Fala Gringo EP 6 | Irmã Dulce, a santa dos pobres do Brasil
Viva, o Brasil agora tem uma santa e ela tem sotaque baiano. Indicada ao Nobel da Paz, conhecida por invadir prédios públicos para abrigar doentes e com dois milagres reconhecidos pela igreja católica, Irmã Dulce agora é Santa Dulce dos Pobres, após a cerimônia de canonização conduzida pelo Papa Francisco semana passada no Vaticano.
Independente da sua religião – ou a falta de uma, vale a pena conhecer a história dessa freira brasileira que além de ajudar os pobres, adorava futebol e fazer piada.
Aproveitando o tema, eu também trouxe um bocado de expressões relacionadas à fé e religiosidade, muito comuns no português falado no dia a dia. Eu sou o Leni e esse é o sexto episódio do Fala, Gringo. O podcast que é sagrado para quem está aprendendo o português.
Se você é novo por aqui, seja bem-vindo(a) à comunidade de ouvintes Fala, Gringo. Esse podcast foi criado para estudantes do português brasileiro de nível intermediário, porque eu sei que quando a gente chega nesse nível de aprendizado de uma língua é sempre difícil de encontrar um material que está no meio-termo: nem tão fácil, nem tão difícil de compreender. Você pode saber mais sobre o projeto ouvindo o primeiro episódio.
Para acompanhar o podcast com uma transcrição completa e gratuita do texto, de tudo que eu tô falando aqui, é só acessar o link que está na descrição deste episódio aí no aplicativo que você está usando. Ou você pode acessar o meu perfil no instagram @portugues.com.leni. Lá você também encontra dicas de gramática, expressões, dicas de músicas brasileiras e cultura, enfim, tudo que acredito que pode contribuir com o seu aprendizado.
Agora se você não é novo aqui, fico mais feliz ainda em ter você de volta. Significa que está gostando do conteúdo. Se os episódios estão ajudando você de alguma forma, peço que você deixe uma avaliação no iTunes para ajudar o Fala Gringo também a se destacar entre os podcasts de aprendizado de idiomas. Uma coisa que eu descobri essa semana é que o iTunes só mostra recomendações de ouvintes do seu país. Era por isso que até então eu não tinha visto nenhuma avaliação dos ouvintes. Só depois que acessei o podcast por um site externo foi que pude ler as avaliações de vocês. Por isso é importante deixar o seu comentário onde quer você esteja para ele aparecer para os outros usuários do seu país também. Recado dado. Agora, vamos começar.
Pra começar com informação sobre a igreja católica no Brasil, é importante você saber que o Brasil ainda é a maior nação católica do mundo, com 123 milhões de fiéis. Mas se mantivermos a tendência atual em, no máximo, 30 anos, católicos e evangélicos poderão estar empatados em tamanho na população. Principalmente nas periferias, as igrejas pentecostais se aproveitaram da ausência do estado e também da igreja católica para atuar como guias espirituais, além de oferecer assistência social. É por isso que elas cresceram tanto no Brasil. Eu falei sobre isso no [episódio 4 | Música, criminalidade e religião nas periferias do Brasil. ](https://falagringopodcast.com/2019/09/15/ep4/) Se você não ouviu ainda, fica a dica.
Falando sobre religião, fé, eu lembrei um dia em que recebi um viajante de Paris, na minha casa, pelo aplicativo couchsurfing, e ele me perguntou: Leni, por que tantas pessoas estão usando uma camisa com uma cruz e a palavra fé no Brasil? Até ele falar isso, eu não tinha observado essa estampa ainda. Mas depois comecei a vê-la por todos os lados. Sempre tinha alguém passando com a tal camisa e a palavra fé. Foi aí que caiu a ficha que sim, os brasileiros realmente gostam de expressar a sua fé muito além de uma estátua ou escultura dentro de casa. Às vezes numa camiseta, num crucifixo no pescoço, num adesivo no carro.
Cair a ficha é uma expressão que usamos para falar que percebemos algo, que nos demos conta de algo, finalmente. Então caiu a ficha que os brasileiros gostam de expressar a sua fé.
Essa expressão da própria fé é uma coisa que se reflete inclusive na linguagem, claro. Aqui no Brasil nós usamos muitas expressões com a palavra “Deus”. Muitas vezes, até mesmo sem o sentido religioso e literal da expressão, mais pelo hábito. Convivendo com brasileiros você pode ouvir muito a expressão “Se Deus quiser” para falar de uma possibilidade. Se Deus quiser, ano que vem viajo para a Europa; se Deus quiser eu vou comprar o meu carro daqui a três anos. Numa conversa entre duas pessoas: não se preocupe, vai dar tudo certo. Aí a outra responde: vai sim, se Deus quiser. Outra expressão parecida é “Graças a Deus”, né? É uma construção mais frequente em outras línguas também.
Quando um Brasileiro teme, ou seja, tem medo que algo ruim aconteça, ele pode dizer Deus me livre, deu o/a livre, variando com o gênero. Deus me livre de voltar a trabalhar naquela empresa. Pra fazer um pedido, até mesmo de forma exagerada, você pode usar, pelo amor de Deus. Pelo amor de Deus, dá pra fazer um pouquinho de silêncio que eu tô ouvindo o podcast Fala Gringo? Eu não sei na sua família, mas na minha todo mundo é bilíngue: fala português e gritando. A família de quase todo brasileiro, na verdade.
Mas sabe quem não falava gritando, pelo contrário, falava de uma forma bem calminha, a Irmã Dulce. Vamos conhecer um pouquinho a história dela?
Pra ser sincero, até começar a ver as notícias da canonização da Irmã Dulce, eu não sabia muita coisa sobre a história da freira. E olha que eu venho de uma família muito católica, apesar de no momento não estar ligado a nenhuma religião. Canonização é quando o Vaticano lança um novo santo ou uma nova santa. A definição dos dicionários refere-se ao ato solene de o papa declarar aquele indivíduo morto inscrito no catálogo de santos.
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Maria Rita de Souza Brito Lopes Pontes (Eita nome! ), a irmã Dulce, nasceu em Salvador, Bahia, no ano de 1914. Ela começou a sua jornada na caridade ainda muito jovem, aos 12 anos, quando uma tia a levou para conhecer a Favela dos Alagados, em Salvador. Quando chegou lá na favela e encontrou tanta miséria, a jovem Dulce decidiu alimentar os pobres e ajudar os enfermos na porta de casa.
Enfermo é aquele que se encontra doente, com uma enfermidade. Outras palavras que usamos em português é enfermeira e enfermeiro, enfermagem.
A importância histórica, social e política da freira está muito ligada ao contexto da época. É o que conta Graciliano Rocha, o Jornalista e autor da biografia da Irmã Dulce. Segundo ele, na mesma época em que Dulce vivia, Salvador passava por um grande crescimento populacional. Só pra você ter uma ideia, quando ela nasceu, a cidade tinha 280 mil habitantes. Um ano antes da morte de Irmã Dulce, a população era de mais de 2 milhões de pessoas. Cara, sete vezes mais pessoas vivendo numa cidade.
O estado da Bahia também se industrializou muito tarde e a população cresceu em meio a uma paralisia economia, ou seja, a economia parada. E isso se refletiu no aumento do número de miseráveis pelas ruas. Gente que vivia ao Deus dará. Ao Deus dará é uma expressão que usamos para falar de algo que está abandonado, sem rumo ou sem cuidado. Como a educação pública no Brasil, infelizmente está um pouco ao deus dará.
Os anos foram passando, a Irmã Dulce fiel à sua missão tinha cada vez mais trabalho, o que ajudou a se popularizar e tornar-se influente, não só ali nas obras sociais, na caridade; mas também no cenário político e econômico do estado da Bahia. Essa articulação com políticos e grandes empresários foi um marco no trabalho da freira, quer dizer, algo que marcou o seu trabalho.
Há quem diga que ao ouvir Dulce com aquela voz suave e a serenidade que acalmava o coração típico de uma freira, era impossível negar os seus pedidos. Mas não se engane pensando que tudo foi tão fácil. Dulce estava sempre em conflito com a prefeitura da cidade de Salvador, porque ela vivia invadindo os prédios públicos para abrigar os doentes. Essa história ela mesma quem conta:
Eu me lembrei que tinha um mercado velho. Aí arrombei o mercado, botei quarenta doentes lá dentro. Aí i prefeito mandou me chamar. “Mas, Irmã Dulce, o que a senhora está fazendo? A senhora arrombou o mercado da prefeitura”. Eu disse: Doutor eu não tenho onde botar os doentes. Você me arranja um lugar, eu saio de lá. Não arrombo mais as casas da prefeitura”. Ele disse: “Mas não pode”. Aí eu fui para a ladeira do Bonfim, debaixo da ladeira da igreja do Bonfim tinha umas arcadas. E nessas arcadas era aberto, era bem fundo, dava para botar gente. Eu botei. O prefeito mandou me chamar. Mas Irmã, ali é lugar de turismo, ali não pode botar. procure um lugar…
Depois de dez anos atendendo doentes nas ruas e ocupando propriedades públicas, Dulce deu um grande passo na história. Havia um galinheiro ao lado do convento em que vivia. Isso mesmo. Um galinheiro, lugar onde se criam galinhas. Ela tirou as galinhas que viviam ali e instalou camas improvisadas para abrigar setenta doentes. Foi assim, com muita força de vontade e ajudinha de políticos, entre eles o fundador da Odebrecht, que surgiram as Obras Sociais Irmã Dulce, que hoje contam com um complexo hospitalar e um orfanato, e que beneficiam a mais de três milhões de pessoas por ano.
Antes que você pense: Ih, envolvida com políticos e empresários… Será que Irmã Dulce não era apenas mais uma Santa do Pau Oco.
Santa do Pau oco. Está aí uma expressão usada de norte a sul do Brasil. Sempre que alguém desconfia do caráter de alguém, dizemos: essa pessoa tem uma cara de santa do pau oco. Melhor que a expressão é a origem dela. Acredita-se que é do tempo da colonização portuguesa no Brasil.
Você sabe que em 1500, os portugueses chegaram aqui se achando os donos de tudo. Depois de levar madeiras, plantas, animais, escravizar os índios, eles finalmente descobriram o ouro nas terras brasileiras e, àquela época, século XVIII, cobravam impostos muito altos sobre todo o ouro produzido no Brasil. Era quase 20% de tudo que era produzido. Esse imposto ficou conhecido como o quinto. Vinte por cento, um quinto.
Para driblar essas cobranças, quer dizer, para se livrarem das cobranças, criou-se uma espécie de contrabando muito comum entre governadores, escravos e autoridades religiosas. Eles usavam santos esculpidos em madeira, com a parte interna oca, quer dizer “vazia”, para esconder ouro em pó e outras pedras preciosas; e com isso, se livrarem desses pagamentos abusivos.
Então santo do pau oco era aquele que, na ausência de ouro no interior da escultura, não tinha muito valor.
Mas voltando para a pergunta, será que a Irmã Dulce não foi só mais uma santa do pau oco? Bom, não é o que conta o autor da biografia. Na sua pesquisa e mais de cem entrevistas com pessoas que conviveram com a Irmã Dulce, realizadas ao longo de oito anos, Rocha não encontrou nenhum relato de alguma autoridade que teve coragem de dizer não para Irmã Dulce. Menos ainda, alguma ocasião em que ela tenha pedido um favor pessoal para si ou para alguém da sua família.
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No imaginário católico, Irmã Dulce aparece muitas vezes ao lado da Madre Teresa de Calcutá, porque as duas estiveram ligadas aos mais pobres. Madre Teresa nas favelas de Calcutá, Irmã Dulce em Salvador. Um ponto que difere do trabalho das freiras, é que ao que parece, a Madre Teresa estava mais preocupada com a salvação espiritual das pessoas, por exemplo, o seu grupo optava por não ministrar analgésicos fortes para controlar as dores dos pacientes que estavam em situação terminal. Inclusive é uma crítica de algumas organizações médicas. Já para a Irmã Dulce, o importante mesmo era o diagnóstico e o tratamento recomendado pelos médicos. Seu foco era mais a saúde e menos o espírito.
Agora não basta ser bonzinho ou boazinha para se tornar santo pela igreja católica, né? É preciso comprovar a sua habilidade para curar pessoas. E pra usar um provérbio bíblico, nesse caso santo de casa faz milagre, sim. Não apenas um, na verdade, dois. O primeiro milagre atribuído à Irmã Dulce foi a sobrevivência de uma mulher em trabalho de parto que já estava desenganada pelos médicos. Desenganada, nesse sentido, quer dizer desiludida. Quando alguém conta a verdade para você por pior que seja a sua situação. Logo após o trabalho de parto, dizem os médicos que participaram do procedimento, a paciente, que se chamava Cláudia, apresentou um quadro muito grave de hemorragia. É quando o paciente perde muito sangue. Os relatórios diziam que as possibilidades haviam chegado ao fim depois de 28 horas em que a paciente passou por três cirurgias. Pela versão apresentada que justificou a beatificação pelo vaticano, a mudança no quadro de saúde de Cláudia aconteceu quando um padre rogou à Irmã Dulce o salvamento da paciente, quer dizer, rezou à Irmã Dulce pedindo que uma imagem da freira fosse levada à maternidade. Durante as orações, a hemorragia parou, o que os religiosos classificam como milagre. No processo de investigação, o caso foi analisado por dez médicos brasileiros e seis italianos, e nenhum deles encontrou explicação científica para que a paciente tenha sobrevivido e se recuperado tão rápido. O segundo caso, reconhecido pelo Vaticano, refere-se a um paciente que conviveu com a cegueira durante catorze anos. E certa vez rogou a Irmã Dulce pela saúde dos olhos e voltou a enxergar de forma permanente desde 2014. O caso também passou por toda essa história de investigação até que o pedido foi aceito. É isso, gente, chegamos ao fim de mais um episódio. Acabei de me dar conta, que essa foi a primeira personagem que apresento aqui no Fala Gringo. Espero que traga sorte. A Antoinette, uma moça que conheci aqui em São Paulo o ano passado, falou que na faculdade dela estão usando os posts do meu Instagram nas aulas de português que eles têm na Colômbia. Recebi também mensagem de uma brasileira que está ouvindo o podcast para aprender mais sobre o país. Por essa eu não esperava. Obrigado a todos vocês que enviaram as suas mensagem. Quero continuar encorajando a entrar em contato comigo, pode ser em áudio, pode ser escrito, adoro saber a experiência de vocês. Quando digo que estamos formando uma comunidade de aprendizado do português não é da boca pra fora. Realmente sinto que tem algo muito significativo se formando, um grupo de pessoas realmente interessadas em aprender não só o português, mas também sobre o Brasil, além dos clichês de samba, Rio de Janeiro e futebol. Então quer mandar o seu recado, sugerir algum, tema, trocar uma ideia comigo, vai lá no instagram @portugues.com.leni. Até o próximo se Deus quiser. Ops, força do hábito!