O Barquinho, O ARRANJO, #9 (English subtitles)
Roberto Menescal praticava pesca submarina
e às vezes convidava alguns amigos músicos pra sair de barco com ele,
normalmente pelos lados de Cabo Frio, na costa verde do estado do Rio de Janeiro
Em um desses passeios, com convidados como Ronaldo Bôscoli, Nara Leão e Luis Eça,
o motor do barco enguiçou, muito distante da praia,
onde não dava mais para jogar a âncora, era muito fundo
As pessoas começaram a ficar muito preocupadas, claro, o porto mais próximo era a África
"O cara com aquela manivela...
e eu fiquei criando uma música em cima pra desfazer aquela tensão
Até que veio uma traineira que tava vindo da Bahia e rebocou a gente
Aí ficou todo mundo já alegre e começamos a brincar: o barquinho vai, a tardinha cai"
No dia seguinte, no apartamento da Nara Leão, Ronaldo Bôscoli pergunta pro Menescal:
Como era aquela melodia que vc estava fazendo com o barulho do motor do barco?
Ele pegou o violão e fez:
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, sejam bem vindos
O barquinho é o maior sucesso da parceria Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli,
e segundo Menescal, é a prova de que a bossa nova tinha o dom de transformar até possíveis tragédias,
como um barco à deriva no mar, em coisas boas, alegres, solares
A primeira gravação dessa música é da cantora Maysa,
uma das maiores estrelas da música brasileira no início dos anos 1960,
e que não tinha nada a ver com esse mundo é sol, é sal, é sul
Maysa era muito jovem, tinha 24 anos,
mas era conhecida como a deusa da fossa, das músicas de dor-de-cotovelo
A bossa nova tinha surgido na música brasileira como um furacão,
e ameaçava jogar toda uma geração muito talentosa,
da era de ouro da rádio e do samba-canção, num passado distante
Maysa sabia que precisava mudar o rumo da sua carreira, procurar novas sonoridades
Quando ela se encontra com o jornalista e letrista Ronaldo Bôscoli, abre-se uma opotunidade para os dois,
já que Bôscoli era meio que o ideólogo do movimento da Bossa Nova,
que ainda precisava de um nome muito famoso para crescer, atingir outros públicos
Desse improvável encontro, que virou um tórrido romance
nasceu o disco Barquinho, que Maysa assegurava ser o melhor disco da sua carreira até então
O disco não rendeu os elogios que Maysa esperava, e teve até uma certa rejeição do seu público
Mas com ele a bossa nova faria a sua primeira viagem para fora do Brasil,
numa turnê que Maysa fez por Chile, Uruguai e Argentina
Roberto Menescal era um garoto que amava Barney Kessel,
guitarrista que gravou um disco com Julie London, Julie is her name, em 1955
Esse disco fez a cabeça do jovem aspirante a músico
O pai de Menescal era engenheiro e queria que os filhos seguissem a carreira na arquitetura ou na engenharia
Menescal pensou em seguir a carreira dos seus irmãos, Bruno, Renato e Ricardo,
que se tornaram importantes arquitetos
Mas a paixão mesmo tava na música, e precisou que seu ídolo maior, Tom Jobim, lhe dissesse:
se o que vc quer é a música, larga tudo e se joga de cabeça
Foi o que ele fez, e para se sustentar, começou a dar aulas de violão,
fundando uma academia de violão com Carlos Lyra, que ele tinha conhecido em 1956,
no colégio Mallet Soares, em Copacabana
"No final dos anos 50 a gente começou uma moda engraçada, das academias de violão"
"E a gente formou muita gente nesse negócio"
Uma das alunas era Nara Leão, que morava num apartamento de frente para a praia de Copacabana
e tinha uma família liberal para a época
O pai dela, Jairo Leão, gostava que a Nara recebesse os amigos pra tocar violão, cantar e, claro, beber
"A gente se reunia, o papai saía pro trabalho de manhã, oito horas, 'Oi, como vai?',
porque a gente ainda estava na sala tocando, era um barato"
"Então ali ficou o Clube da Bossa Nova"
Essas reuniões foram ficando diárias, cada vez juntando mais gente
e num dia apareceu, convidado por Menescal,
um jornalista mais velho do que os 20 anos em média que os garotos tinham
Era Ronaldo Bôscoli, cunhado de Vinícius de Moraes na época,
que esbanjava charme sempre com uma suéter nos ombros, mesmo que estivesse fazendo calor
Ronaldo adorou aquela turma fazendo uma música nova, jovem,
e adorou principalmente Nara Leão, então com 15 anos, e eles começaram a namorar
Ele já tinha começado a escrever letras de música, e logo começou a compor com Carlos Lyra,
outro que era mais velho do que a média da turma
Mas Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli brigaram e Bôscoli resolveu investir numa parceria com Menescal
A primeira música que eles compuseram se chamava Jura de Pombo,
falava sobre um pombo apaixonado que chegou atrasado a um encontro porque foi andando, e não voando
Os dois consideraram a música uma porcaria
Mas acabaram se entendendo nas diferenças:
Menescal era do dia, praticava esportes, quase não bebia,
e Bôscoli era da noite, da boemia, do uísque
A parceria rendeu belas canções como Nós e o Mar, Ah se eu pudesse, A volta e muitas outras
Numa tarde Bôscoli estava na então distante praia da Barra da Tijuca com um amigo
quando simplesmente desceu um helicóptero do lado, fazendo aquele barulho ensurdecedor
e espalhando areia pra todo lado
Era Maysa, que tinha ido buscar algumas bebidas para um almoço que ela estava fazendo para amigos
Bôscoli se apresentou, se dizendo compositor que já tinha sido gravado por João Gilberto
e Maysa o convidou para se juntar ao grupo e almoçar na casa dela
Papo vai, papo vem, com o tempo os dois engataram um romance,
ainda que Bôscoli estivesse noivo de Nara Leão
Maysa estava mudando de gravadora, para a gravadora Columbia,
e anunciou que faria um disco só com músicas de bossa nova
e o diretor artístico seria, obviamente, Ronaldo Bôscoli
Ele apresentou pra Maysa dois jovens músicos de 24 anos, Menescal e Luiz Eça,
dizendo que eram ambos grandes arranjadores, apesar de, até aquele momento,
nenhum dos dois ter escrito arranjos para orquestra
Na reunião com a gravadora Luis Eça,
apavorado com a responsabilidade de ser o orquestrador e regente
de um disco de uma cantora da importância da Maysa,
resolveu pedir um número absurdo de músicos para as cordas,
Talvez ele conseguisse escapar se o projeto ficasse inviabilizado,
mas a gravadora aceitou
"Eu tinha medo, como todos nós temos medo sempre que a gente entra dentro de um campo desconhecido.
Então nessa altura eu ia entrar num campo desconhecido
porque até então eu era apenas um pianista e músico, eu não conhecia a parte de orquestra"
Ao sair da reunião disse para o Menescal que ia passar uns dias numa casa na serra,
em Teresópolis, para escrever os arranjos
Menescal pressentiu que o amigo estava tentando tirar o corpo fora
e se mudou para o apartamento dele por 10 dias, até que eles terminassem de escrever os arranjos
Inspirada ou não no som do motor de um barco que enguiçou,
a melodia de O barquinho é das melodias mais icônicas da bossa nova
Apoiada na sequência de duas semicolcheias seguidas de uma pausa também de semicolcheia,
a melodia vai se deslocando dentro do compasso por dois compassos seguidos,
criando síncopes inusitadas e dando um balanço todo especial e diferente,
marcas do compositor Roberto Menescal
O tema principal da melodia é apresentado em um tom
e depois repetido um tom abaixo e depois outra vez outro tom abaixo
O segredo de conseguir um efeito interessante mudando o centro tonal
dessa forma quase cerebral, mas aleatória,
é conseguir fazer um caminho natural para voltar para o tom inicial da música
E Menescal constrói uma ponte, que serve como refrão,
apoiando a melodia em notas estranhas ao tom mas perfeitamente casadas com a harmonia,
usando a tensão de nona bemol na melodia
Poucos anos depois, a melodia de O Barquinho
inspira muito claramente a música tema do filme Um homem, uma mulher,
do cineasta Claude Lelouche, de 1966
O próprio compositor, Francis Lai, comentou com o Menescal,
quando eles se encontraram num festival de cinema
Mas nem precisava, né?
Luiz Eça fez o pedido incrível
de 24 violinos, 12 violas, 4 cellos e 2 contrabaixos e foi atendido
Convidou seus pais para assistirem de dentro do estúdio e sua estreia como orquestrador e regente,
e a primeira música gravada, O barquinho,
terminou com aplausos dos músicos da orquestra
A banda de base arregimentada para gravar o disco era toda de jovens músicos iniciantes,
com no máximo 24 anos
Apesar de ser um grande pianista, Luiz Eça não gravou nessa faixa,
o piano ficou a cargo de Luiz Carlos Vinhas
Quem tocou contrabaixo foi o multi instumentista Bebeto Castilho
que também era um craque na flauta e Helcio Milito na bateria
Esses dois formariam com Luiz Eça um dos grupos mais importantes da história da música brasileira,
o Tamba Trio
Eles tocaram juntos pela primeira vez na longa turnê de dois meses com a Maysa, no cone sul,
a primeira vez que a bossa nova saiu do Brasil
"Aliás, nessa viagem que foi formado o Tamba Trio"
Completavam a equipe da turnê Roberto Menescal na guitarra,
Luis Carlos Vinhas, que dividia o piano com Luiz Eça e o diretor do show, Ronaldo Bôscoli
Bôscoli e Maysa assumiram para a banda o romance na viagem
Os rumores que eles estavam tendo um caso chegaram à imprensa
e aos ouvidos da noiva dele, Nara Leão
Na cabeça de Bôscoli o caso entre eles se encerraria quando eles voltassem pro Brasil
e ele se casaria com a Nara
mas na volta a Maysa ligou para a imprensa anunciando que faria um anúncio assim que descesse do avião
No pé da escada segurando o braço de Bôscoli, Maysa anuncia aos repórteres:
vou me casar com Ronaldo Bôscoli
Quando ele, dias depois, tentou falar com a Nara, ela mandou dizer:
Eu não conheço nenhum Ronaldo Bôscoli
Isso marca o fim do primeiro período da bossa nova,
da turma que se reunia no apartamento de Nara Leão todo dia pra tocar
A forma de O Barquinho é ABAB,
com os A's com 12 compassos e os B's com 4
A partes B's, como eu disse, são na verdade pontes,
elas servem para a melodia voltar para o tom original
O arranjador Luiz Eça escreveu um intermezzo de 10 compassos para a repetição da música,
que retorna em um solo improvisado do piano de Luis Carlos Vinhas
É interessante notar a linha de contrabaixo escrita por Eça,
é uma linha muito suingada, mas que distancia a música do samba,
tem um toque de música do Caribe,
faz inclusive a versão ficar mais próxima de um compasso quaternário,
ao invés do compasso binário que caracteriza o samba
Segundo o compositor Roberto Menescal a introdução escrita por Luiz Eça para essa gravação
é a melhor e a mais bonita introdução que ele conhece de O Barquinho,
e olha que ele conhece muitas gravações
Começa com um um intervalo de quarta nas cordas, no grave,
servindo de apoio para uma melodia no piano subindo mais de duas oitavas no primeiro acorde
e fazendo o sentido inverso no segundo acorde, meio tom acima do primeiro
E uma linha de violinos aparece costurando essa melodia
Na parte A as cordas fazem a resposta da melodia na região aguda
Já na parte B as resposta das cordas são numa região mais média
A repetição do A tem as mesmas respostas das cordas
Notem a linha sincopada do contrabaixo, nada a ver com samba
O intermezzo vai ter uma melodia oitavada do piano
repetindo o ritmo da melodia da música em sentido ascendente, junto com as cordas
Vai subindo a dinâmica também, cada vez mais forte, fica grandioso
Improviso do piano, com o contrabaixo fazendo a levada sutilmente diferente
As cordas vão fazer a melodia da parte B instrumental,
com a melodia a duas vozes no agudo e um apoio harmônico no grave
Na volta do A temos as cordas fazendo as repostas, como da primeira vez
No final a frase de cordas é oitavada para o agudo
Bom, esse foi O ARRANJO
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"Aqui no Brasil eu tinha uma casinha na Barra,
e uma tarde Ronaldo Bôscoli foi lá me entrevistar e levou com ele Roberto Menescal"
"Eu transei muito com a Maysa na época da Bossa Nova
Apesar da gente ter vindo do mesmo lugar,
nós nascemos em Vitória, Espírito Santo
Maysa foi uma das primeiras pessoas profissionais a acreditar nesse movimento
E Maysa me ajudou muito, particularmente,
porque ela gravou uma música minha que eu tinha feito naquela época, chama-se O Barquinho
e além de ter gravado a música ela ainda deu o nome ao LP de Barquinho
E foi um LP onde eu pude me apresentar com um conjunto,
acompanhando Maysa, e fazer os meus primeiros arranjos musicais"