Lobo Bobo, O ARRANJO #15 (English subtitles)
As composições da parceria Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli
rivalizaram de igual pra igual com as parcerias de Tom Jobim e Vinicius de Moraes no início da bossa nova
Nos 3 primeiros discos de João Gilberto, que são considerados a bíblia da bossa nova,
a parceria de Lyra e Bôscoli é a mais presente, ao lado das composições de Jobim e Vinícius
Foi Roberto Menescal quem convidou Bôscoli para o clube da Bossa Nova, o apartamento de Nara Leão
Lá, Bôscoli conheceu a turma e de cara se impressionou com o violão e as músicas de Carlos Lyra
Até que um dia, numa dessas reuniões Bôscoli falou pro Lyra:
- Eu cometo uns poemas, que tal se a gente botasse a roupa suja no mesmo saco?
Foi a senha para o início da parceria
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, sejam bem-vindos
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Lobo Bobo foi a primeira canção da parceria Lyra e Bôscoli,
e teve a sua primeira gravação no disco Chega de Saudade, de João Gilberto
Praticamente ao mesmo tempo a música foi gravada pela cantora Sylvinha Telles
na mesma gravadora, Odeon
Sylvinha Telles é um nome importante no começo da Bossa Nova, foi muito próxima da turma,
além de ter sido namorada de João Gilberto, mas isso foi bem antes
No primeiro semestre de 1958 o jornalista Moisés Fuks
era então o diretor artístico do Grupo Universitário Hebraico,
que ficava no bairro do Flamengo, Rio de Janeiro
Ele já tinha ouvido falar nessa turma fazendo uma música jovem
e ofereceu o auditório do lugar pra que eles fizessem um show,
mas precisavam levar alguém de nome, um artista profissional
Quando eles chegaram para tocar encontraram um cartaz na entrada
"Era um cartaz como esse, assim mesmo: Hoje Sylvinha Telles e um grupo bossa nova
Eu olhei e falei, legal, aí comecei a brincar com a turma,
vamos lá, bossa nova, vamos subir e fazer o show"
Não se sabe quem escreveu o cartaz, possivelmente uma secretária de lá,
mas eles gostaram do nome
Bôscoli, como era jornalista, passou a divulgar o nome pela imprensa
Quase um ano depois desse show, Sylvinha Telles grava um compacto duplo
com arranjos do Maestro Lindolfo Gaya
E nesse disco tem a gravação de Lobo Bobo que eu vou analisar nesse vídeo
Carlos Lyra, ou mais completamente, Carlos Eduardo Lyra Barbosa,
segundo Antônio Carlos Jobim elegante até no nome,
é considerado o melhor melodista da Bossa Nova
Na infância pedia para uma tia dele, Carolina, tocar no piano,
inúmeras e repetidas vezes, peças de Claude Debussy
Outro tio, Edgar, tocava choros e serestas no violão
"O violão sempre teve uma importância, uma presença, muito grande na minha música
Já desde a infância eu ficava observando o meu tio Edgar tocar violão, um violão brasileiro,
tocava Dilermando, João Pernambuco, Sons de Carrilhão"
A chance de aprender um instrumento veio de um infortúnio:
quando estava servindo no exército se acidentou numa prova de salto à distância
e fraturou a perna em dois lugares
Ficou meses na cama e ganhou da sua mãe um violão
e um método para aprender a tocar por cifras
Mais tarde começou a estudar violão clássico
e teve a sorte de ter como vizinho um gênio no instrumento: Garoto
Nascido Aníbal Augusto Sardinha, Garoto começou a tocar profissionalmente muito cedo,
o que lhe rendeu o apelido de Moleque do banjo, e depois, Garoto
Em 1955 já era um dos maiores violonistas do Brasil de todos os tempos,
quando recebeu a visita do vizinho de 22 anos, Carlos Lyra,
que disse que gostaria de tocar para ele ouvir
Garoto gostou dele tocando e disse: você leva jeito, eu vou dar aulas pra você
Foram poucas aulas, num dia Lyra ligou pra marcar o horário e lhe disseram: Não tem mais aulas.
Garoto morreu de ataque cardíaco, aos 40 anos
Nessa época Carlos Lyra já compunha e uma das suas músicas foi gravada por Sylvinha Telles
"Tinha uma música de um de nós do grupo, que era uma música do Carlinhos Lyra que chamava-se Menina
Já tinha uma coisa moderna mas era ainda no samba-canção, dizia:
O que é que seu pai vai dizer, menina eu não presto não pra você"
O detalhe é que Sylvinha mudou a letra, ela gravou como se a música fosse Menino,
para que não houvesse dúvidas sobre a sua sexualidade -
coisas da sociedade brasileira dos anos 1950
A parceria com Ronaldo Bôscoli deslanchou, depois de Lobo Bobo
vieram Saudade fez um samba, Se é tarde me perdoa, Canção que morre no ar
Parecia uma parceria pra durar ainda muito tempo
O fotógrafo Chico Pereira trabalhava na Odeon e marcou uma reunião para apresentar a turma,
Bôscoli, Menescal, Nara e Carlos Lyra, a um diretor da companhia, o sírio André Midani
Todos achavam que Midani era francês, e ele tinha realmente morado em Paris,
e convivido com a juventude existencialista na Rive Gauche
Midani era uma figura exótica para os padrões da época no Brasil,
usava camisas coloridas, calça jeans e tamancos
Quando a turma chegou Midani ficou decepcionado:
achou eles caretas demais, família demais, e duvidou que algo de novo pudesse sair dali
Mas quando eles começaram a tocar mudou de opinião muito rápido:
arrumou um papel qualquer e fez com que todos assinassem ali um contrato pra gravar na Odeon -
na prática um contrato sem valor jurídico
Depois do show no Grupo Hebraico, que lotou o auditório com quase 300 pessoas,
a turma foi convidada para tocar no auditório da Pontifícia Universidade Católica, a PUC, na gávea
"Mas os padres invocaram com uma das convidadas que era a Norma Bengell,
que tinha acabado de gravar um disco ela nua, coberta assim só com as mãos
e os padres invocaram, falaram que não pode de jeito nenhum a Norma Bengell,
vocês podem, mas a Norma não"
Mas os outros artistas, liderados por Sylvinha Telles, bateram o pé:
ou vamos todos ou não tem show
Os jornais repercutiram a negativa do reitor da PUC e houve uma repercussão muito grande,
um dos jornais colocou até a manchete: Norma no index
O show então foi transferido para a Faculdade de Arquitetura, na Urca,
e, turbinado com a polêmica, superlotou
"Eu tava aqui inclusive varrendo isso aqui pra ficar tudo limpinho,
não tinha ninguém que fizesse isso pra gente
E eu tô varrendo e o cara falando, eu vou abrir, eu vou abrir,
eu falo, espera aí eu tô acabando,
e o cara fala, tem que abrir, o trânsito tá todo parado aqui em frente
E eu digo, puxa, mas logo no dia do show da gente dá esse negócio do trânsito parado...
Ele falou: não, tá parado por causa do show de vocês, é gente querendo entrar e tal"
Dois executivos da gravadora Odeon estavam na plateia:
André Midani e o seu chefe, Aloysio de Oliveira
Midani seguia entusiasmado com a música da turma,
e agora via a repercussão na plateia de estudantes,
era um mercado jovem a ser explorado
Aloysio, que a muito custo aceitou gravar João Gilberto,
não se interessava pelos artistas jovens que ali se apresentaram,
excetuando Sylvinha Telles e Alaíde Costa, que já eram contratadas da Odeon
E o projeto de disco da turma, prometido por Midani, ficou empacado na Odeon
Nesse momento a gravadora Philips convida Carlos Lyra pra gravar um disco solo na companhia,
mas ele recusa, ele estava comprometido com o disco coletivo da turma
Ronaldo Bôscoli estava na época trabalhando na Odeon
e Lyra foi falar com ele do interesse da Philips, mas Bôscoli garantiu pra ele que o disco na Odeon iria sair
Mas passava o tempo e nada acontecia, e a Philips pressionando Lyra pra gravar o disco,
afinal de contas a Bossa Nova já estava fazendo sucesso e os discos eram todos da Odeon,
virou uma briga de gravadoras, ambas multinacionais, gigantes no ramo
Lyra procurou a Odeon e disse que se eles não se interessavam em fazer um disco com ele
ele iria gravar na Philips
A Odeon teria dito que esperava que ele cumprisse o acordo
mas não prometeu quando gravaria o disco com a turma
Lyra não gostou, se sentiu pressionado e resolveu comprar a briga:
gravou o disco na Philips e o LP da Odeon com a turma nunca saiu
Nessa briga de gravadoras, a Bossa Nova rachou
e nunca mais Lyra e Bôscoli compuseram juntos
1. MELODIA Mas vamos voltar no tempo, da primeira parceria dos dois
"A primeira música que eu mostrei pra ele foi uma melodia que eu tinha
que era inspirada naquela melodia d'O Gordo e o Magro, que fazia assim:
E foi assim que saiu o Lobo Bobo"
Ronaldo Bôscoli fez uma letra completamente diferente de tudo que se fazia de letra até ali,
nos fim dos anos 1950
Era coloquial, era irreverente, era inovadora,
mesmo fazendo referência a uma fábula que ficou conhecida pelos irmãos Grimm
no meio do século XIX
A letra atualizava a história, sem o protagonismo da vovó,
para uma situação de paquera nos anos 1950:
o lobo que buzina pra chapeuzinho e acaba fazendo o papel de bobo
Eu levava para as melodias as minhas experiências jornalísticas
Lobo Bobo, é uma coisa hoje dia uma coisa ingênua pra passar o tempo,
não é senão uma crônica pequenininha de uma situação acontecida comigo na praia de Copacabana"
Para a história ficou marcado que a música era pra então namorada de Ronaldo Bôscoli na época,
a jovem Nara Leão, mas pode ser só folclore
2. ORQUESTRAÇÃO O maestro Lindolfo Gaya estava no seu auge profissional quando surgiu a Bossa Nova
Com a sua imensa capacidade artística ele viveu esse período intensamente,
com muitos trabalhos, sempre no mais alto nível
A orquestração traz instrumentos que seriam pouco utilizados em arranjos de Bossa Nova,
como fagote e oboé e outros que quase não aparecem, de fato, nas gravações do gênero,
como acordeom e pandeiro
Mas ainda assim a gravação é moderna para a época, e é representativa do movimento
3. A FORMA DO ARRANJO A forma de Lobo Bobo é ABCB,
sendo que as partes A e B começam sempre com a citação da melodia de O gordo e o magro
Mas isso na melodia original do Carlos Lyra,
nessa gravação a Sylvia Telles só faz uma vez essa primeira nota no grave,
nas outras vezes ela começa com a nota oitava acima
Isso disfarça um pouco a citação da melodia de O gordo e o magro,
mas não dá pra saber se era essa a intenção
O clima da introdução é meio de desenho animado,
com um instrumento de percussão orquestral chamado glockenspiel
Glockenspiel, que em alemão significa toque de sinos,
é um instrumento formado por placas de metal formando o desenho das teclas de um piano
e que é tocado com baquetas
A introdução começa com o fagote com notas em stacatto,
que é tocar as notas bem curtinhas
O glockenspiel, o acordeom
e a flauta citando o final da melodia
Na parte A as cordas fazem a cama harmônica
Na parte B aparece o acordeom, bem discretamente
Voltam as cordas, mais no agudo
Na parte C o glockenspiel vai fazer as respostas à melodia e as cordas a resposta da resposta,
com cama harmônica do acordeom
E uma frase descendente da flauta encerrando o trecho
Percebam que o violão não faz a batida da bossa nova
Cama harmônica nas cordas, discretamente
Na parte instrumental solo de acordeom
e respostas com flauta em uníssono com as cordas em pizzicato
Solo de uníssono das cordas com o glockenspiel
Voltam flauta e pizzicatto,
no pizzicatto as cordas tocam com o dedo, não usam o arco
Oboé com glockespiel
Outra sutil cama harmônica nas cordas
A melodia agora meio tom abaixo,
e mais meio tom abaixo, voltando pro tom original
Fagote e glockenspiel pra terminar
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Muito obrigado, até uma próxima