Samba de Verão (So Nice), O ARRANJO #19 (English Subtitles)
O ano era 1965, Marcos Valle tinha 22 anos e já tinha um disco lançado
Ele estava morando há quase um ano nos Estados Unidos, excursionando com o grupo do Sergio Mendes
Nesse período compôs diversas músicas e já estava sentindo falta de voltar a fazer um trabalho seu,
e não ser apenas crooner em um trabalho de outro artista
Mas Sergio Mendes estava pronto pra gravar o seu primeiro disco nos Estados Unidos, e contava com Marcos,
que não sabia como resolver esse dilema quando o destino o ajudou:
alguém bateu na porta do seu quarto de hotel, em Los Angeles
Quando abriu a porta, um americano de 3 metros de altura se identificou:
eu sou do FBI, você deveria ter embarcado ontem para o Vietnã
Como qualquer imigrante, Marcos tinha se alistado nas Forças Armadas norte-americanas,
e com a sua saúde de surfista foi logo escolhido para ir lutar contra os vietcongues
Nervoso, Marcos disse que se apresentaria logo, mas tratou de voltar para o Brasil na mesma noite!
Quando voltou pro Brasil, Marcos compôs Samba de Verão,
que é a segunda música brasileira mais gravada no mundo, atrás apenas de Garota de Ipanema
Eu sou Flávio Mendes, não sou parente do Sergio Mendes, esse é O ARRANJO, seja bem-vindo
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Samba de verão é uma parceria de Marcos com o seu irmão Paulo Sérgio Valle, 3 anos mais velho que Marcos
Marcos fez parte da segunda geração da Bossa Nova,
que começou a aparecer quando a maior parte dos fundadores do movimento estava fora do Brasil,
divulgando a Bossa pelo mundo
Nessa segunda geração se destacaram também Dori Caymmi, Edu Lobo,
Eumir Deodato, Francis Hime e Nelson Motta
Quando Marcos volta dos Estados Unidos grava o seu segundo disco,
O Compositor e o Cantor, pela gravadora Odeon
É o disco que consolida a sua carreira de cantor e compositor,
todo o disco é de canções suas com seu irmão Paulo Sérgio,
e com a parceria também do seu primo Pingarilho em duas músicas
Fazem parte desse disco clássicos do repertório de Marcos Valle como Gente, Seu Encanto
e Preciso Aprender a ser só, que ganhou o prêmio de Melhor música do ano de 1965
Nesse disco ele grava pela primeira vez Samba de Verão e, com arranjo de Eumir Deodato, é essa gravação que eu vou analisar
UM POUCO DE HISTÓRIA
A avó de Marcos Valle era professora de piano clássico, a mãe era pianista,
e muito cedo Marcos já estava estudando em um conservatório de música
Mas o primeiro instrumento de Marcos Valle não foi o piano: foi um conjunto de garrafas de vidro,
cada uma com uma quantidade diferente de água para emitir notas musicais quando tocadas por baquetas
Ele ainda tinha 5 anos e já fazia sucesso no conservatório
A mãe de Marcos queria que ele fosse um concertista de música clássica, mas a professora de piano deu o veredicto:
ele não tem vocação para a música erudita, ele gosta de criar, e não de seguir as partituras
Com 12 anos vai para o instrumento da moda na época, o acordeom e começa a ter mais contato com a música popular
"Aí quando eu estou numa festa na casa do meu avô, ele morava na Tijuca,
e ele chama um conjunto, se falava assim, um conjunto pra animar a festa.,
E o conjunto, rapaz, era o Chiquinho do Acordeom
Quando eu vi aquele conjunto, aí eu sentei,
na casa do meu avô, eu não saí mais do meu lugar, eu não participei mais da festa,
porque eu fiquei parado no acordeom do Chiquinho do Acordeom
E ele viu, depois veio falar comigo, chamou a minha mãe
Ele falou, 'olha, ele tá fascinado'
Eu digo, isso é maravilhoso, eu quero tocar isso, quero tocar esse acordeom
Eu só tive que pegar mesmo a mão esquerda, a parte dos botões, digitalmente
Aí eu comecei a inventar as minhas músicas,
então o acordeom nesse momento foi vital pra eu poder partir pra música popular"
Assim como muitos contemporâneos dele, como Gilberto Gil e Edu Lobo,
trocou o acordeom pelo violão assim que surgiu a Bossa Nova
Edu Lobo e Marcos Valle tinham sido colegas de colégio
e se reencontraram casualmente num ônibus quando ambos tinham 18 anos
Edu carregava um violão, e a conversa dos dois foi logo para a música, os dois já estavam compondo,
e Edu disse que gostaria de apresentar um amigo para o Marcos: Dori Caymmi
Os três formaram um trio chamado de Filhos de Pais famosos:
Dori, filho de Dorival Caymmi, ok, Edu, filho do compositor e jornalista Fernando Lobo, ok também,
mas o pai do Marcos era advogado, não era famoso...
"O principal foi que, através deles, pelo fato dos dos pais serem celebridades,
eu comecei a entrar nas rodas, e na segunda roda, logo na casa de Vinícius de Moraes,
a primeira foi na casa de Ary Barroso pouco antes dele falecer
A segunda, na casa do Vinícius, eu tive a coragem, eu era muito tímido,
mas tive a coragem de pegar o violão e tocar as minhas músicas no fim da noite"
Começa a ter as suas primeiras canções gravadas, por Johnny Alf, Tamba Trio e o grupo vocal Os Cariocas
Com uma ajuda de Roberto Menescal,
consegue uma chance de mostrar as suas músicas para o diretor musical da gravadora Odeon, Milton Miranda,
que estava selecionando músicas para o novo disco de Wilson Simonal
"Eu nunca me esqueço que eu cheguei lá naquela sala do Milton Miranda. Tava o Milton, o Simonal,
Simonal numa mesa, com aquela cara dele, fala aí, garoto,
e tava o outro cara que era o Ribamar.
E aí o Milton Miranda, simpaticíssimo, então toca as suas músicas!
Ok, aí eu comecei a tocar, uma por uma, e quando chegou no final, na quinta ou não sei,
o Milton virou e disse assim: Ih, rapaz, ninguém vai gravar as suas músicas aqui não.
Eu falei, tá vendo, não devia ter vindo, ele falou, porque você é quem vai!"
Nesse primeiro disco só metade do repertório era autoral, o resto era de outros compositores, como Tom Jobim
Marcos ainda não tinha conhecido o seu ídolo Tom, mas sugeriu que ele, Tom, fizesse os arranjos para o seu disco
Milton Miranda levou o jovem artista na casa de Tom que pediu para o Marcos escrever as partituras das músicas
"Eu digo: eu nunca escrevi as minhas músicas
Mas você tem que escrever, se você estudou música clássica, se você lê as partituras, então Milton Miranda,
vc pode ir embora, que o Marcos vai ficar aqui, ele não vai sair daqui enquanto não escrever a primeira música
Olha só, Flávio, ele me leva lá pro quarto , que era o quarto do Paulinho,
me traz partitura, lápis, borracha, não sei o quê, pode escrever, de vez em quando eu venho aqui.
Aí eu começo, me lembrando das partituras que eu lia
De vez em quando ele vinha, deixa eu ver: isso aqui tá certo, isso aqui não... segue!
Cara, eu fiquei lá, não lembro quanto tempo, e saí de lá com a minha música escrita"
Por questões de agenda do Tom quem fez os arranjos desse disco foi o jovem Eumir Deodato,
da mesma idade de Marcos Valle
Quando Marcos volta dos Estados Unidos, escapando de ser mandado para o Vietnã,
encontra Menescal com o violão na praia do arpoador e diz: quero te mostrar uma música
Era uma música bem no estilo é sol, é sal, é sul, das parcerias de Menescal com Ronaldo Bôscoli,
era o Samba de Verão
"Aí quando eu olhei assim, eu indo pro Arpoador, o Marcos correndo com a prancha dele,
seco pra chegar lá nas pedras, eu falei: Ô Marcão!
Ele falou, ô cara! Aí ele viu o violão e falou: deixa eu te mostrar, fiz um sambinha aí, vou te mostrar
Cara, e entrou no carro e mostrou, cara, eu fiquei tão impressionado com a música!
Pô Marcos, sambinha que você fez..."
Menescal falou: Marcos, essa sua música vai ser um estouro, vai fazer sucesso,
o que deixou Marcos espantado, ele não tinha feito muito esforço pra fazer a música
O Menescal estava certo, essa música conseguiu uma façanha histórica, raríssima:
Em 1966 chegou a estar na parada de sucessos da revista norte-americana Billboard com três gravações diferentes
1. MELODIA Samba de Verão lembrava o estilo das músicas de Menescal e Bôscoli
mas já trazia novas influências, novidades rítmicas
Em O Barquinho, por exemplo, a melodia de Menescal é muito sincopada, ou seja,
cai normalmente nos tempos fracos do compasso, o que dá o balanço característico do samba
Já a melodia de Samba de Verão é basicamente no tempo forte, caindo na síncope só em alguns momentos chave.
E isso já é uma influência da música pop. Tempo forte
Esse ritmo da melodia, junto com a levada de samba Bossa Nova,
criava um irresistível balanço, um groove novo
Outro artista que fez mais ou menos isso na mesma época foi Jorge Ben, depois conhecido como Jorge Benjor,
outro que juntou melodias com sabor mais pop à levada do samba, criando uma outra escola
Não por acaso Marcos Valle e Jorge Benjor são cultuados mundo afora por fãs que adoram o groove das suas músicas
"Lógico que depois as gravações você poderia sincopar, como o próprio Caetano fez, ou eu mesmo, você pode: (canta)
Mas não foi feita assim, ela foi feita (canta)
Essa adiantada já dá a ombrada!
Então não precisava (canta), aí já seria demais, né?"
2. ORQUESTRAÇÃO Marcos Valle tinha assinado com a gravadora Odeon por 5 anos e só tinha feito o primeiro disco
Quando ele volta dos Estados Unidos cheio de músicas inéditas ele procura de novo o arranjador Eumir Deodato
pra trabalharem juntos no segundo disco
"Vamos fazer esse disco juntos, ele falou, agora é mais pra fora,
porque o primeiro era bossa, o segundo era bossa, tem o Samba de Verão,
mas a gente já vem com uma certa linguagem que era samba jazz, nas minhas músicas tá rolando,
e o Eumir vem com os arranjos mais por aí, tem os metais fortes, né?
A gente, pode trabalhar com aquela sonoridade nova,
que já traz outras características das minhas músicas"
Uma das novas sonoridades diferentes do disco era a presença das congas,
um instrumento muito ligado à música latina, mas ainda pouco usado na música brasileira,
e ignorado na sonoridade Bossa Nova
Essa utilização da conga nessa gravação eu acho impressionante, porque aí já vem outro molho,
tem outro molho ali
"O Eumir também tinha Os Catedráticos,
e nos Catedráticos ele usa muito a coisa da conga, que era o Ruben Bassini
Porque isso vem do Ed Lincoln, que tinha aquela coisa do samba,
mas ele tinha - eu achava aquilo, cara!
E nesse meu disco a gente usa, porque eu digo, cara, eu adoro esse negócio, e ra o meu lado groove que já...
Um instrumento muito marcante nessa gravação de Samba de Verão é o órgão
É o Eumir que tá no órgão?
"É o Eumir, o Eumir tinha essa coisa do órgão percussivo maravilhoso, fora o piano dele,
e que ele mais uma vez usou muito isso com os Catedráticos, é o groove (canta),
Essa coisa que os organistas brasileiros tinham, esse incrível balanço, como é o caso do Walter Wanderley,
que estourou o Samba de Verão nos Estados Unidos, o citado Ed Lincoln e outros, e o Eumir também tinha"
3. A FORMA DO ARRANJO Samba de verão tem uma forma muito simples, ABAC, todas as partes com 8 compassos
A parte C é na verdade uma variação da parte B, só com o final diferente, pra fechar a música
Nessa gravação a música acontece inteira duas vezes
O arranjador Eumir Deodato escreveu um intermezzo instrumental também de 8 compassos
Não tem introdução, é direto na música, que começa com o acompanhamento apenas do violão do Marcos e da bateria
com escovinha numa levada clássica de Bossa Nova, as escovinhas nas duas mãos, sem usar o prato de contratempo -
praticamente como as gravações clássicas de João Gilberto!
A levada do violão de Marcos é muito suingada, é Bossa Nova, sem ser cópia do violão de João Gilberto
Agora a entrada sensacional e inesperada do baixo, ele não entra no começo do compasso,
entra fazendo uma resposta, num naipe nada comum com o órgão
Aparece a conga, o novo molho, e a bateria muda a levada,
sai da batida tradicional da bossa para uma levada mais marcada
O órgão fazendo uma resposta, como na parte B
Dois compassos só de conga antes do intermezzo
Um naipe de órgão e trompete faz a melodia com respostas no baixo, bem suingadas
Uma sequência de acordes descendentes, de tom em tom
Um breque, uma frase de trompete e uma virada de bateria na caixa, bem simples, pop
Volta o A como um instrumental, a melodia no uníssono de trompete e órgão, com o órgão fazendo a cama harmônica
A bateria agora está tocando no prato aberto, como no samba jazz
De novo a resposta do órgão na parte B
Depois que a bateria vai pro prato aberto ela não volta mais
De novo a resposta no órgão
No fim da música entra um efeito bem diferente na voz, quase um reverb de igreja, longo
Bom, esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal,
e pense na possibilidade de ser um apoiador do programa,
a partir de 10 reais, em apoia.se/oarranjo
Muito obrigado, até uma próxima
Quem foi criança no Brasil nos anos 70, como eu fui,
com certeza conheceu Marcos Valle através da trilha sonora desse programa de TV,
Vila Sésamo, a trilha foi toda composta e interpretada por ele