Ser mulher negra em Lisboa | Carla Fernandes | TEDxLisboa (1)
Tradutor: Gislene Kucker Arantes Revisor: Leonardo Silva
Quando falamos, falamos de um lugar,
de um lugar de manifestação,
de um contexto.
Pois bem, o meu nome é Carla Fernandes,
e eu sou uma mulher negra.
O que é que isso quer dizer?
Eu sou uma mulher que foi violada na frente do seu marido
e que foi obrigada a amamentar o filho do seu agressor,
porque a sua mulher não tinha leite para lhe dar.
Eu sou uma mulher que foi forçada a entregar o seu filho
para trabalhar em casa desse mesmo agressor.
Eu sou uma mulher negra.
Muitos de vocês podem dizer:
"Sim, mas essas histórias vêm lá de trás são da altura da escravatura".
O que digo a vocês é que os estereótipos se alimentam dessas narrativas antigas
que dizemos que estão cristalizadas lá no passado,
mas que vão tendo novos elementos, vão se atualizando
e vão resultar em estereótipos,
que fazem com que privemos as outras pessoas da sua humanidade.
Despertei para estas questões do racismo muito cedo, na infância na realidade.
Na escola primária.
Na escola primária, tínhamos um hábito fantástico,
que era no final de cada período, tínhamos uma festinha.
Nessas festinhas, os rapazes cantavam quase sempre
uma música dos Xutos e Pontapés que era aquela:
"Que saudades que eu já tinha da minha alegre casinha, la-la-la."
Cantavam essa música e depois dela,
eles tinham um hábito que era menos simpático.
Eles elegiam a menina mais feia da turma.
Todos os anos, era quase sempre a mesma.
Então um rapaz dizia:
"Quem é a garota mais feia da turma?"
E os outros, em coro: "É a Ana Teresa!"
A Ana Teresa era uma garota grandona, robusta
e, quando eles diziam isso, ela se punha a correr atrás deles
e aquilo mais parecia um filme do Charlie Chaplin,
porque os rapazes se metiam debaixo da mesa, fugiam,
aquilo era superengraçado, para todos,
menos para a Ana Teresa, é óbvio.
Houve um ano em que a Ana Teresa não foi à aula.
Não foi à aula e eles cantaram novamente a música dos Xutos e Pontapés
e elegeram igualmente a menina mais feia da turma.
"Quem é a garota mais feia da turma?"
"É a Carla!"
Eu congelei.
Fiquei presa dentro dos meus pensamentos.
E comecei a olhar para os lados, claro que foi tudo muito rápido.
Comecei a olhar para os lados e a dizer:
"Mas a Isabel é mais feia do que eu."
"A Sofia... OK, a Sofia não é mais feia do que eu,
mas também não é mais bonita do que eu."
"A Sara... OK, a Sara é mais bonita do que eu."
E fiquei pensando: "Mas por que sou a garota mais feia da turma?"
E um dos rapazes disse:
"É a Carla, porque ela é preta!"
Eu me senti desaperecer.
A Carla que eu conhecia desapareceu e a "feia" me substituiu,
a partir do momento em que o meu colega disse:
"É a Carla."
Ainda no universo do que é a infância,
mas nessa altura eu já era professora,
eu dava aulas de inglês numa escola primária na margem sul.
Vinte alunos, entre os seis e os oito anos.
Sempre quis dar aulas.
Adoro crianças e achava que ia ser o máximo,
mas saía das aulas sempre com tendências suicidas,
porque 20 crianças, dos seis aos oito, não é engraçado nem é fácil, mas pronto.
Mas, no final das aulas,
vinha sempre uma ou outra criança com um desenho, com um carinho
e eu ficava toda derretida e eu:
"Amanhã vamos dar aula" e ela ficava toda contente.
Mas eles nem sempre vinham com desenhos e carinhos.
Houve um dia em que um dos meus alunos veio para mim e diz:
"Teacher...", que era assim que eles me chamavam...
"Teacher, a minha mãe disse que os pretos são ladrões e bandidos".
Olhei para ele e pensei:
"O que é que estão fazendo com esta criança?"
Eu me virei para ele e disse: "É assim. Eu sou preta",
e utilizei o termo "preta", o termo dele,
porque acho que ele já estava suficientemente embaralhado
para explicar ainda:
"Negro é o que você devia utilizar e preto é o que se utiliza para ofender",
mas utilizei o termo dele.
Eu disse: "Eu sou preta, e não roubo e também não sou bandida."
E o menino se vira: "Mas a minha mãe disse!"
E aqui está a questão do dizer novamente.
Quando eu era menina, na escola, os meus colegas disseram:
"A Carla é a garota mais feia da turma."
Disseram e passei a ser, apesar de antes não me considerar.
Aqui, novamente, esta criança diz que os negros,
é difícil para mim dizer, que os negros são ladrões e bandidos,
e para ele era uma verdade,
porque foi dito, ainda mais por uma autoridade que era a mãe dele.
Quero que fiquemos com esta questão do dizer
porque eu vou retomá-la mais tarde.
Esses episódios foram fazendo com que eu me afastasse da realidade
que seria Portugal,
que era uma realidade que eu não abraçava,
que era uma realidade em que eu não me via
pelo que eu achava que era.
Fui me afastando e fui tentando procurar o meu lugar em outros espaços.
Com a África, por exemplo.
Quis me aproximar da África, que era a escolha mais lógica.
Quis me aproximar da África, através de livros, através da música,
de amigos, de locais que eu queria frequentar também.
Não funcionou muito bem.
Procurei a minha mãe: "Me conte, como viemos da Angola?
O que aconteceu, como é que é?"
A minha mãe começou a contar histórias de como atravessamos rios em canoas,
começou a falar como o meu pai negociou em estradas bloqueadas, com militares.
Era a minha história.
Só que me parecia uma história do Indiana Jones.
Parecia muito ficcional, estava muito distante,
não consegui me aproximar dessa história vinda da minha mãe.
Já em idade adulta também, eu fui trabalhar,
estive em Angola, sou angolana.
Cheguei a Angola e pensei:
"Vamos para Angola, vou para o meu país,
vou abraçar o país, o país vai me abraçar e vai ser um grande reencontro."
Não aconteceu!
Mais uma vez fui lançada para uma realidade que não era a minha.
Pensei: "Tenho que procurar o meu espaço".
"Eu vou procurar o meu espaço no local onde fiz a minha socialização,
onde eu cresci, Portugal/Europa".
Em 2014, eu criei um projeto
que é o "audioblog" Rádio AfroLis.
É um audioblog em que tento estabelecer uma ligação
com pessoas como eu,
afrodescendentes que vivem aqui em Lisboa.
Dei o nome Afro... Lis.
É uma junção.
O que fazemos aqui?
Conversamos com outras pessoas que vivem aqui,
afrodescendentes que vivem em Lisboa,
para termos conversas de pares para pares,
para criar hábitos de pronunciação.
Por isso é que falei da questão de nós tentarmos reter o "dizer".
Aqui, neste espaço, na AfroLis, nós dizemos,
nós falamos sobre a nossa realidade.
Quando você fala sobre a sua realidade, de início,
você já está agindo sobre a mesma,
já está fazendo com que ela mude, com que ela se altere.
É óbvio que nós, como afrodescendentes vivendo em Lisboa,
nós não nos vamos associar ao "feio",
nós não nos vamos associar ao "bandido",
nós não nos vamos associar ao "ladrão".
Nós estamos tentando criar uma identidade própria.
(Vídeo)
(Mulher) Afrolisboeta.
Serão, provavelmente, os que habitam Lisboa,
como se ela fosse a sua terra mãe.
(Homem) Alguém que tem África dentro de si e vive nesse espaço.
(Rapaz) É uma pessoa que veio da África, África de língua portuguesa ou não,
mas que veio da África, e que passou a gostar tanto disto
que se deixou ficar aqui, vai de férias quando pode, quando consegue,
mas é aqui que passa a viver, que é o meu caso.
(Mulher) Acho que o afrolisboeta é aquele que tem um certo "swing" no pé
porque gosta de dançar, porque é afro,
mas também é lisboeta porque tem uma manha de europeu
e tem manias de europeu,
tem luxos de europeu.
(Homem) Afrolisboeta... eu diria especial, por exemplo.
Diria especial, afrolisboeta é um conjunto de coisas, de riquezas.
Às vezes fico triste, porque não há um aproveitamento,
não há um aproveitamento propriamente dito,
uma espécie que ainda vai dar o que fazer, vai dar o que falar.
E é a partir deste lugar de manifestação
que tentamos retratar a nossa realidade aqui em Lisboa,
através deste audioblog.
E o que acontece?
Queremos mudar o que está acontecendo.
Queremos mudar a narrativa porque é uma forma também
que eu acredito que podemos combater o racismo.
O racismo, que é esse sistema de opressão.
Nós temos que ter oportunidades para nos pronunciar, para dizer,
mas para dizermos, também temos que criar condições para sermos ouvidos.
Temos que ser ouvidos também.
Quando nós dizemos e ouvimos,
nós estamos assumindo uma posição.
A partir dessa posição, nós podemos agir,
no contexto do que é o combate ao racismo, neste caso.
É uma coisa que não é assim tão fácil de coordenar.
Uma vez, fui ao hospital, com a cabeça aberta,
tive que levar sete pontos de um lado e quatro pontos do outro.
A médica de serviço veio e começou a me costurar,
eu me virei para essa senhora e disse:
"Olha, está doendo".
E ela: "Mas está doendo ou está fingindo?"
E eu disse: "Está doendo mesmo!"
E ela: "Não pode estar doendo, porque já dei uma ampola e meia de anestesia".
E eu: "Mas está doendo".
E ela continuou a costurar.
De repente, ela se vira para mim e diz assim:
"Pronto, já não dói, já lhe dei mais anestesia".
Ela decidiu.
Agora, voltamos aos quatro passos que nós temos:
dizer, ouvir, nos posicionarmos e também agir.
A médica realmente agiu,
mas ela não se posicionou.
Acho que é algo que acontece muitas vezes com o racismo.
Há muitas pessoas que querem combater o racismo,
mas não falam sobre o racismo.
Agem, muitas vezes, mas não falam sobre o racismo.
Há muitas etapas que nós, provavelmente, saltamos
e achamos que estamos contribuindo para esse combate,
mas temos que tentar coordenar esses três passos.
Não é fácil, mas eu acho que vale a pena tentar.
Eu queria agora terminar a minha palestra
porque sei que não é fácil tentarmos agir
e não é fácil visualizar qual é o problema.
Eu comecei esta minha palestra dizendo:
"Eu sou uma mulher negra."
"Eu sou uma mulher que foi violada na frente do seu marido
e que amamentou o filho do seu agressor, e ainda deu o seu próprio filho
para o trabalho forçado na casa desse mesmo agressor".
Eu não quero continuar a repetir esta história.
Eu não quero continuar a falar deste lugar de manifestação.
Eu quero mudar essa história, não quero continuar a ser a vítima.
Eu não quero que o meu marido continue a ser o...
como é que se chama a pessoa que não faz nada,
que não consegue fazer nada?
... o impotente.
Não quero que a outra mulher, a mulher branca, neste caso,
seja a pessoa que está passiva.
Eu não quero que o homem branco continue a ser o meu agressor.
Quero mudar essa história, mas não vou conseguir mudá-la sozinha.
E vou precisar da ajuda de vocês.
Eu vou pedir a todos os homens brancos que se levantem,
por favor,
e digam a frase que vou dizer, depois de mim, está bem?
"Eu sou um homem branco".
(Homens) Eu sou um homem branco.
Obrigada. Podem sentar.
Vou pedir também a todas as mulheres brancas que se levantem
por favor,
e que digam a frase depois de mim:
"Eu sou uma mulher branca".
(Mulheres) Eu sou uma mulher branca.
Obrigada.
Peço a todos os homens negros que se levantem
e que digam, depois de mim:
"Eu sou um homem negro".
(Homem) Eu sou um homem negro.
Obrigada.
Peço a todas as mulheres negras que se levantem
e digam, depois de mim: