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Podcast do projeto Querino (*Generated Transcript*), 8. Democracia - Part 2

8. Democracia - Part 2

tão incrível como o Luiz Gama.

Eu vou resumir rapidinho, porque imagino que você já conheça.

Ele nasceu livre em Salvador,

filho de uma africana liberta, a Luisa Maim.

O Luiz foi separado da mãe ainda criança,

e quando tinha só 10 anos,

foi vendido pelo pai, que era branco.

Mas o Luiz tinha nascido livre,

não podia ser escravizado e nem podia ser vendido.

Ainda assim, ele foi mantido em cativeiro a adolescência inteira.

Até que ele aprendeu a ler e a escrever,

descobriu que o que tinha sido feito com ele era ilegal

e conseguiu a própria libertação.

E a partir daí, ele foi muita coisa,

mas principalmente jornalista e advogado,

e um ativista pela causa abolicionista.

E assim, como se não bastasse tudo o que ele já tinha feito,

é aí que entra para mim a parte mais incrível

na trajetória do Luiz Gama.

Ele usava aquela Lei de 31,

a Lei da Sacanagem, a Lei para Inglês V,

para libertar no judiciário

pessoas que estavam sendo escravizadas ilegalmente.

Porque é isso, lembra daquilo que o historiador

Luiz Felipe de Alencastro chama de

o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira?

Desde 1818, estava proibido o tráfico de pessoas sequestradas

acima da linha do Equador.

Depois, em 1831, foi proibido o tráfico de todas as pessoas africanas.

Cada uma dessas quase 800 mil pessoas que chegaram desde então,

mais os seus descendentes,

cada uma dessas pessoas

foi escravizada ilegalmente.

Aí, quando teve a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850,

o governo, o judiciário e a sociedade brasileira

poderiam ter feito justiça e finalmente libertado essas pessoas.

Mas escolheram não fazer isso,

o nosso pecado original.

Então, quando a gente está falando de pessoas ainda escravizadas no Brasil

nessa época, nas décadas finais de escravidão,

quando o Brasil era o único país das Américas

que não estava nem discutindo a abolição,

a gente está falando de uma massa de pessoas

ilegalmente escravizadas.

E esse era o foco do trabalho do Luiz Gama no judiciário.

Foi assim que ele conseguiu a libertação de centenas de pessoas.

E tudo isso como um membro ativo do movimento abolicionista.

Que não parava de crescer e contava cada vez mais

com integrantes também da parcela rica da população.

Uma parte da elite política fala,

bom, nós vamos ficar aqui sozinhos,

como os escravistas da América, no limite do mundo.

E uma outra parte teme a guerra civil.

Se a gente não fizer alguma coisa,

a gente pode acabar no desfecho americano.

E uma outra ameaça que paira sobre todo mundo

é o que até ganhou um nome na época, que é o haitianismo.

Que é o medo de uma revolução escrava.

Afinal de contas, os escravos são maioria,

se eles resolverem fazer uma revolução, acabou.

Então a lei do ventre livre é uma consequência desse jogo aí.

A lei do ventre livre.

Essa a gente aprende na escola também, né?

Essa ideia de que a abolição foi meio que gradual, aos pouquinhos.

Só em 71 que a classe política brasileira

concordou com uma lei que concedesse alguma forma de libertação.

Mas ainda assim eles resistiram.

Defendiam que os senhores precisavam ser ressarcidos.

Daí quando a lei finalmente foi aprovada, tinham duas opções.

O dono poderia libertar a criança quando ela completasse oito anos

e aí ele receberia uma indenização.

Ou então o dono manteria o jovem escravizado

até que ele completasse 21 anos.

Em 95% dos casos, os senhores escolheram a segunda opção.

Ou seja, como todas aquelas crianças

continuariam escravizadas por mais duas décadas,

o impacto era quase zero.

Essa lei não é aplicada.

Todo mundo imagina sempre que as leis para inglês ver

são só lá as do final do tráfego, mas não é verdade.

Então de fato a lei do ventre livre não é uma lei que liberta.

Ela liberta pouquíssima gente.

Mas as pessoas negras também usaram essa lei a favor delas.

Houve vários casos de mulheres negras, de mães,

que entraram com ações no judiciário

para garantir a liberdade dos filhos com base na lei do ventre livre,

alegando que os senhores não estavam cumprindo a parte deles

no cuidado daquelas crianças.

E uma outra coisa é que entre os seus artigos,

a lei autorizava o escravizado a formar pecúlio,

a juntar dinheiro para poder comprar a própria carta de alforria.

Isso vai ser utilizado pelas associações abolicionistas

para libertar escravos.

As associações abolicionistas agiam na prática,

mas também trabalhavam a mente da população.

Porque a escravidão era considerada um fenômeno normal.

É a vontade de Deus.

Então uma parte muito importante da campanha abolicionista

foi produzir uma nova sensibilidade em relação à escravidão.

Mostrar que ela era tanto, de um lado, um fenômeno ilegal,

porque o Brasil já tinha lei desde os anos 30 proibindo o tráfico,

como ela era desumana.

O outro argumento deles era o do progresso.

A gente não pode avançar com uma instituição

que é arcaica e incompatível com o trabalho livre.

E tudo isso foi preparando o terreno

para o que acabou acontecendo no Ceará.

A campanha abolicionista ganha força

na hora em que a lei do ventre livre mostra que não vai ser aplicada.

Então os abolicionistas começam a fazer pressão.

E daí isso está acontecendo quase que no país inteiro,

mas em alguns lugares a organização local dos abolicionistas é mais forte.

O Ceará é um desses casos.

O José do Patrocínio e o André Rebouças

tinham começado uma articulação nacional pela abolição.

E o que eles fazem é fazer um experimento ali

e o José do Patrocínio viaja para lá

e eles fazem uma campanha de libertação de territórios.

Então eles falam que precisamos criar um território livre no país.

E o Ceará é isso,

porque o Ceará tem essa combinação política favorável.

E tem uma outra grande vantagem.

O Ceará tem poucos escravos.

O Ceará está vivendo uma crise econômica violenta,

está todo mundo vendendo seus escravos para o Sul,

então a operação é mais fácil de fazer.

E a última vantagem, que também é bem significativa,

é que como está longe do Rio de Janeiro, que é a capital,

demora de chegar a repressão.

Os escravizados do Ceará estavam sendo vendidos

para as regiões sudeste e sul do Brasil.

Eles eram levados até a praia,

embarcados em jangadas e levados para os navios.

Em 1881, os jangadeiros,

que eram homens livres e majoritariamente negros,

se recusaram a fazer o embarque dos escravizados.

O líder deles era o Chico da Matilde,

um homem negro que entrou para a história como o Dragão do Mar.

E a partir daí, os abolicionistas começaram a libertar,

cidade por cidade, do Ceará.

E aí, ao mesmo tempo, os jornais abolicionistas no Rio

vão publicando uma cronologia.

Faltam tantas cidades para serem libertadas.

Eles também faziam muito bom uso da imprensa.

Então, o resultado é que, em 1884,

o Ceará se declara a primeira província livre do país.

Isso já era uma grande crise política.

Para tentar acalmar os ânimos,

o primeiro ministro do Império enviou para a Câmara

um projeto de lei para alforrear os escravizados com mais de 60 anos.

É uma lei para que não haja abolição,

mais do que para libertar.

Era para tentar postergar ainda mais a abolição.

Só que, ainda assim, deu um quiprocó danado.

A Lei do Ventre Livre, aquela de 71,

tinha criado também a obrigação

de que os senhores matriculassem seus escravizados,

registrassem eles.

Muitos donos de escravos,

quando tinham matriculado seus escravos,

eles matriculavam como mais velhos do que eles eram de fato,

para dizer que eles tinham entrado antes no país,

antes da vigência da lei.

Da lei de 31, da lei pré-englesê.

Já essa outra lei que estava sendo discutida...

Quando a lei dizia que ia libertar escravos com 60 anos,

estava, na verdade, libertando escravos muito mais jovens, de fato.

E é isso que dá a grande reação,

que vem outra vez os clubes da lavoura,

uma grande reação escravista.

A mesma classe política que ditou os rumos do Brasil

desde a independência.

Daí o ministro que propôs essa lei caiu,

foi derrubado,

assumiu um novo primeiro-ministro

e passou uma lei dos sexagenários.

E, na prática, ele estendeu o prazo.

A título de indenização,

os escravizados com mais de 60 anos

deveriam ainda prestar mais três anos de serviço.

E ainda ele colocou um penduricalho

para que tudo isso começasse a valer só a partir de 87.

Daí, para os abolicionistas, aquilo foi o estopim.

Então, quando chega em 88,

na verdade, não estão vigindo

nem a lei do ventre livre,

nem a lei dos sexagenários.

Então, muita gente também diz assim,

ah, quando chega em 88 e tem a abolição,

já não tinha mais escravos para libertar.

Não é bem verdade.

Formalmente, você tinha 700 e poucos mil escravos,

mas, de fato, você tinha muito mais.

Essa história que a gente conta normalmente

que você vai abolir na escravidão gradualmente,

não é verdade.

Esse foi um processo que,

sem a mobilização política do movimento abolicionista,

nenhuma dessas leis teria libertado a escravidão por si mesmo,

porque elas não estavam sendo efetivadas.

Então, sem a pressão abolicionista contínua ali,

sabe-se lá quando é que isso teria sido aprovado,

porque tinha projeto aprovando o fim da escravidão

até para 1930.

E as pessoas negras não iriam esperar mais 40 anos pela liberdade.

Elas foram lá e derrubaram a escravidão.

Esse primeiro ministro que assumiu,

indicado pelo Dom Pedro II,

era o Barão de Cotegipe, um escravista baiano.

No meio da ascensão abolicionista,

com o país tomado de eventos abolicionistas,

associações abolicionistas,

você nomeia um escravista.

Então, os abolicionistas falam,

agora não vai dar para continuar fazendo

só o que a gente vinha fazendo.

Eles tentam, mas as conferências públicas

são desbaratadas por milícias,

às vezes pela própria polícia,

abolicionistas são perseguidos.

Agora é realmente a hora de fazer.

Já tem o Ceará livre mesmo,

então vamos incentivar os escravos a fazerem o que, na verdade,

os escravos por si mesmos sempre fizeram,

que é fugir em toda oportunidade.

Então, o que acaba acontecendo agora

é o que eu chamo de fugas coletivas orientadas.

Não é que os abolicionistas inventam o fenômeno,

mas é que eles organizam a fuga.

A estratégia bem-sucedida no Ceará

de libertação da província

acontece também no Amazonas

e quase acontece em várias outras províncias

que libertam, declaram libertadas várias outras cidades,

no Rio Grande do Sul, em Goiás.

E aí tem relatos de fugas

em que daí os próprios escravos, recebendo essa informação,

eles também começam a organizar as próprias fugas.

Então você tem um momento de desorganização da ordem escravista.

Isso é importante também para mostrar esse caráter popular

do movimento abolicionista brasileiro.

Paralelamente à política tida como oficial,

a dos espaços de poder,

havia toda essa ação política popular

que acontecia nas ruas, nas fazendas, nas matas.

No interior de São Paulo, na região de Itu,

teve um grupo de fugitivos que saiu de diversas fazendas da região.

E vai ganhando adesões, vai atravessando cidades.

É uma massa de velhos, crianças, homens, mulheres, que vai indo.

Vai ficando todo mundo de cabelo em pé, a imprensa vai noticiando.

E quando chega na Serra do Mar,

o governo imperial, do barão de Cotegipe,

manda fuzilar, atira.

É um morticínio do qual o próprio exército, em seguida, se envergonha.

É um evento decisivo que choca o país,

mas também porque o próprio exército,

daí o marechal Deodoro manda uma carta para Isabel.

O Pedro II estava doente e foi para a Europa se tratar.

A filha mais velha dele, a princesa Isabel,

tinha assumido a regência.

E ela recebeu essa carta do comandante do exército, informando que...

O exército não vai mais caçar escravo fugido.

Nós não vamos participar disso.

Então, o que acontece nessa hora?

A monarquia perde o apoio das forças armadas

para continuar mantendo a escravidão.

Tinha uma corrente dentro do exército

que se recusava a cumprir o papel de capitão do mato.

Por achar uma função inglória.

Ao mesmo tempo, a igreja também,

vendo que a coisa está acirrada,

vários bispos começam a declarar apoio à abolição.

Daí, em Itapira, no interior de São Paulo,

um inglês e um americano que tinham lutado na Guerra Civil dos Estados Unidos,

os dois eram confederados, eram escravistas,

eles incitaram a população local, ali de Itapira,

a linchar um delegado de polícia que era abolicionista.

A elite social da cidade vai à casa dele e lincha o delegado.

Bateram nele até a morte.

Isso foi em fevereiro de 88.

Então, é também um evento de grande proposição

e que dá essa notícia, acho que sobretudo para Isabel,

que é quem está querendo herdar o trono,

de que não vai dar para segurar.

Não vai dar para segurar.

Sem o exército, sem a igreja e com os conflitos correndo,

o que está acontecendo?

Os abolicionistas estão se armando e os escravistas estão se armando,

em vésperas de guerra civil.

Vésperas de uma guerra civil.

O barão de Cotegipe pediu demissão

e a princesa Isabel nomeou outro conservador,

mas agora com a incumbência de abolir a escravidão.

Não tinha mais jeito.

Os deputados e senadores se reuniram em regime de urgência

para votar a lei da abolição.

Durante lá a semana de tramitação,

em que eles ficaram negociando qual seria o texto da lei,

Rebouças é que escreveu a lei.

Rebouças é o André Rebouças,

que era muito próximo da família imperial.

Então, ele foi lá nos ministros,

embora fossem inimigos anteriores dele,

foi na princesa com as ideias dele.

Põe uma linha aqui, tira uma linha ali.

Ele tinha um projeto que ele chamava de democracia rural,

porque era isso, era dividir a terra,

e tinha um projeto de concessão de direitos plenos para os ex-escravos.

O projeto dos abolicionistas era um projeto

que incluía uma reforma do funcionamento da vida social,

incorporação do proletário escravo à nação brasileira.

Converter, de fato, uma pessoa que tinha sido criada sob escravidão

num cidadão capaz de ler, escrever, trabalhar,

ter a sua própria terra, ter os seus próprios direitos.

A negociação continuou e o projeto, enfim, foi para votação.

E ainda teve deputado e senador que votou contra,

entre eles, o barão de Cotegipe.

Mas a maioria foi a favor

e a lei, enfim, foi aprovada.

Num domingo, num 13 de maio de 1888,

a princesa Isabel sancionou a Lei Áurea.

O texto dizia assim.

A princesa imperial regente, em nome de sua majestade o imperador,

o senhor Dom Pedro II, faz saber a todos os súditos do império

que há sido a lei áurea.

Faz saber a todos os súditos do império

que a Assembleia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte.

Artigo 1º.

É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil.

Artigo 2º.

Revogam-se as disposições em contrário.

E era só isso que dizia essa lei.

Umas 50 palavras.

Essa opção da coroa é uma opção que, de certa maneira,

salvou uma parte do escravismo.

Porque o que eles fizeram não foi aprovar o projeto do Rebouças,

nada, nada passou.

A única coisa que pôde ser consensuada

é que estava acabada a escravidão no Brasil.

Não se dizia como se ia implementar isso,

não se dizia o que ia acontecer com os ex-escravos,

não se dizia como seriam os contratos de trabalho daí por diante,

nada.

Você deveria ter tido uma série de, digamos, disposições transitórias

para dizer juridicamente o que acontece com cada...

Não houve nada.

O que a monarquia fez, no fim, foi deixar que cada proprietário no limite

gerisse a sua própria transição para o trabalho livre.

Por isso que os movimentos negros chamam o que aconteceu

de abolição inconclusa.

Porque os abolicionistas queriam muito mais.

Queriam o fim da escravidão, claro,

mas um fim que fosse acompanhado de projeto,

de medidas compensatórias.

Aliás, em muito lugar no Brasil, demorou a chegar a notícia da abolição.

Teve senhor que simplesmente impediu que os trabalhadores soubessem da novidade

e manteve, enquanto pôde, aquelas pessoas escravizadas,

mesmo de forma ilegal.

E a igualdade de direitos, como a gente vê nos jornais todos os dias,

até hoje não aconteceu no Brasil.

Então, nesse sentido, o projeto Rebouças, até hoje,

é um projeto que não se realizou.

Mas nem por isso a gente tem de menosprezar o 13 de maio.

Por mais que não tenha sido tudo o que poderia ter sido,

teve muita luta, muita luta negra,

muito sangue negro derramado para que esse momento finalmente acontecesse.

Para que o Brasil, enfim, se tornasse o último país do Ocidente

a tornar a escravidão ilegal.

Como a Angela Alonso já disse,

se não fosse pelo movimento abolicionista,

teria demorado ainda mais.

Pode não ter sido da forma completa, mas muita gente foi libertada.

Uma liberdade que, como está no samba da Mangueira de 2019,

não veio do céu e nem das mãos da Isabel.

A monarquia não abriu mão da defesa da escravidão

por bondade, por bom coração, por decisão política.

Ela abriu mão por total incapacidade, insuficiência de manter,

porque as duas instituições de fato estavam coladas.

No dia da votação da lei, o Cotegipe faz um discurso profético,

mas é uma profecia que qualquer um podia fazer naquele dia,

quer dizer, a monarquia está baseada na escravidão.

Então, caindo a escravidão, a monarquia vai cair junto também.

Ela não tem onde se apoiar.

Ela era baseada no apoio dos senhores de escravos,

dos grandes proprietários de terra.

Ela está abandonando os proprietários, ela vai também cair.

E foi isso que aconteceu.

Revoltados com a abolição,

os representantes dos escravistas no Congresso

começaram a defender indenização para as perdas financeiras

que eles tiveram com o fim do trabalho escravo.

Pouco mais de um ano depois da Lei Áurea,

os escravistas eram a base de apoio do golpe,

num 15 de novembro,

que derrubou o Império e instituiu a República.

E o projeto de exterminar a parcela negra da população tomou forma.

Um dos primeiros atos do novo governo provisório,

só quatro dias depois do golpe,

foi fazer um decreto mantendo a proibição de direito ao voto

para os analfabetos.

Isso tinha sido instituído nos anos finais do Império.

Só podia votar quem soubesse ler e escrever.

E menos de um terço da população brasileira sabia ler e escrever.

Agora, pensa.

Numa sociedade que, por mais de três séculos, dificultou

e, por vezes, chegou até a barrar o acesso de pessoas negras

ao ensino,

quem você acha que estava sendo alijado de novo

dos seus direitos políticos?

Essa proibição só foi cair, junto com a ditadura militar,

no período da abertura política, em 1985.

E no período republicano, a lógica era essa.

Já que não dava mais para escravizar as pessoas negras,

o foco era a eliminação.

Começaram a ser implementadas uma série de leis antinegros.

E a gente já falou sobre algumas delas nos outros episódios,

como as de perseguição às religiões de matriz africana, por exemplo.

Tinha um ditado, nessa época do começo da República, que dizia assim,

a liberdade é negra, mas a igualdade é branca.

Mas se tem uma coisa que, a essa altura, você já sabe,

e a gente falou bastante sobre isso,

é que as pessoas negras não aceitaram tudo isso de braços cruzados.

Eles queriam acabar com a gente,

mas a gente está aqui, mais da metade da população.

Desde que a primeira pessoa africana foi trazida para esse território indígena

tantos séculos atrás,

foi o nós por nós que garantiu a nossa sobrevivência,

das pessoas negras, dos nossos povos originários,

de todo mundo que não se encaixa no padrão dos detentores do poder,

no padrão do homem branco.

Foi o nós por nós que garantiu que a gente tivesse humanidade e liberdade.

E foi assim na saúde, na educação, em moradia,

no trabalho, na cultura, na luta pelos direitos humanos,

na luta por um país melhor para todos,

não só para as pessoas negras, para todos.

Se não fosse por nós, não teria saúde pública para todo mundo,

não teria filho do porteiro e da trabalhadora doméstica,

de todas as cores, de todas as raças, entrando na universidade.

As pessoas negras não construíram só toda a riqueza do Brasil,

elas construíram a própria democracia do Brasil,

ainda que não seja nem de longe o Brasil que a gente sonhou,

o Brasil que a gente merece.

O fato de que a vida negra vale menos quando não vale nada

vem se agravando ainda mais depois da própria abolição.

Aqui de novo, o João José de Moura,

aqui de novo, o João José Reis, historiador e professor.

Pense bem, antes da abolição, o escravo era propriedade,

então ele tinha um senhor que tinha interesse direto

em preservar essa propriedade.

Depois da abolição, não tem mais isso.

Então é uma população realmente que está entregue à sorte,

se pode dizer.

Por mais que se denuncie, é impressionante isso,

por mais que se esclareça,

por mais que os meios de comunicação hoje

estarem engajados num discurso de denúncia do racismo,

de promoção da inserção do negro na sociedade,

você tem lá o sargento da Marinha

que simplesmente vê o seu vizinho, que era negro,

chegando em casa e ele acha que ele era um bandido

porque ele tinha aberto a bolsa dele, a mochila dele,

para pegar uma chave.

Um sargento da Marinha matou o vizinho na porta de casa

na região metropolitana do Rio de Janeiro.

O atirador disse que confundiu a vítima,

um homem negro, com um bandido.

Ele atira três vezes, não é uma não, é três vezes.

É óbvio que se o cara fosse branco, ele não iria atirar, é óbvio.

Assim como se esse imigrante fosse branco,

fosse um português, um espanhol, um italiano,

ele não seria esplancado daquela maneira brutal

e os policiais municipais não iriam simplesmente dar as costas

ao que estava acontecendo.

Testemunhas do assassinato do jovem congolês Moise

na Praia da Barra da Tijuca, no Rio,

disseram que guardas municipais não fizeram nada para evitar o crime,

mesmo tendo sido chamados para intervir.

Quando eu vejo esses casos, eu penso nisso,

eu digo, caramba, isso é pior do que a época do escravismo.

Como a gente ouviu ao longo desses oito episódios,

se tem uma política pública constante, eficaz e longeva

na história do Brasil, é o racismo.

Uma política de Estado que ainda está em vigor.

Embora este seja o último episódio do podcast do Projeto Quirino,

não é nem de longe o último capítulo desse projeto,

que está só começando.

O Quirino foi pensado como um projeto multiplataforma

para refletir sobre a história do Brasil,

como tudo isso explica o Brasil atual,

mas também o futuro.

Que país nós queremos ser,

podemos ser,

devemos ser,

que país nós merecemos ter.

E o podcast foi o ponto de partida para tudo mais

o que o projeto vai se tornar.

Por isso, fique ligado em projetoquirino.com.br

para continuar acompanhando essa jornada.

A gente começou o podcast lá no primeiro episódio

com uma frase do fotógrafo e ativista Januário Garcia.

Existe uma história do negro sem o Brasil.

O que não existe é uma história do Brasil sem o negro.

E eu quero terminar com o mote da campanha

da Coalizão Negra por Direitos,

o grupo que reúne organizações, entidades e coletivos

dos movimentos negros brasileiros.

A frase é...

Enquanto houver racismo,

não haverá democracia.

E já passou da hora do Brasil ser de fato uma democracia.

O Projeto Quirino é apoiado pelo Instituto Ibiraputanga.

O podcast foi produzido pela Rádio Novelo,

o nosso site projetoquirino.com.br

reúne todas as informações sobre o projeto e conteúdo adicional.

O site foi desenvolvido pela AIE.

Eu te convido a conferir também todo o material do Projeto Quirino

que está sendo publicado pela revista Piauí,

nas bancas e no site da revista.

Este episódio teve pesquisa de Gilberto Porcidônio,

Rafael Domingos Oliveira e Angélica Paulo,

que também fez a produção.

A edição foi do Luca Mendes,

a sonorização da Júlia Matos

e a finalização da Pipoca Sound.

A checagem foi do Gilberto Porcidônio

e a música original do Vitor Rodrigues Dias.

Estratégia de promoção, distribuição e conteúdo digital,

Bia Ribeiro.

A identidade visual é do Draco Imagem.

Os transcritores das entrevistas foram Guilherme Póvoas e Rodolfo Viana.

A locução foi gravada no estúdio da Pipoca Sound

com trabalhos técnicos de Luiz Rodrigues.

Consultoria em roteiro de Mariana Jaspe,

Paula Escarpim e Flora Thompson Devoe,

com revisão de Natália Silva.

Consultoria em história, Inaê Lopes dos Santos.

Produção executiva, Guilherme Alpendre.

A execução financeira do projeto é do ISPIS,

Instituto Sincronicidade para Interação Social.

Idealização, reportagem, roteiro, apresentação e coordenação,

Tiago Rogero.

Este episódio usou áudios de TV Globo e SBT.

Agradecimentos a Maria Alice Rezende de Carvalho,

ao Rogério Nacano, ao Aldivan da Silva,

à Luana Carvas, à Maiara Moreira e ao Matheus Coutinho.

E a você que nos ouviu até aqui,

muito obrigado.

8. Democracia - Part 2 8. Demokratie - Teil 2 8. Democracy - Part 2 8. Democracia - Parte 2 8. Demokrasi - Bölüm 2 8. Демократія - Частина 2

tão incrível como o Luiz Gama.

Eu vou resumir rapidinho, porque imagino que você já conheça.

Ele nasceu livre em Salvador,

filho de uma africana liberta, a Luisa Maim.

O Luiz foi separado da mãe ainda criança,

e quando tinha só 10 anos,

foi vendido pelo pai, que era branco.

Mas o Luiz tinha nascido livre,

não podia ser escravizado e nem podia ser vendido.

Ainda assim, ele foi mantido em cativeiro a adolescência inteira.

Até que ele aprendeu a ler e a escrever,

descobriu que o que tinha sido feito com ele era ilegal

e conseguiu a própria libertação.

E a partir daí, ele foi muita coisa,

mas principalmente jornalista e advogado,

e um ativista pela causa abolicionista.

E assim, como se não bastasse tudo o que ele já tinha feito,

é aí que entra para mim a parte mais incrível

na trajetória do Luiz Gama.

Ele usava aquela Lei de 31,

a Lei da Sacanagem, a Lei para Inglês V,

para libertar no judiciário

pessoas que estavam sendo escravizadas ilegalmente.

Porque é isso, lembra daquilo que o historiador

Luiz Felipe de Alencastro chama de

o pecado original da sociedade e da ordem jurídica brasileira?

Desde 1818, estava proibido o tráfico de pessoas sequestradas

acima da linha do Equador.

Depois, em 1831, foi proibido o tráfico de todas as pessoas africanas.

Cada uma dessas quase 800 mil pessoas que chegaram desde então,

mais os seus descendentes,

cada uma dessas pessoas

foi escravizada ilegalmente.

Aí, quando teve a Lei Eusébio de Queiroz, em 1850,

o governo, o judiciário e a sociedade brasileira

poderiam ter feito justiça e finalmente libertado essas pessoas.

Mas escolheram não fazer isso,

o nosso pecado original.

Então, quando a gente está falando de pessoas ainda escravizadas no Brasil

nessa época, nas décadas finais de escravidão,

quando o Brasil era o único país das Américas

que não estava nem discutindo a abolição,

a gente está falando de uma massa de pessoas

ilegalmente escravizadas.

E esse era o foco do trabalho do Luiz Gama no judiciário.

Foi assim que ele conseguiu a libertação de centenas de pessoas.

E tudo isso como um membro ativo do movimento abolicionista.

Que não parava de crescer e contava cada vez mais

com integrantes também da parcela rica da população.

Uma parte da elite política fala,

bom, nós vamos ficar aqui sozinhos,

como os escravistas da América, no limite do mundo.

E uma outra parte teme a guerra civil.

Se a gente não fizer alguma coisa,

a gente pode acabar no desfecho americano.

E uma outra ameaça que paira sobre todo mundo

é o que até ganhou um nome na época, que é o haitianismo.

Que é o medo de uma revolução escrava.

Afinal de contas, os escravos são maioria,

se eles resolverem fazer uma revolução, acabou.

Então a lei do ventre livre é uma consequência desse jogo aí.

A lei do ventre livre.

Essa a gente aprende na escola também, né?

Essa ideia de que a abolição foi meio que gradual, aos pouquinhos.

Só em 71 que a classe política brasileira

concordou com uma lei que concedesse alguma forma de libertação.

Mas ainda assim eles resistiram.

Defendiam que os senhores precisavam ser ressarcidos.

Daí quando a lei finalmente foi aprovada, tinham duas opções.

O dono poderia libertar a criança quando ela completasse oito anos

e aí ele receberia uma indenização.

Ou então o dono manteria o jovem escravizado

até que ele completasse 21 anos.

Em 95% dos casos, os senhores escolheram a segunda opção.

Ou seja, como todas aquelas crianças

continuariam escravizadas por mais duas décadas,

o impacto era quase zero.

Essa lei não é aplicada.

Todo mundo imagina sempre que as leis para inglês ver

são só lá as do final do tráfego, mas não é verdade.

Então de fato a lei do ventre livre não é uma lei que liberta.

Ela liberta pouquíssima gente.

Mas as pessoas negras também usaram essa lei a favor delas.

Houve vários casos de mulheres negras, de mães,

que entraram com ações no judiciário

para garantir a liberdade dos filhos com base na lei do ventre livre,

alegando que os senhores não estavam cumprindo a parte deles

no cuidado daquelas crianças.

E uma outra coisa é que entre os seus artigos,

a lei autorizava o escravizado a formar pecúlio,

a juntar dinheiro para poder comprar a própria carta de alforria.

Isso vai ser utilizado pelas associações abolicionistas

para libertar escravos.

As associações abolicionistas agiam na prática,

mas também trabalhavam a mente da população.

Porque a escravidão era considerada um fenômeno normal.

É a vontade de Deus.

Então uma parte muito importante da campanha abolicionista

foi produzir uma nova sensibilidade em relação à escravidão.

Mostrar que ela era tanto, de um lado, um fenômeno ilegal,

porque o Brasil já tinha lei desde os anos 30 proibindo o tráfico,

como ela era desumana.

O outro argumento deles era o do progresso.

A gente não pode avançar com uma instituição

que é arcaica e incompatível com o trabalho livre.

E tudo isso foi preparando o terreno

para o que acabou acontecendo no Ceará.

A campanha abolicionista ganha força

na hora em que a lei do ventre livre mostra que não vai ser aplicada.

Então os abolicionistas começam a fazer pressão.

E daí isso está acontecendo quase que no país inteiro,

mas em alguns lugares a organização local dos abolicionistas é mais forte.

O Ceará é um desses casos.

O José do Patrocínio e o André Rebouças

tinham começado uma articulação nacional pela abolição.

E o que eles fazem é fazer um experimento ali

e o José do Patrocínio viaja para lá

e eles fazem uma campanha de libertação de territórios.

Então eles falam que precisamos criar um território livre no país.

E o Ceará é isso,

porque o Ceará tem essa combinação política favorável.

E tem uma outra grande vantagem.

O Ceará tem poucos escravos.

O Ceará está vivendo uma crise econômica violenta,

está todo mundo vendendo seus escravos para o Sul,

então a operação é mais fácil de fazer.

E a última vantagem, que também é bem significativa,

é que como está longe do Rio de Janeiro, que é a capital,

demora de chegar a repressão.

Os escravizados do Ceará estavam sendo vendidos

para as regiões sudeste e sul do Brasil.

Eles eram levados até a praia,

embarcados em jangadas e levados para os navios.

Em 1881, os jangadeiros,

que eram homens livres e majoritariamente negros,

se recusaram a fazer o embarque dos escravizados.

O líder deles era o Chico da Matilde,

um homem negro que entrou para a história como o Dragão do Mar.

E a partir daí, os abolicionistas começaram a libertar,

cidade por cidade, do Ceará.

E aí, ao mesmo tempo, os jornais abolicionistas no Rio

vão publicando uma cronologia.

Faltam tantas cidades para serem libertadas.

Eles também faziam muito bom uso da imprensa.

Então, o resultado é que, em 1884,

o Ceará se declara a primeira província livre do país.

Isso já era uma grande crise política.

Para tentar acalmar os ânimos,

o primeiro ministro do Império enviou para a Câmara

um projeto de lei para alforrear os escravizados com mais de 60 anos.

É uma lei para que não haja abolição,

mais do que para libertar.

Era para tentar postergar ainda mais a abolição.

Só que, ainda assim, deu um quiprocó danado.

A Lei do Ventre Livre, aquela de 71,

tinha criado também a obrigação

de que os senhores matriculassem seus escravizados,

registrassem eles.

Muitos donos de escravos,

quando tinham matriculado seus escravos,

eles matriculavam como mais velhos do que eles eram de fato,

para dizer que eles tinham entrado antes no país,

antes da vigência da lei.

Da lei de 31, da lei pré-englesê.

Já essa outra lei que estava sendo discutida...

Quando a lei dizia que ia libertar escravos com 60 anos,

estava, na verdade, libertando escravos muito mais jovens, de fato.

E é isso que dá a grande reação,

que vem outra vez os clubes da lavoura,

uma grande reação escravista.

A mesma classe política que ditou os rumos do Brasil

desde a independência.

Daí o ministro que propôs essa lei caiu,

foi derrubado,

assumiu um novo primeiro-ministro

e passou uma lei dos sexagenários.

E, na prática, ele estendeu o prazo.

A título de indenização,

os escravizados com mais de 60 anos

deveriam ainda prestar mais três anos de serviço.

E ainda ele colocou um penduricalho

para que tudo isso começasse a valer só a partir de 87.

Daí, para os abolicionistas, aquilo foi o estopim.

Então, quando chega em 88,

na verdade, não estão vigindo

nem a lei do ventre livre,

nem a lei dos sexagenários.

Então, muita gente também diz assim,

ah, quando chega em 88 e tem a abolição,

já não tinha mais escravos para libertar.

Não é bem verdade.

Formalmente, você tinha 700 e poucos mil escravos,

mas, de fato, você tinha muito mais.

Essa história que a gente conta normalmente

que você vai abolir na escravidão gradualmente,

não é verdade.

Esse foi um processo que,

sem a mobilização política do movimento abolicionista,

nenhuma dessas leis teria libertado a escravidão por si mesmo,

porque elas não estavam sendo efetivadas.

Então, sem a pressão abolicionista contínua ali,

sabe-se lá quando é que isso teria sido aprovado,

porque tinha projeto aprovando o fim da escravidão

até para 1930.

E as pessoas negras não iriam esperar mais 40 anos pela liberdade.

Elas foram lá e derrubaram a escravidão.

Esse primeiro ministro que assumiu,

indicado pelo Dom Pedro II,

era o Barão de Cotegipe, um escravista baiano.

No meio da ascensão abolicionista,

com o país tomado de eventos abolicionistas,

associações abolicionistas,

você nomeia um escravista.

Então, os abolicionistas falam,

agora não vai dar para continuar fazendo

só o que a gente vinha fazendo.

Eles tentam, mas as conferências públicas

são desbaratadas por milícias,

às vezes pela própria polícia,

abolicionistas são perseguidos.

Agora é realmente a hora de fazer.

Já tem o Ceará livre mesmo,

então vamos incentivar os escravos a fazerem o que, na verdade,

os escravos por si mesmos sempre fizeram,

que é fugir em toda oportunidade.

Então, o que acaba acontecendo agora

é o que eu chamo de fugas coletivas orientadas.

Não é que os abolicionistas inventam o fenômeno,

mas é que eles organizam a fuga.

A estratégia bem-sucedida no Ceará

de libertação da província

acontece também no Amazonas

e quase acontece em várias outras províncias

que libertam, declaram libertadas várias outras cidades,

no Rio Grande do Sul, em Goiás.

E aí tem relatos de fugas

em que daí os próprios escravos, recebendo essa informação,

eles também começam a organizar as próprias fugas.

Então você tem um momento de desorganização da ordem escravista.

Isso é importante também para mostrar esse caráter popular

do movimento abolicionista brasileiro.

Paralelamente à política tida como oficial,

a dos espaços de poder,

havia toda essa ação política popular

que acontecia nas ruas, nas fazendas, nas matas.

No interior de São Paulo, na região de Itu,

teve um grupo de fugitivos que saiu de diversas fazendas da região.

E vai ganhando adesões, vai atravessando cidades.

É uma massa de velhos, crianças, homens, mulheres, que vai indo.

Vai ficando todo mundo de cabelo em pé, a imprensa vai noticiando.

E quando chega na Serra do Mar,

o governo imperial, do barão de Cotegipe,

manda fuzilar, atira.

É um morticínio do qual o próprio exército, em seguida, se envergonha.

É um evento decisivo que choca o país,

mas também porque o próprio exército,

daí o marechal Deodoro manda uma carta para Isabel.

O Pedro II estava doente e foi para a Europa se tratar.

A filha mais velha dele, a princesa Isabel,

tinha assumido a regência.

E ela recebeu essa carta do comandante do exército, informando que...

O exército não vai mais caçar escravo fugido.

Nós não vamos participar disso.

Então, o que acontece nessa hora?

A monarquia perde o apoio das forças armadas

para continuar mantendo a escravidão.

Tinha uma corrente dentro do exército

que se recusava a cumprir o papel de capitão do mato.

Por achar uma função inglória.

Ao mesmo tempo, a igreja também,

vendo que a coisa está acirrada,

vários bispos começam a declarar apoio à abolição.

Daí, em Itapira, no interior de São Paulo,

um inglês e um americano que tinham lutado na Guerra Civil dos Estados Unidos,

os dois eram confederados, eram escravistas,

eles incitaram a população local, ali de Itapira,

a linchar um delegado de polícia que era abolicionista.

A elite social da cidade vai à casa dele e lincha o delegado.

Bateram nele até a morte.

Isso foi em fevereiro de 88.

Então, é também um evento de grande proposição

e que dá essa notícia, acho que sobretudo para Isabel,

que é quem está querendo herdar o trono,

de que não vai dar para segurar.

Não vai dar para segurar.

Sem o exército, sem a igreja e com os conflitos correndo,

o que está acontecendo?

Os abolicionistas estão se armando e os escravistas estão se armando,

em vésperas de guerra civil.

Vésperas de uma guerra civil.

O barão de Cotegipe pediu demissão

e a princesa Isabel nomeou outro conservador,

mas agora com a incumbência de abolir a escravidão.

Não tinha mais jeito.

Os deputados e senadores se reuniram em regime de urgência

para votar a lei da abolição.

Durante lá a semana de tramitação,

em que eles ficaram negociando qual seria o texto da lei,

Rebouças é que escreveu a lei.

Rebouças é o André Rebouças,

que era muito próximo da família imperial.

Então, ele foi lá nos ministros,

embora fossem inimigos anteriores dele,

foi na princesa com as ideias dele.

Põe uma linha aqui, tira uma linha ali.

Ele tinha um projeto que ele chamava de democracia rural,

porque era isso, era dividir a terra,

e tinha um projeto de concessão de direitos plenos para os ex-escravos.

O projeto dos abolicionistas era um projeto

que incluía uma reforma do funcionamento da vida social,

incorporação do proletário escravo à nação brasileira.

Converter, de fato, uma pessoa que tinha sido criada sob escravidão

num cidadão capaz de ler, escrever, trabalhar,

ter a sua própria terra, ter os seus próprios direitos.

A negociação continuou e o projeto, enfim, foi para votação.

E ainda teve deputado e senador que votou contra,

entre eles, o barão de Cotegipe.

Mas a maioria foi a favor

e a lei, enfim, foi aprovada.

Num domingo, num 13 de maio de 1888,

a princesa Isabel sancionou a Lei Áurea.

O texto dizia assim.

A princesa imperial regente, em nome de sua majestade o imperador,

o senhor Dom Pedro II, faz saber a todos os súditos do império

que há sido a lei áurea.

Faz saber a todos os súditos do império

que a Assembleia Geral decretou e ela sancionou a lei seguinte.

Artigo 1º.

É declarada extinta, desde a data desta lei, a escravidão no Brasil.

Artigo 2º.

Revogam-se as disposições em contrário.

E era só isso que dizia essa lei.

Umas 50 palavras.

Essa opção da coroa é uma opção que, de certa maneira,

salvou uma parte do escravismo.

Porque o que eles fizeram não foi aprovar o projeto do Rebouças,

nada, nada passou.

A única coisa que pôde ser consensuada

é que estava acabada a escravidão no Brasil.

Não se dizia como se ia implementar isso,

não se dizia o que ia acontecer com os ex-escravos,

não se dizia como seriam os contratos de trabalho daí por diante,

nada.

Você deveria ter tido uma série de, digamos, disposições transitórias

para dizer juridicamente o que acontece com cada...

Não houve nada.

O que a monarquia fez, no fim, foi deixar que cada proprietário no limite

gerisse a sua própria transição para o trabalho livre.

Por isso que os movimentos negros chamam o que aconteceu

de abolição inconclusa.

Porque os abolicionistas queriam muito mais.

Queriam o fim da escravidão, claro,

mas um fim que fosse acompanhado de projeto,

de medidas compensatórias.

Aliás, em muito lugar no Brasil, demorou a chegar a notícia da abolição.

Teve senhor que simplesmente impediu que os trabalhadores soubessem da novidade

e manteve, enquanto pôde, aquelas pessoas escravizadas,

mesmo de forma ilegal.

E a igualdade de direitos, como a gente vê nos jornais todos os dias,

até hoje não aconteceu no Brasil.

Então, nesse sentido, o projeto Rebouças, até hoje,

é um projeto que não se realizou.

Mas nem por isso a gente tem de menosprezar o 13 de maio.

Por mais que não tenha sido tudo o que poderia ter sido,

teve muita luta, muita luta negra,

muito sangue negro derramado para que esse momento finalmente acontecesse.

Para que o Brasil, enfim, se tornasse o último país do Ocidente

a tornar a escravidão ilegal.

Como a Angela Alonso já disse,

se não fosse pelo movimento abolicionista,

teria demorado ainda mais.

Pode não ter sido da forma completa, mas muita gente foi libertada.

Uma liberdade que, como está no samba da Mangueira de 2019,

não veio do céu e nem das mãos da Isabel.

A monarquia não abriu mão da defesa da escravidão

por bondade, por bom coração, por decisão política.

Ela abriu mão por total incapacidade, insuficiência de manter,

porque as duas instituições de fato estavam coladas.

No dia da votação da lei, o Cotegipe faz um discurso profético,

mas é uma profecia que qualquer um podia fazer naquele dia,

quer dizer, a monarquia está baseada na escravidão.

Então, caindo a escravidão, a monarquia vai cair junto também.

Ela não tem onde se apoiar.

Ela era baseada no apoio dos senhores de escravos,

dos grandes proprietários de terra.

Ela está abandonando os proprietários, ela vai também cair.

E foi isso que aconteceu.

Revoltados com a abolição,

os representantes dos escravistas no Congresso

começaram a defender indenização para as perdas financeiras

que eles tiveram com o fim do trabalho escravo.

Pouco mais de um ano depois da Lei Áurea,

os escravistas eram a base de apoio do golpe,

num 15 de novembro,

que derrubou o Império e instituiu a República.

E o projeto de exterminar a parcela negra da população tomou forma.

Um dos primeiros atos do novo governo provisório,

só quatro dias depois do golpe,

foi fazer um decreto mantendo a proibição de direito ao voto

para os analfabetos.

Isso tinha sido instituído nos anos finais do Império.

Só podia votar quem soubesse ler e escrever.

E menos de um terço da população brasileira sabia ler e escrever.

Agora, pensa.

Numa sociedade que, por mais de três séculos, dificultou

e, por vezes, chegou até a barrar o acesso de pessoas negras

ao ensino,

quem você acha que estava sendo alijado de novo

dos seus direitos políticos?

Essa proibição só foi cair, junto com a ditadura militar,

no período da abertura política, em 1985.

E no período republicano, a lógica era essa.

Já que não dava mais para escravizar as pessoas negras,

o foco era a eliminação.

Começaram a ser implementadas uma série de leis antinegros.

E a gente já falou sobre algumas delas nos outros episódios,

como as de perseguição às religiões de matriz africana, por exemplo.

Tinha um ditado, nessa época do começo da República, que dizia assim,

a liberdade é negra, mas a igualdade é branca.

Mas se tem uma coisa que, a essa altura, você já sabe,

e a gente falou bastante sobre isso,

é que as pessoas negras não aceitaram tudo isso de braços cruzados.

Eles queriam acabar com a gente,

mas a gente está aqui, mais da metade da população.

Desde que a primeira pessoa africana foi trazida para esse território indígena

tantos séculos atrás,

foi o nós por nós que garantiu a nossa sobrevivência,

das pessoas negras, dos nossos povos originários,

de todo mundo que não se encaixa no padrão dos detentores do poder,

no padrão do homem branco.

Foi o nós por nós que garantiu que a gente tivesse humanidade e liberdade.

E foi assim na saúde, na educação, em moradia,

no trabalho, na cultura, na luta pelos direitos humanos,

na luta por um país melhor para todos,

não só para as pessoas negras, para todos.

Se não fosse por nós, não teria saúde pública para todo mundo,

não teria filho do porteiro e da trabalhadora doméstica,

de todas as cores, de todas as raças, entrando na universidade.

As pessoas negras não construíram só toda a riqueza do Brasil,

elas construíram a própria democracia do Brasil,

ainda que não seja nem de longe o Brasil que a gente sonhou,

o Brasil que a gente merece.

O fato de que a vida negra vale menos quando não vale nada

vem se agravando ainda mais depois da própria abolição.

Aqui de novo, o João José de Moura,

aqui de novo, o João José Reis, historiador e professor.

Pense bem, antes da abolição, o escravo era propriedade,

então ele tinha um senhor que tinha interesse direto

em preservar essa propriedade.

Depois da abolição, não tem mais isso.

Então é uma população realmente que está entregue à sorte,

se pode dizer.

Por mais que se denuncie, é impressionante isso,

por mais que se esclareça,

por mais que os meios de comunicação hoje

estarem engajados num discurso de denúncia do racismo,

de promoção da inserção do negro na sociedade,

você tem lá o sargento da Marinha

que simplesmente vê o seu vizinho, que era negro,

chegando em casa e ele acha que ele era um bandido

porque ele tinha aberto a bolsa dele, a mochila dele,

para pegar uma chave.

Um sargento da Marinha matou o vizinho na porta de casa

na região metropolitana do Rio de Janeiro.

O atirador disse que confundiu a vítima,

um homem negro, com um bandido.

Ele atira três vezes, não é uma não, é três vezes.

É óbvio que se o cara fosse branco, ele não iria atirar, é óbvio.

Assim como se esse imigrante fosse branco,

fosse um português, um espanhol, um italiano,

ele não seria esplancado daquela maneira brutal

e os policiais municipais não iriam simplesmente dar as costas

ao que estava acontecendo.

Testemunhas do assassinato do jovem congolês Moise

na Praia da Barra da Tijuca, no Rio,

disseram que guardas municipais não fizeram nada para evitar o crime,

mesmo tendo sido chamados para intervir.

Quando eu vejo esses casos, eu penso nisso,

eu digo, caramba, isso é pior do que a época do escravismo.

Como a gente ouviu ao longo desses oito episódios,

se tem uma política pública constante, eficaz e longeva

na história do Brasil, é o racismo.

Uma política de Estado que ainda está em vigor.

Embora este seja o último episódio do podcast do Projeto Quirino,

não é nem de longe o último capítulo desse projeto,

que está só começando.

O Quirino foi pensado como um projeto multiplataforma

para refletir sobre a história do Brasil,

como tudo isso explica o Brasil atual,

mas também o futuro.

Que país nós queremos ser,

podemos ser,

devemos ser,

que país nós merecemos ter.

E o podcast foi o ponto de partida para tudo mais

o que o projeto vai se tornar.

Por isso, fique ligado em projetoquirino.com.br

para continuar acompanhando essa jornada.

A gente começou o podcast lá no primeiro episódio

com uma frase do fotógrafo e ativista Januário Garcia.

Existe uma história do negro sem o Brasil.

O que não existe é uma história do Brasil sem o negro.

E eu quero terminar com o mote da campanha

da Coalizão Negra por Direitos,

o grupo que reúne organizações, entidades e coletivos

dos movimentos negros brasileiros.

A frase é...

Enquanto houver racismo,

não haverá democracia.

E já passou da hora do Brasil ser de fato uma democracia.

O Projeto Quirino é apoiado pelo Instituto Ibiraputanga.

O podcast foi produzido pela Rádio Novelo,

o nosso site projetoquirino.com.br

reúne todas as informações sobre o projeto e conteúdo adicional.

O site foi desenvolvido pela AIE.

Eu te convido a conferir também todo o material do Projeto Quirino

que está sendo publicado pela revista Piauí,

nas bancas e no site da revista.

Este episódio teve pesquisa de Gilberto Porcidônio,

Rafael Domingos Oliveira e Angélica Paulo,

que também fez a produção.

A edição foi do Luca Mendes,

a sonorização da Júlia Matos

e a finalização da Pipoca Sound.

A checagem foi do Gilberto Porcidônio

e a música original do Vitor Rodrigues Dias.

Estratégia de promoção, distribuição e conteúdo digital,

Bia Ribeiro.

A identidade visual é do Draco Imagem.

Os transcritores das entrevistas foram Guilherme Póvoas e Rodolfo Viana.

A locução foi gravada no estúdio da Pipoca Sound

com trabalhos técnicos de Luiz Rodrigues.

Consultoria em roteiro de Mariana Jaspe,

Paula Escarpim e Flora Thompson Devoe,

com revisão de Natália Silva.

Consultoria em história, Inaê Lopes dos Santos.

Produção executiva, Guilherme Alpendre.

A execução financeira do projeto é do ISPIS,

Instituto Sincronicidade para Interação Social.

Idealização, reportagem, roteiro, apresentação e coordenação,

Tiago Rogero.

Este episódio usou áudios de TV Globo e SBT.

Agradecimentos a Maria Alice Rezende de Carvalho,

ao Rogério Nacano, ao Aldivan da Silva,

à Luana Carvas, à Maiara Moreira e ao Matheus Coutinho.

E a você que nos ouviu até aqui,

muito obrigado.