficante

de drogas.

Eu não posso pôr a culpa na vítima, porque no fundo, quando a gente fala do consumidor

de uso problemático de drogas, não o uso recreativo, mas aquele que se vicia, ele é

a vítima do traficante.

Então eu não posso, com a justificativa de punir o traficante, acabar punindo também

a sua vítima.

Então eu imagino que os ministros do Supremo vão entender que a questão de uso de drogas

é uma questão que merece atenção, mas merece atenção do ponto de vista da saúde

pública e não do direito penal.

E eu imagino que eles vão caminhar para essa solução.

Agora é importante dizer, e isso talvez não baste, eu acho que mais do que isso,

esses ministros precisam aproveitar a oportunidade para traçar um limite sobre o que é uso

e o que é tráfico de drogas.

Um limite objetivo, um critério quantitativo.

Porque isso hoje é éter puro, né?

Ninguém sabe exatamente a definição, é isso?

É isso, e justamente por não ter definição, o que a polícia faz na ponta?

Ela acaba classificando todo mundo como traficante, porque ela sabe que classificar como usuário

a pena é muito mais branda.

Então se descriminalizar e não fixar um critério objetivo, o que vai ser feito na

ponta?

Todo mundo vai continuar sendo classificado como traficante de drogas e a gente não vai

ter um impacto significativo.

Então é importante que alguns votos, por exemplo, o voto do ministro Parroso, ele traz

um quantitativo, pelo menos para a maconha.

Eu acho muito importante que já sejam apresentados esses quantitativos, porque aí você não

deixa na mão da autoridade policial definir o que é tráfico e o que é uso.

Eu estou propondo uma quantidade de referência para distinguir consumo pessoal de tráfico

em 25 gramas para viger até que o Congresso se manifeste a respeito e o Legislativo, assim

que atui, é a vontade política do Legislativo que vai prevalecer nessa matéria.

O mesmo raciocínio vale para as seis plantas fêmeas, é que a planta fêmea é a que produz

a resina psicoativa em quantidade suficiente para produzir a droga.

Fala, Vinh, 25 gramas, tá?

Ou seis plantas, seis pés de maconha.

Mas veja, é isso naquele momento daquele julgamento lá atrás.

Isso pode ser que mude, se tiver uma definição nesse sentido, pode ser que mude, é isso?

Pode ser que mude, há um projeto de lei do qual até fiz parte da comissão que apresentou

esse projeto de lei que previa quantidades um pouco maiores do que isso, não me lembro

exatamente quais agora, mas é importante que não fique só na maconha, é importante

que tenha uma série de outras drogas em que é importante também que fixe esses limites

e essa definição.

Então eu imagino que eles vão retomar e atualizar essa questão das quantidades para

dar uma resposta definitiva sobre isso.

O ministro Gilmar Mendes já havia se manifestado pela descriminalização do porte para consumo

pessoal de todas as drogas ilícitas.

Para Fachin, a produção e a venda da maconha devem continuar sendo crimes.

O segundo a votar foi o ministro Roberto Barroso.

Para ele, a repressão não ajudou a diminuir o consumo de drogas e usar ou não substâncias

ilícitas é uma decisão pessoal, mas também defendeu a descriminalização apenas da maconha.

O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, discordou dos dois ministros.

Para ele, usuários de outras substâncias, como crack, continuariam a sofrer discriminação

e a não procurar tratamento.

Isso é importante, é um passo muito modesto, é só tirar o direito penal de cima do usuário

até para permitir que haja uma política de saúde pública sobre essas pessoas se

elas quiserem.

Agora, em termos de ambiente social, Pir, a gente vem de um contexto de polarização

política, de campo progressista de um lado e de campo conservador e de extrema direita

em parte no outro.

Isso pode incendiar o debate no Supremo de alguma maneira?

Eu acho que depende muito da forma como isso for tratado, dona Tousa, porque se for tratado

como um flaflu, realmente nós somos a favor ou contra as drogas, vai haver essa polarização.

Agora, se houver uma colocação do problema do tamanho que ele tem, ou seja, em determinados

aspectos a droga é um problema, não mais uma vez, não uso recreativo, mas há situações

em que ela é um problema e o que a gente está discutindo no fundo é, é o direito

penal a melhor forma de resolver esse problema ou a gente pode discutir isso do ponto de

vista da saúde, qual o tipo de atenção que o Estado vai dar sobre isso, é pra isso,

é o policial ou é um tratamento para aqueles que precisam de tratamento?

Se a gente for por esse lado de racionalização, eu acho que a polarização deixa de ter sentido,

porque todas as pessoas no fundo estão falando a mesma coisa quando a gente fala do uso problemático

de drogas.

A grande questão é qual é a resposta que o Estado vai dar e eu acho que essa é uma

discussão que pode ser feita sem grandes debates polêmicos, sem grandes gritarias,

mas dentro de uma razoabilidade e de uma civilidade.

Pierre, muito obrigada pelos esclarecimentos, bom trabalho para você.

Obrigadão, obrigado para vocês também, um abraço.

Espera um pouquinho que eu já volto para falar com Cristiano Marona.

Cristiano, o Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do planeta, traz apenas

de Estados Unidos e da China.

Eu sei que você defende que a política de combate às drogas é a principal razão para

isso, mas eu te peço para você explicar o seu argumento, por favor.

Bem, hoje o Brasil tem cerca de um milhão de presos e um em cada três, no caso dos

homens, duas em cada três, no caso das mulheres, estão presas por causa da lei de drogas.

A lei de drogas é hoje o principal vetor encarcerador no Brasil e é também um exemplo

de como uma lei aplicada de forma disfuncional produz resultados negativos.

No caso da lei de drogas, muitos usuários são condenados com base em presunções por

tráfico de drogas.

O julgamento do Supremo do Recurso Tribunal de Narva, 635 e 659, é muito importante porque

é uma oportunidade que o tribunal tem de criar critérios objetivos para diferenciar

uso e tráfico e definir um estândar probatório respeitador da regra, do ônus da prova e

da presunção de inocência, ou seja, para que alguém seja condenado por tráfico é

preciso que haja prova segura da intenção mercantil, do ato de comércio, etc.

O tráfico de maconha não tem um aspecto racial importante nessa discussão.

Eu vou dar aqui um dado.

Um levantamento que foi feito pela Agência Pública de 2019 apresentou que de 4 mil sentenças

julgadas na cidade de São Paulo por tráfico de maconha, 71% dos negros foram condenados

e em relação aos brancos foram 64%.

E aí vem um comparativo em que essa distância chama mais ainda atenção.

A mediana para a condenação por tráfico de uma pessoa preta foi de 145 gramas.

Já para um branco foi de 1,15 kg.

É muita diferença, né?

Sem dúvida.

O racismo estrutural existe e não seria diferente no sistema de justiça.

O Supremo Tribunal Federal, inclusive, está discutindo perfilamento racial na abordagem

policial, num caso envolvendo a lei de drogas, no habeas corpus 208 e 240.

E o vó do ministro Fachin reconhece o racismo como uma circunstância que anula a abordagem

policial, a prisão em flagrante e mesmo o processo subsequente.

É preciso fazer o registro de que o elemento raça acaba sendo, nesse contexto perverso,

utilizado para a distinção dos sujeitos vítimas da letalidade das atividades policiais.

Então são temas interligados.

Quando a gente observa a superrepresentação de negros e pardos no sistema prisional, a

gente percebe que a lei não é igual para todos, que há um viés, há uma tendência

de punir de forma mais severa, mais grave, pessoas não brancas.

Agora eu queria entender com você um aspecto dessa discussão no Supremo, que é a discussão

sobre o limite legal para o usuário, mas numa perspectiva de saúde pública.

O que dá para abordar nesse aspecto?

A lei de drogas tem para objetivo proteger a saúde pública.

A justificativa para a criminalização da posse para uso pessoal é a proteção da

saúde pública.

No entanto, aquele que usa drogas, ele ofende a própria saúde, a saúde individual.

O que está posto em discussão no Supremo é se é papel do Estado dizer a pessoas adultas

e capazes o que pode ou não penetrar os seus corpos.

Em democracias liberais, existe um limite de intervenção do Estado, que é justamente

a falta de alteridade.

Quando uma conduta é autolesiva, ela não ultrapassa o âmbito do próprio autor, não

há justificativa para a incriminação.

E é justamente isso que se discute nesse julgamento que o Supremo deve concluir.

E quem porta droga e faz uso da droga não necessariamente comete um crime que pode ser

tipificado e equiparado, por exemplo, a práticas que são realmente nocivas à sociedade e

às pessoas, como o tráfico, como outros crimes que são praticados exatamente por

conta do uso de droga, mas como uma mercancia, que nós dizemos, ou seja, como uma comercialização

que não leva em consideração a questão da saúde.

Que ele receba um tratamento, porque essa é uma questão de saúde, não de polícia.

Pensando em termos de política pública, é mais vantajoso, é mais benéfico para

a sociedade que a conduta de portar drogas para o uso pessoal não seja criminalizada

e que nos casos em que aquele uso apresenta padrões problemáticos, o que a gente chama

de uso problemático de drogas, aí então a abordagem tem que ser de saúde, não abordagem

policial ou abordagem do sistema de justiça.

Quando uma pessoa fuma cannabis, as substâncias chegam primeiro ao pulmão.

Depois são logo absorvidas pelo sangue e daí levadas até o cérebro.

O THC se encaixa como uma peça de quebra-cabeça nos chamados receptores das células nervosas.

As alterações de consciência variam, mas em geral incluem sensação de relaxamento,

dificuldade para se movimentar e pensar, mudança de humor, perda da memória e da noção de tempo.

A maconha não é uma substância inócua.

Pessoas com transtornos psiquiátricos jovens até um período de maturação cerebral,

em torno de 24, 25 anos, tem uma propensão muito maior de desenvolver no futuro problemas

físicos, problemas de transtornos do humor.

Uso constante e de longo prazo pode causar danos.

Quando mais cedo a pessoa começar a usar, maior a chance de causar dependência e prejuízo

no funcionamento cerebral.

Cristiano, eu queria, à luz do que você está nos dizendo, comparar em termos de

legislação o Brasil com o mundo.

O que te chama a atenção quando a gente faz esse paralelo aqui dentro e lá fora?

Bom, o Brasil tem uma das piores políticas de drogas do mundo.

O Brasil é um dos últimos países que ainda criminaliza a posse para uso pessoal.

Apenas para a gente comparar, na América Latina, os nossos vizinhos praticamente todos

descriminalizaram a posse para uso pessoal já há muito tempo.

Também nos Estados Unidos, na Europa e aqui, infelizmente, esse debate não avança por

conta do conservadorismo e do fato de que hoje o Congresso Nacional tem uma maioria

conservadora e já sinalizou que não vai alterar a lei de drogas no sentido da descriminalização.

Se houver alteração, é possível que a repressão se torne ainda mais dura.

O que contraria a tendência mundial?

Hoje, no mundo todo, há experiências regulatórias que retiram do campo da criminalização a

posse de drogas para uso pessoal e há casos, inclusive, de legalização de toda a cadeia

produtiva, como é o caso da maconha no Canadá, em diversos estados dos Estados Unidos, no

Uruguai.

A história da maconha no Uruguai tem uma data-chave.

10 de dezembro de 2013.

Nesse dia, por uma votação apertada, 16 a 13, o Senado aprovou a lei regulamentando

a cannabis, que é o nome científico da planta.

A iniciativa foi do governo do então presidente José Mujica.

O sociólogo Julio Calçada comandou o processo.

O objetivo central era tirar poder do narcotráfico.

No Uruguai, o tráfico fatura cerca de 40 milhões de dólares e 90% dos usuários usam praticamente

só a maconha.

A lei determina controle total do Estado.

Até o preço é fixado pelo governo.

Se o nosso objetivo é competir com o mercado negro, então a maconha não pode passar de

certo preço.

Sem falar em outras experiências que ainda não chegaram à legalização, mas que criaram

modelos regulatórios básicos, no caso da cannabis, por exemplo, um determinado número

de plantas ou uma determinada quantidade, no sentido de caracterizar o uso pessoal.

O voto do ministro Barroso no Recurso ao Dinaméter E559 foi nesse sentido.

Esse seria um critério que, embora não legalizasse a produção e a distribuição e venda de

maconha, criaria regras básicas que permitiriam reduzir essa grande insegurança que existe

hoje na aplicação da lei de drogas.

Cristiano, muito obrigado.

Eu sei que você falou com a gente já à noite, está em deslocamento, está dentro

do carro.

Então, ter conseguido um espaço na sua agenda para falar com o assunto muito nos felicita.

Obrigada e bom trabalho.

Muito obrigado, Natuza.

Sempre que precisar, às tuas ordens.

Um abraço.

Tchau, tchau.

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Comigo na equipe do Assunto estão Mônica Mariotti, Amanda Polato, Tiago Aguiar, Luiz

Felipe Silva, Tiago Kazurowski, Gabriel de Campos, Nayara Fernandes e Guilherme Romero.

Eu sou Natuzaneri e fico por aqui.

Até o próximo assunto.

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26.05.23-Porte de drogas na pauta do STF I O ASSUNTO 26.05.23-Drogen auf der Tagesordnung der STF I DAS THEMA 26.05.23-Drugs on the STF's agenda I THE SUBJECT 26.05.23-Drogas en la agenda del STF I EL TEMA 26.05.23-Il traffico di droga nell'agenda dell'STF I L'OGGETTO 26.05.23-麻薬密売がSTFの議題に I テーマ 26.05.23-Наркоторговля в повестке дня STF I ТЕМА 23 年 5 月 26 日 - STF IO MATTER 議程上的毒品持有問題

Acho que a questão de droga tem que levar em conta, em primeiro lugar, o poder que o

tráfico exerce sobre as comunidades carentes e o mal que isso representa.

Segundo lugar, o altíssimo índice de encarceramento de pessoas não perigosas decorrentes dessa

criminalização.

Em terceiro lugar, também a questão do usuário.

Não é um debate fácil, não é juridicamente fácil, nem moralmente barato, mas precisa

ser feito.

A declaração que você acabou de ouvir foi dada pelo ministro Luiz Roberto Barroso, do

Supremo Tribunal Federal, em 2015.

A corte estava prestes a discutir se o porte de drogas para uso pessoal é crime ou não.

Para o ministro Gilmar Mendes, relator nesse julgamento, o porte de drogas para uso pessoal

não deve mais ser considerado crime, porque isso contraria a Constituição, a liberdade

individual e a privacidade do usuário.

A percepção geral é de que o tratamento criminal aos usuários de droga alcança,

em geral, pessoas em situação de fragilidade econômica, com mais dificuldade de superar

as consequências de um processo penal e reorganizar suas vidas depois de qualificados como criminosos

por condutos que não vão além da lesão pessoal.

Dois ministros acompanharam a decisão.

O primeiro a votar foi o ministro Edson Fachin.

Ele defendeu que criminalizar o consumo de drogas fere a intimidade e autonomia dos cidadãos,

mas votou pela descriminalização apenas do porte de maconha.

O segundo a votar foi o ministro Roberto Barroso.

Para ele, a repressão não ajudou a diminuir o consumo de drogas.

E usar ou não substâncias ilícitas é uma decisão pessoal.

Até que...

O julgamento foi interrompido a pedido do ministro Teori Zavascki.

Ainda faltam oito votos para uma decisão.

Em 2017, Teori morreu num acidente de avião e foi substituído por Alexandre de Moraes,

que devolveu o pedido de vista ao plenário.

A discussão ficou quase oito anos parada até voltar à pauta da corte nesta semana.

Da redação do G1, eu sou Nathuzaneri e o assunto hoje é o porte de drogas na pauta

do STF.

Como a descriminalização da posse foi parar no Supremo Tribunal Federal, os argumentos

que circulam na corte e as consequências para o sistema penal brasileiro.

Neste episódio, eu converso com o criminalista Pierre Paulo Bottini, professor de Direito

Penal da Universidade de São Paulo e autor do livro Porte de Drogas para o Uso Próprio

e o STF.

E com o Cristiano Marona, diretor do Justa, organização que analisa dados sobre financiamento

e gestão do sistema de justiça.

Quinta-feira, 25 de maio.

Pierre, quase oito anos já se passaram desde o início do julgamento no Supremo sobre a

descriminalização do porte de drogas para consumo.

Quando o julgamento foi interrompido, três ministros já haviam dado seus votos.

Então, para começar, você pode nos lembrar o que está em jogo nesse julgamento e em

que pé ele estava quando ele foi interrompido?

Então, Natuza, na verdade, a discussão inicial era a descriminalização do uso de drogas.

Ou seja, se é ou não constitucional caracterizar como crime o fato de usar drogas.

Esse era o tema inicial que foi discutido.

Nesse sentido, ou seja, no sentido de descriminalizar, de entender como inconstitucional essa criminalização,

votaram três ministros.

O ministro Barroso, o ministro Fachin e o ministro Gilmar Mendes.

Os três no sentido de descriminalizar, mas em maior ou menor medida.

Cada um dos votos teve as suas características, as suas peculiaridades.

Alguns só para descriminalizar o uso da maconha, outros para descriminalizar mais

drogas.

Então, houve aí uma diferença entre os votos, mas todos eles no sentido de que, pelo

menos, a maconha deveria ser descriminalizada.

O primeiro voto foi do ministro Luiz Edson Fachin.

O dependente é vítima e não criminoso germinal.

Afigura-se nessa passada relevante a separação de mercados e a divisão entre espécies de

drogas.

O seguinte a votar foi o ministro Luiz Roberto Barroso.

Se um indivíduo, na solidão das suas noites, beber até cair desmaiado na cama, isso pode

parecer ruim, mas não é ilícito.

Se ele fumar meia carteira de cigarros entre o jantar e a hora de ir dormir, isso certamente

parece ruim, mas não é ilícito.

Pois digo eu, o mesmo deve valer se ele, em vez de cigarro, fumar um baseado entre

o jantar e a hora de ir dormir.

Você entrou, inclusive, no processo representando a ONG Viva Rio como uma espécie de consultor

externo da corte e apresentou alguns argumentos a favor da descriminalização do porte.

Pode nos explicar que argumentos são esses, Pierre?

Então, Natuza, na verdade o que a gente diz naquela petição e são os argumentos

em favor da descriminalização é que a nossa Constituição Federal tem como princípio

fundamental a dignidade humana.

O que significa isso?

Que eu não posso criminalizar qualquer tipo de prática ou de conduta que diga respeito

apenas a mim mesmo, que não tem nenhuma capacidade de lesionar terceiros.

Então o uso de drogas, ainda que se alegue que faz mal para a saúde da pessoa, que afeta

as capacidades psíquicas da pessoa, o que até isso é questionado no campo médico,

mas ainda que isso fosse verdade, isso afeta apenas aquela pessoa.

Ela não tem capacidade de afetar terceiros.

Então nesse sentido não haveria constitucionalidade, não seria legítimo do Estado tratar com

uma pena, com uma repressão criminal, esse ato, esse ato de uso de drogas.

Então esse é o argumento central de todos aqueles que defendem essa descriminalização.

Agora, na época em que o julgamento começou, a Procuradoria Geral da República se pronunciou

pela criminalização do porte de qualquer droga para uso pessoal.

Você pode nos ajudar a pontuar quais são os argumentos de quem segue esse raciocínio?

Quem segue esse raciocínio acaba argumentando de que, em primeiro lugar, quando você autoriza

ou descriminaliza o uso, você acaba contribuindo com o tráfico, porque dizem eles que onde

há demanda, há oferta.

Então, se eu permitir a demanda, se eu permitir o consumo, eu de alguma forma vou estar incentivando

a prática do tráfico de drogas.

O artigo, que é o que está valendo hoje, classifica como crime adquirir, guardar, manter

em depósito, transportar ou carregar drogas para consumo pessoal, sem autorização ou

em desacordo com determinação legal.

E um segundo argumento nesse ponto, nesse sentido, seria que aquele que consome drogas

teria mais propensão a cometer outros delitos.

E em relação a isso, então, o consumo de drogas afetaria terceiros, porque aquela pessoa

acabaria sendo predisposta ou tendo a possibilidade de cometer delitos para manter o seu vício,

para manter o seu consumo de drogas.

Então ele furtaria alguma coisa, ele roubaria alguma coisa, ou ele, por estar num estado

psíquico alterado, acabaria cometendo outros crimes.

Agora, na prática, o que significa dizer que esse julgamento é de repercussão geral?

Esse julgamento, é importante dizer, ele, na verdade, trata de um caso específico de

uma pessoa que foi criminalizada pelo uso, pelo porte de maconha para uso pessoal.

Então não é um caso em que alguém entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade,

um partido político, a Ordem dos Advogados do Brasil.

Ele se originou de um caso concreto, de um caso pontual.

A discussão foi parar no Supremo depois que um preso foi flagrado com três gramas

de maconha dentro da cela.

Eu apelei na hora, não achei justo ser condenado por causa de uma grama de maconha, duas gramas,

três gramas de maconha.

O doutor, o meu defensor público, que é o doutor Leandro, foi e levou para frente

a minha apelação até a última instância.

No primeiro dia de julgamento, a defesa alegou que a lei é inconstitucional.

Hoje quem compra, transporta ou é perro com droga, mesmo que para consumo pessoal,

tem que prestar serviços à comunidade ou cumprir medidas educativas e perde a condição

de réu primário.

Mas o Supremo Tribunal Federal, entendendo que o que estava sendo discutido ali é mais

importante, tem uma repercussão maior do que naquele caso, ele então entendeu dar

uma repercussão geral.

Ou seja, ele vai discutir essa questão e se ele entender pela constitucionalidade ou

pela inconstitucionalidade de criminalizar o uso de drogas, isso vai valer para todo

mundo.

Não só para as partes envolvidas nesse processo, mas para todas as pessoas.

Daí porque várias entidades, como você mesmo mencionou, foram admitidas como amigos

da corte, ou seja, são entidades que têm a contribuir com esse debate, porque esse

debate não vai afetar só as partes naquele processo, mas todo o país.

A gente está falando, na verdade, da política de drogas, da política de saúde de drogas,

da política de prevenção ao uso de drogas, então isso tem um impacto muito grande nacional.

A gente ainda não sabe se o julgamento vai terminar em breve, Pierre, porque outros ministros

ainda podem pedir vista, ou seja, mais tempo para analisar o caso.

De toda forma, qual é a sua expectativa sobre o resultado do julgamento?

O que você imagina que vai acontecer pelo que você sabe do processo e pelo termômetro

que você tem mesmo da Suprema Corte?

Ana Tuzé, é claro que é muito difícil a gente prever o que vai acontecer no Supremo

Tribunal Federal, mas pelas características dos ministros, pelo menos que em sua maioria

acompanha a corte, eu imagino que vai haver uma decisão pela descriminalização.

Eu acho que o Supremo vai entender que há uma incompatibilidade desse dispositivo da

lei penal, desse crime com essa previsão da dignidade humana na nossa Constituição.

E eu acho que os ministros vão enfrentar esses argumentos que a gente conversou aqui,

daqueles que defendem a criminalização, eu acho que de duas formas.

Em primeiro lugar, imagino que eles vão dizer que quando...

Eu não posso culpar alguém, o consumidor, por aquele que o afeta, que é o traficante

de drogas.

Eu não posso pôr a culpa na vítima, porque no fundo, quando a gente fala do consumidor

de uso problemático de drogas, não o uso recreativo, mas aquele que se vicia, ele é

a vítima do traficante.

Então eu não posso, com a justificativa de punir o traficante, acabar punindo também

a sua vítima.

Então eu imagino que os ministros do Supremo vão entender que a questão de uso de drogas

é uma questão que merece atenção, mas merece atenção do ponto de vista da saúde

pública e não do direito penal.

E eu imagino que eles vão caminhar para essa solução.

Agora é importante dizer, e isso talvez não baste, eu acho que mais do que isso,

esses ministros precisam aproveitar a oportunidade para traçar um limite sobre o que é uso

e o que é tráfico de drogas.

Um limite objetivo, um critério quantitativo.

Porque isso hoje é éter puro, né?

Ninguém sabe exatamente a definição, é isso?

É isso, e justamente por não ter definição, o que a polícia faz na ponta?

Ela acaba classificando todo mundo como traficante, porque ela sabe que classificar como usuário

a pena é muito mais branda.

Então se descriminalizar e não fixar um critério objetivo, o que vai ser feito na

ponta?

Todo mundo vai continuar sendo classificado como traficante de drogas e a gente não vai

ter um impacto significativo.

Então é importante que alguns votos, por exemplo, o voto do ministro Parroso, ele traz

um quantitativo, pelo menos para a maconha.

Eu acho muito importante que já sejam apresentados esses quantitativos, porque aí você não

deixa na mão da autoridade policial definir o que é tráfico e o que é uso.

Eu estou propondo uma quantidade de referência para distinguir consumo pessoal de tráfico

em 25 gramas para viger até que o Congresso se manifeste a respeito e o Legislativo, assim

que atui, é a vontade política do Legislativo que vai prevalecer nessa matéria.

O mesmo raciocínio vale para as seis plantas fêmeas, é que a planta fêmea é a que produz

a resina psicoativa em quantidade suficiente para produzir a droga.

Fala, Vinh, 25 gramas, tá?

Ou seis plantas, seis pés de maconha.

Mas veja, é isso naquele momento daquele julgamento lá atrás.

Isso pode ser que mude, se tiver uma definição nesse sentido, pode ser que mude, é isso?

Pode ser que mude, há um projeto de lei do qual até fiz parte da comissão que apresentou

esse projeto de lei que previa quantidades um pouco maiores do que isso, não me lembro

exatamente quais agora, mas é importante que não fique só na maconha, é importante

que tenha uma série de outras drogas em que é importante também que fixe esses limites

e essa definição.

Então eu imagino que eles vão retomar e atualizar essa questão das quantidades para

dar uma resposta definitiva sobre isso.

O ministro Gilmar Mendes já havia se manifestado pela descriminalização do porte para consumo

pessoal de todas as drogas ilícitas.

Para Fachin, a produção e a venda da maconha devem continuar sendo crimes.

O segundo a votar foi o ministro Roberto Barroso.

Para ele, a repressão não ajudou a diminuir o consumo de drogas e usar ou não substâncias

ilícitas é uma decisão pessoal, mas também defendeu a descriminalização apenas da maconha.

O ministro Gilmar Mendes, relator do caso, discordou dos dois ministros.

Para ele, usuários de outras substâncias, como crack, continuariam a sofrer discriminação

e a não procurar tratamento.

Isso é importante, é um passo muito modesto, é só tirar o direito penal de cima do usuário

até para permitir que haja uma política de saúde pública sobre essas pessoas se

elas quiserem.

Agora, em termos de ambiente social, Pir, a gente vem de um contexto de polarização

política, de campo progressista de um lado e de campo conservador e de extrema direita

em parte no outro.

Isso pode incendiar o debate no Supremo de alguma maneira?

Eu acho que depende muito da forma como isso for tratado, dona Tousa, porque se for tratado

como um flaflu, realmente nós somos a favor ou contra as drogas, vai haver essa polarização.

Agora, se houver uma colocação do problema do tamanho que ele tem, ou seja, em determinados

aspectos a droga é um problema, não mais uma vez, não uso recreativo, mas há situações

em que ela é um problema e o que a gente está discutindo no fundo é, é o direito

penal a melhor forma de resolver esse problema ou a gente pode discutir isso do ponto de

vista da saúde, qual o tipo de atenção que o Estado vai dar sobre isso, é pra isso,

é o policial ou é um tratamento para aqueles que precisam de tratamento?

Se a gente for por esse lado de racionalização, eu acho que a polarização deixa de ter sentido,

porque todas as pessoas no fundo estão falando a mesma coisa quando a gente fala do uso problemático

de drogas.

A grande questão é qual é a resposta que o Estado vai dar e eu acho que essa é uma

discussão que pode ser feita sem grandes debates polêmicos, sem grandes gritarias,

mas dentro de uma razoabilidade e de uma civilidade.

Pierre, muito obrigada pelos esclarecimentos, bom trabalho para você.

Obrigadão, obrigado para vocês também, um abraço.

Espera um pouquinho que eu já volto para falar com Cristiano Marona.

Cristiano, o Brasil tem hoje a terceira maior população carcerária do planeta, traz apenas

de Estados Unidos e da China.

Eu sei que você defende que a política de combate às drogas é a principal razão para

isso, mas eu te peço para você explicar o seu argumento, por favor.

Bem, hoje o Brasil tem cerca de um milhão de presos e um em cada três, no caso dos

homens, duas em cada três, no caso das mulheres, estão presas por causa da lei de drogas.

A lei de drogas é hoje o principal vetor encarcerador no Brasil e é também um exemplo

de como uma lei aplicada de forma disfuncional produz resultados negativos.

No caso da lei de drogas, muitos usuários são condenados com base em presunções por

tráfico de drogas.

O julgamento do Supremo do Recurso Tribunal de Narva, 635 e 659, é muito importante porque

é uma oportunidade que o tribunal tem de criar critérios objetivos para diferenciar

uso e tráfico e definir um estândar probatório respeitador da regra, do ônus da prova e

da presunção de inocência, ou seja, para que alguém seja condenado por tráfico é

preciso que haja prova segura da intenção mercantil, do ato de comércio, etc.

O tráfico de maconha não tem um aspecto racial importante nessa discussão.

Eu vou dar aqui um dado.

Um levantamento que foi feito pela Agência Pública de 2019 apresentou que de 4 mil sentenças

julgadas na cidade de São Paulo por tráfico de maconha, 71% dos negros foram condenados

e em relação aos brancos foram 64%.

E aí vem um comparativo em que essa distância chama mais ainda atenção.

A mediana para a condenação por tráfico de uma pessoa preta foi de 145 gramas.

Já para um branco foi de 1,15 kg.

É muita diferença, né?

Sem dúvida.

O racismo estrutural existe e não seria diferente no sistema de justiça.

O Supremo Tribunal Federal, inclusive, está discutindo perfilamento racial na abordagem

policial, num caso envolvendo a lei de drogas, no habeas corpus 208 e 240.

E o vó do ministro Fachin reconhece o racismo como uma circunstância que anula a abordagem

policial, a prisão em flagrante e mesmo o processo subsequente.

É preciso fazer o registro de que o elemento raça acaba sendo, nesse contexto perverso,

utilizado para a distinção dos sujeitos vítimas da letalidade das atividades policiais.

Então são temas interligados.

Quando a gente observa a superrepresentação de negros e pardos no sistema prisional, a

gente percebe que a lei não é igual para todos, que há um viés, há uma tendência

de punir de forma mais severa, mais grave, pessoas não brancas.

Agora eu queria entender com você um aspecto dessa discussão no Supremo, que é a discussão

sobre o limite legal para o usuário, mas numa perspectiva de saúde pública.

O que dá para abordar nesse aspecto?

A lei de drogas tem para objetivo proteger a saúde pública.

A justificativa para a criminalização da posse para uso pessoal é a proteção da

saúde pública.

No entanto, aquele que usa drogas, ele ofende a própria saúde, a saúde individual.

O que está posto em discussão no Supremo é se é papel do Estado dizer a pessoas adultas

e capazes o que pode ou não penetrar os seus corpos.

Em democracias liberais, existe um limite de intervenção do Estado, que é justamente

a falta de alteridade.

Quando uma conduta é autolesiva, ela não ultrapassa o âmbito do próprio autor, não

há justificativa para a incriminação.

E é justamente isso que se discute nesse julgamento que o Supremo deve concluir.

E quem porta droga e faz uso da droga não necessariamente comete um crime que pode ser

tipificado e equiparado, por exemplo, a práticas que são realmente nocivas à sociedade e

às pessoas, como o tráfico, como outros crimes que são praticados exatamente por

conta do uso de droga, mas como uma mercancia, que nós dizemos, ou seja, como uma comercialização

que não leva em consideração a questão da saúde.

Que ele receba um tratamento, porque essa é uma questão de saúde, não de polícia.

Pensando em termos de política pública, é mais vantajoso, é mais benéfico para

a sociedade que a conduta de portar drogas para o uso pessoal não seja criminalizada

e que nos casos em que aquele uso apresenta padrões problemáticos, o que a gente chama

de uso problemático de drogas, aí então a abordagem tem que ser de saúde, não abordagem

policial ou abordagem do sistema de justiça.

Quando uma pessoa fuma cannabis, as substâncias chegam primeiro ao pulmão.

Depois são logo absorvidas pelo sangue e daí levadas até o cérebro.

O THC se encaixa como uma peça de quebra-cabeça nos chamados receptores das células nervosas.

As alterações de consciência variam, mas em geral incluem sensação de relaxamento,

dificuldade para se movimentar e pensar, mudança de humor, perda da memória e da noção de tempo.

A maconha não é uma substância inócua.

Pessoas com transtornos psiquiátricos jovens até um período de maturação cerebral,

em torno de 24, 25 anos, tem uma propensão muito maior de desenvolver no futuro problemas

físicos, problemas de transtornos do humor.

Uso constante e de longo prazo pode causar danos.

Quando mais cedo a pessoa começar a usar, maior a chance de causar dependência e prejuízo

no funcionamento cerebral.

Cristiano, eu queria, à luz do que você está nos dizendo, comparar em termos de

legislação o Brasil com o mundo.

O que te chama a atenção quando a gente faz esse paralelo aqui dentro e lá fora?

Bom, o Brasil tem uma das piores políticas de drogas do mundo.

O Brasil é um dos últimos países que ainda criminaliza a posse para uso pessoal.

Apenas para a gente comparar, na América Latina, os nossos vizinhos praticamente todos

descriminalizaram a posse para uso pessoal já há muito tempo.

Também nos Estados Unidos, na Europa e aqui, infelizmente, esse debate não avança por

conta do conservadorismo e do fato de que hoje o Congresso Nacional tem uma maioria

conservadora e já sinalizou que não vai alterar a lei de drogas no sentido da descriminalização.

Se houver alteração, é possível que a repressão se torne ainda mais dura.

O que contraria a tendência mundial?

Hoje, no mundo todo, há experiências regulatórias que retiram do campo da criminalização a

posse de drogas para uso pessoal e há casos, inclusive, de legalização de toda a cadeia

produtiva, como é o caso da maconha no Canadá, em diversos estados dos Estados Unidos, no

Uruguai.

A história da maconha no Uruguai tem uma data-chave.

10 de dezembro de 2013.

Nesse dia, por uma votação apertada, 16 a 13, o Senado aprovou a lei regulamentando

a cannabis, que é o nome científico da planta.

A iniciativa foi do governo do então presidente José Mujica.

O sociólogo Julio Calçada comandou o processo.

O objetivo central era tirar poder do narcotráfico.

No Uruguai, o tráfico fatura cerca de 40 milhões de dólares e 90% dos usuários usam praticamente

só a maconha.

A lei determina controle total do Estado.

Até o preço é fixado pelo governo.

Se o nosso objetivo é competir com o mercado negro, então a maconha não pode passar de

certo preço.

Sem falar em outras experiências que ainda não chegaram à legalização, mas que criaram

modelos regulatórios básicos, no caso da cannabis, por exemplo, um determinado número

de plantas ou uma determinada quantidade, no sentido de caracterizar o uso pessoal.

O voto do ministro Barroso no Recurso ao Dinaméter E559 foi nesse sentido.

Esse seria um critério que, embora não legalizasse a produção e a distribuição e venda de

maconha, criaria regras básicas que permitiriam reduzir essa grande insegurança que existe

hoje na aplicação da lei de drogas.

Cristiano, muito obrigado.

Eu sei que você falou com a gente já à noite, está em deslocamento, está dentro

do carro.

Então, ter conseguido um espaço na sua agenda para falar com o assunto muito nos felicita.

Obrigada e bom trabalho.

Muito obrigado, Natuza.

Sempre que precisar, às tuas ordens.

Um abraço.

Tchau, tchau.

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