O que revelam os 'documentos secretos' da ditadura levados por Biden ao Brasil
O primeiro debate entre os candidatos a presidente dos Estados Unidos deu um exemplo de como
Jair Bolsonaro e Joe Biden, estão em lados políticos opostos.
Enquanto debatia com o presidente Donald Trump, que tenta a reeleição e é o principal aliado
internacional do presidente brasileiro, Biden disse o seguinte:
Mas o meio ambiente está longe de ser o único tema de discordância entre Biden e Bolsonaro.
O americano está no centro de uma das empreitadas que Bolsonaro mais desqualifica publicamente:
a apuração de crimes e violações cometidos pela ditadura militar brasileira.
Eu sou Mariana Sanches, correspondente da BBC News Brasil em Washington, e neste vídeo
eu vou falar sobre os documentos que Biden, que era vice de Barack Obama, entregou em
mãos à então presidente Dilma Rousseff em Brasília em 2014.
Mas antes de falar sobre os documentos em si, e por que eles são tão importantes,
vou relembrar o que aconteceu naquele dia.
Em 17 de junho de 2014, Biden desembarcou em Brasília com um objeto especial na bagagem:
um HD com 43 documentos produzidos por autoridades americanas entre os anos de 1967 e 1977.
Os relatórios americanos detalhavam informações sobre censura, tortura e assassinatos cometidos
pelo regime militar do Brasil.
Para isso, juntava informações passadas não só por vítimas, mas por informantes
dentro das Forças Armadas e dos serviços de repressão.
Até aquele momento, a maior parte dos documentos era considerada secreta pelo governo dos Estados
Unidos, que apoiou e colaborou com a ditadura durante boa parte dela.
Biden sabia bem o significado daqueles documentos.
E sabia também que causaria impacto ao passar o HD pras mãos de Dilma, que foi torturada
nos porões da ditadura.
Eu explico: o governo Obama poderia ter enviado o material pela internet, ou pela embaixada.
Mas eles queriam gravar o nome de Obama e Biden na liberação dos documentos.
Isso seria uma espécie de manifesto pela transparência e pelos direitos humanos.
O interesse americano, é claro, ia além da questão dos direitos humanos.
Eles queriam melhorar as relações diplomáticas ao entregar informações tão relevantes
para a história de países como Brasil, Argentina e Chile.
No caso do Brasil, isso era ainda mais estratégico.
Meses antes, Edward Snowden, um analista da Agência Nacional de Segurança americana
havia denunciado que os americanos tinham espionado conversas de Dilma, o que abalou
as relações entre os países.
Cinco anos depois do encontro entre Dilma e Biden, o presidente Jair Bolsonaro desqualificou
totalmente as revelações feitas pela Comissão Nacional da Verdade, que têm nos documentos
trazidos por Biden prova fundamental.
O presidente disse o seguinte:
“A questão de 64 não existem documentos se matou ou não matou, isso aí é balela, está certo?”
“Comissão da Verdade?
Você acredita em Comissão da Verdade?
Você quer documento para isso, meu Deus do céu?
Documento é quando você casa, quando você se divorcia.
Eles têm documento dizendo o contrário?"
Mas afinal, o que diziam os documentos trazidos por Biden?
Eu vou ler agora o trecho de um deles, uma comunicação diplomática de sete páginas
enviada pelo consulado americano do Rio de Janeiro ao Departamento de Estado, em 1973,
e redigida não só a partir de depoimentos de vítimas, mas de informantes militares
"O suspeito é deixado nu, sentado e sozinho em uma cela completamente escura ou refrigerada
por várias horas.
Na cela há alto-falantes, que emitem gritos, sirenes e apitos em altos decibéis.
Então, o detido é interrogado por um ou mais agentes, que o informam qual crime acreditam
que a pessoa tenha cometido e que medidas serão tomadas caso não coopere.
Nesse ponto, se o indivíduo não confessa, e se os agentes consideram que ele possui
informações valiosas, ele é submetido a um crescente sofrimento físico e mental até
confessar.
Ele é colocado nu, em uma pequena sala escura com um chão metálico, que conduz correntes
elétricas.
Os choques elétricos, embora alegadamente de baixa intensidade, são constantes e eventualmente
se tornam insuportáveis.
O suspeito é mantido nessa sala por muitas horas.
O resultado é extrema exaustão mental e física, especialmente se a pessoa é mantida
nesse tratamento por dois ou três dias.
Em todo esse período, ele não recebe comida nem água".
O documento diz ainda que 126 pessoas passaram por algo parecido a esse tratamento descrito
pelos diplomatas americanos.
Nem sempre Bolsonaro nega que a ditadura tenha cometido violações aos direitos humanos.
Em julho de 2016, em uma entrevista à rádio Jovem Pan, ele afirmou que “o erro da ditadura
foi torturar e não matar".
E dois anos mais tarde, quando já estava em pré-campanha presidencial, ele foi confrontado
com a inform ação de um relatório da CIA, aberto em
2015 no escopo do mesmo projeto de Biden.
Segundo o material, o presidente Ernesto Geisel teria aprovado a execução sumária de adversários
do regime.
Bolsonaro disse o seguinte à rádio Super Notícia:
“Errar, até na sua casa, todo mundo erra.
Quem nunca deu um tapa no bumbum do filho e depois se arrependeu?
Acontece."
De fato, outros documentos trazidos por Biden mostram que a ditadura brasileira não só
torturou, como matou.
Em um deles, o Cônsul-geral americano em São Paulo, Frederic Chapin, afirma em um
telegrama de 1973 que ouviu um relato de "um informante e interrogador profissional trabalhando
para o Centro de Inteligência Militar de Osasco", em São Paulo.
"Ele explicou como havia quebrado uma célula "comunista" envolvendo um oficial da polícia
civil.
O oficial foi forçado a falar depois de ter tomado choques elétricos nos ouvidos e mencionou
sua conexão com uma amiga, que foi imediatamente detida.
Ela não foi cooperativa, no entanto, então foi deixada no pau-de-arara por 43 horas,
sem alimentos ou água.
Isso a quebrou, nossa fonte contou.
Tortura, de uma forma ou de outra, é prática comum em interrogatórios em Osasco.
Ele também nos deu um relato em primeira mão do assassinato de um subversivo suspeito,
o que chamou de "costurar" o suspeito, ou seja, dar tiros nele da cabeça aos pés com
uma arma automática".
O termo "costurar" seria referência a um método para desfigurar o cadáver e evitar
sua futura identificação.
O Cônsul Chapin relatou também o seguinte: "Vários agentes de segurança nos informaram
que suspeitos de terrorismo são mortos como prática padrão.
Estimamos que ao menos doze tenham sido mortos na região de São Paulo no ano passado (1972)".
Ao registrar as mortes em São Paulo, Chapin aponta para a atuação do coronel do Exército
Carlos Alberto Brilhante Ustra, o chefe do DOI-Codi paulista, um dos principais órgãos
de repressão do país, entre 1970 e 1974.
Ustra foi o primeiro militar brasileiro a ser condenado civilmente pela Justiça pelos
crimes de tortura.
Ele é também considerado um herói e uma referência por Bolsonaro, que já afirmou
ter como livro de cabeceira a obra de Ustra, "A verdade sufocada".
Enquanto era deputado, no dia da votação da abertura de processo de impeachment da
então presidente Dilma Rousseff, Bolsonaro citou o militar em seu voto:
(...) Pela memória do Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff
Outro documento da leva de Biden desafia outro argumento de Bolsonaro: de que o regime militar
só prendeu, torturou e matou o que classificavam como "terroristas".
Em dezembro de 2008, quando o Ato Institucional número 5, instrumento da ditadura que cassou
liberdades individuais, completava 40 anos, o então deputado federal Bolsonaro disse
no plenário: "Eu louvo os militares que, em 1968, impuseram
o AI-5 para conter o terror em nosso país, (...) Mas eu louvo o AI-5 porque, pela segunda
vez, colocou um freio naqueles da esquerda que pegavam em armas, sequestravam, torturavam,
assassinavam e praticavam atos de terror em nosso país”.
Mas em outubro de 1970, o serviço diplomático americano no Brasil mandou uma comunicação
ao Departamento de Estado registrando os relatos de Robert Horth, um americano que teria sido
confundido com um extremista e preso no DEOPS, a unidade de polícia política paulista.
Nos documentos americanos, os diplomatas do país garantem que Horth não era um comunista
subversivo. ele disse aos diplomatas americanos que "cinco
dos seis prisioneiros em suas celas eram absolutamente inocentes da acusação de subversão política".
Outro documento, de dezembro de 1969, dá força ao questionamento sobre os crimes reais
dos alvos da repressão ao informar que freiras dominicanas tinham Sido presas, humilhadas
e torturadas em Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.
Mas se relatos semelhantes já eram conhecidos no Brasil, por que esses documentos são tão
importantes?
Eu conversei com Peter Kornbluh, diretor do Projeto de Documentação Brasileiro do Arquivo
de Segurança Nacional Americano, aqui em Washington.
E ele diz que um dos relatórios é dos mais detalhados documentos sobre técnicas de tortura
já aberto pelo governo dos Estados Unidos.
Os documentos americanos ajudam a lançar luz sobre várias atrocidades e técnicas
de tortura do regime militar do Brasil.
São evidências contemporâneas dos abusos dos direitos humanos cometidos pelos militares
brasileiros.
Peter Kornbluh ainda me disse o seguinte: Quase todo o mundo acredita neles.
As pessoas que preferem não reconhecer a verdade sobre o que foi feito são os Bolsonaro
e aqueles que realmente cometeram esses crimes.
Eu também conversei com o relator da Comissão da Verdade, Pedro Dallari.
Segundo ele, "mais do que trazer novos fatos, os documentos americanos foram cruciais porque
comprovaram muitos fatos a partir de uma fonte insuspeita.
Estamos, afinal, falando de relatórios da diplomacia dos Estados Unidos, que não tinham
qualquer simpatia pelos oposicionistas de esquerda e que apoiavam os militares".
Os documentos americanos foram ainda mais importantes para a Comissão porque as Forças
Armadas Brasileiras disseram não poder oferecer evidências que corroborassem os depoimentos
de vítimas de tortura em dependências militares.
Dallari lembra: "Ao mesmo tempo em que chegavam os documentos
americanos, recebíamos retorno dos militares dizendo que suas sindicâncias não localizaram
nada."
Agora eu chego ao último ponto desse vídeo: se Biden vencer as eleições, o que esse
histórico dele pode revelar sobre o futuro das relações entre Brasil e Estados Unidos?
Vale lembrar que o golpe de 1964 recebeu o apoio do governo americano.
E o presidente era um democrata: Lyndon Johnson.
Mas foi também um democrata, o presidente Jimmy Carter, quem rompeu com esse apoio americano
aos militares, 13 anos mais tarde.
E desde o governo do democrata Bill Clinton, nos anos 1990, documentos secretos sobre ditaduras
latino-americanas têm se tornado públicos.
Mas foi na gestão Obama que essa abertura ganhou tons de política de relações exteriores,
em um esforço americano para melhorar sua imagem e seu relacionamento na região.
Para Peter Kornbluh, com Biden e Dilma esse tipo de diplomacia alcançou um de seus pontos
mais altos.
E em conversas com a BBC News Brasil, conselheiros da campanha de Biden têm dito que o tema
dos direitos humanos é central para o candidato, especialmente na América Latina.
Mas embora ainda exista um grande arquivo intocado sobre a história da ditadura do
Brasil, principalmente com informações de órgãos como FBI e CIA, é improvável que
Biden faça qualquer nova abertura se vencer as eleições.
Isso porque documentos secretos americanos sobre outros países só
podem se tornar públicos se os governos dessas nações requisitarem o acesso.
E hoje não há interesse no governo brasileiro, sob Bolsonaro, por esse tipo de informação.
Bem, é isso.
Ficaram dúvidas?
Deixa aqui nos comentários.
Até a próxima!