O que foi e como acabou a Primavera Árabe | 21 notícias que marcaram o século 21 (1)
Tudo começou com um vendedor de frutas no interior da Tunísia
Mohamed Bouazizi, de 26 anos, era um ambulante na pequena cidade de Sidi Bouzid
Constantemente abordado por policiais por não ter autorização para trabalhar ou por
supostos problemas com seus produtos, era intimidado por pedidos de propina
No dia dezessete de dezembro de dois mil e dez, em novo episódio de intimidação, policiais
confiscaram seu carrinho de frutas
Bouazizi foi à sede do governo local para reclamar
e recuperar seus pertences, mas não foi recebido
Sem poder trabalhar, Bouazizi se desesperou
Comprou um galão de combustível, jogou o líquido sobre o corpo e, diante do prédio
do governo, ateou fogo
A notícia se espalhou pelo mundo, compartilhada nas mídias sociais
Rapidamente, um ato que parecia isolado se transformou em protestos generalizados contra
o desemprego e a corrupção na Tunísia
Mas não só lá
O movimento alcançaria outros países e ficaria marcado na história como Primavera Árabe
Meu nome é Camilla Veras Mota, e este é um capítulo da série da BBC News Brasil,
21 notícias do século 21
A Tunísia, país árabe no norte da África, era governado havia vinte e três anos pelo
presidente Zine al-Abidine Ben Ali, reeleito pela última vez em dois mil e nove
Apesar de proibidos pelo governo, os protestos de rua inspirados pelo vendedor de frutas
se multiplicaram e desembocaram em choques com a polícia
A comunidade internacional voltou seu olhar para a Tunísia
Pressionado, Ben Ali chegou a visitar Mohamed Bouazizi no hospital
Mas o vendedor de frutas morreu em 4 de janeiro de dois mil e onze
Enquanto a tensão no país aumentava, Ben Ali tentava manter a ordem, dizendo que os
protestos eram inaceitáveis e organizados por uma minoria de extremistas
A velocidade dos acontecimentos surpreendeu
Em janeiro de dois mil e onze, cinquenta civis tinham morrido, embora o governo da Tunísia
afirmasse que eram vinte e um
Ben Ali anunciou que não disputaria a reeleição em dois mil e catorze
Mas a promessa não diminuiu a ira dos cidadãos nas ruas
Vinte e quatro horas depois – e menos de um mês desde a imolação pública do ambulante
Mohamed Bouazizi –, o antes todo-poderoso presidente da Tunísia abandonou o país em
direção à Arábia Saudita, para nunca mais voltar
Ele morreu no exílio em dois mil e dezenove
Ben Ali deixou como herança não apenas um país em crise, com um governo interino e
sob estado de emergência
Ficou claro que era possível derrubar um ditador árabe com protestos pacíficos
A maior parte das nações árabes, inclusive as que se beneficiaram por décadas dos altos
lucros do petróleo, sofria dos mesmo males que levaram à queda de Ben Ali
A crise financeira global de 2008 tinha agravado a situação econômica na região
O desemprego subiu, especialmente entre os jovens
Como a Tunísia, outros países também eram governados por autocratas, que historicamente
reprimiam dissidências e protestos com extrema violência
Empobrecidos e com pouca esperança no futuro, cidadãos da região viram na revolta tunisiana
um exemplo a ser seguido
Sem falar no novo Iraque que, mesmo após uma ocupação devastadora, também dava a
impressão de que era possível adotar um regime mais democrático, baseado em consultas
populares
O país onde essas possibilidades de liberdade chegaram mais rápido foi o Egito
Maior nação árabe, o Egito tem cerca de noventa milhões de habitantes
O então presidente, Hosni Mubarak, estava no cargo desde outubro de 1981
O antecessor de Mubarak tinha sido o ganhador do prêmio Nobel da Paz Anwar El Sadat, de
quem Mubarak era vice
El Sadat foi assassinado a tiros num impressionante ataque de militantes islâmicos durante um
desfile militar no Cairo
No atentado, outras dez pessoas foram mortas, e o próprio Mubarak foi ferido
Em janeiro de 2011, enquanto Ben Ali renunciava ao poder na Tunísia, ativistas pela democracia
no Egito começaram a convocar protestos no país
E repetiram o modelo visto na Tunísia, aproveitando o potencial da comunicação rápida das redes
sociais
Especialmente na capital, Cairo, ruas e praças foram rapidamente tomadas pela população,
que pedia melhorias econômicas e reformas políticas
A praça Tahrir, que em português quer dizer libertação,
virou o centro do movimento por democracia
Mas a resposta do governo Mubarak também repetiu a do governo da Tunísia
Centenas de pessoas morreram em confrontos entre manifestantes, forças de segurança
e simpatizantes do regime
Cercada por tanques do Exército, a praça Tahrir se tornou uma pequena cidade-protesto,
com acampamento, comércio, coleta de lixo e um mural em memória dos mortos
Apesar da violência mais acentuada, o roteiro final acabou sendo quase uma cópia do vivido
pela Tunísia: o governo Mubarak inicialmente reagiu com violência, mas perdeu o controle
do país menos de um mês depois
Em 12 de fevereiro, após 29 anos com plenos poderes sobre o Egito, Hosni Mubarak
renunciou ao cargo
A queda de Mubarak foi cercada de entusiasmo pela população, que apostava num futuro
democrático para o país
As primeiras eleições livres da história egípcia ocorreram em 2012
Mohamed Morsi, líder do partido Liberdade e Justiça, ligado ao movimento islamista
Irmandade Muçulmana, foi o primeiro presidente do Egito eleito democraticamente
Mas após um ano, manifestantes voltaram às ruas para protestar contra o que consideravam
medidas antidemocráticas de Morsi, que estaria perseguindo grupos seculares e iniciando uma
islamização do Egito por meio de uma nova Constituição
Os protestos pediram a saída do presidente
O Exército se meteu, e um golpe de estado colocou Morsi e centenas de apoiadores na
prisão e baniu a Irmandade Muçulmana
A Constituição foi suspensa, e o general Abdel Fattah el-Sisi assumiu o poder
Em 2014, Sisi foi eleito presidente, em eleições sem a participação de partidos
islamistas
Com a segurança interna como prioridade, o governo Sisi passou a ser acusado de abusos
contra direitos humanos, especialmente prisões arbitrárias, lembrando características do
regime de Hosni Mubarak
Agora, um pouco mais de contexto: As condições econômicas que desembocaram
no levante popular que derrubou Mubarak em 2011
já eram conhecidas pela comunidade internacional
Desde os anos 1990, o Fundo Monetário Internacional impunha reformas liberalizantes ao país
Em primeiro de fevereiro, o jornal americano The Wall Street Journal citava o então diretor-gerente
do FMI, Dominique Strauss-Khan
Strauss-Khan era incisivo: os altos níveis de desemprego
entre jovens no Egito são uma bomba-relógio
O The Wall Street Journal citava os níveis de desemprego entre jovens entre os países
árabes
Egito e Tunísia tinham os mais altos níveis
A situação, segundo o jornal americano, era complicada também na Jordânia, no Marrocos
e na Síria
Alguns autocratas do Mundo Árabe então perceberam que, se usassem com violência contra protestos,
poderiam ter o mesmo destino de Ben Ali e Mubarak
Jordânia e Marrocos tentaram se antecipar logo que chegaram as notícias de Tunísia e Egito
Em fevereiro de 2011, a entidade de defesa de direitos humanos Human Rights Watch
noticiou que uma jornada de protestos em várias cidades
do Marrocos havia ocorrido de forma pacífica
Segundo a organização, as forças de segurança marroquinas até chegaram a utilizar de violência
contra manifestantes, mas aparentemente o regime do rei Mohammed Sexto mudou de estratégia
Cerca de duas semanas depois, em 9 de março, o rei Mohammed Sexto anunciou em comunicado
na televisão um plano de reforma constitucional
A proposta daria mais poderes ao primeiro-ministro e ao Parlamento, mais autonomia a regiões
do país, garantiria igualdade de direitos às mulheres e resultaria em mais liberdade
de expressão aos cidadãos
Apesar de criticada por integrantes do movimento que liderou os protestos de fevereiro, a reforma
marroquina foi aprovada quatro meses depois, em julho, em um plebiscito nacional
Segundo números do governo, setenta e três por cento dos eleitores haviam participado
da votação, com as mudanças aprovadas por noventa e oito e meio por cento dos votantes
Com a nova Constituição, o rei passaria a escolher o primeiro-ministro entre os representantes
do partido com a maior bancada no Parlamento
As eleições parlamentares foram antecipadas para o fim de 2011
Um novo Executivo, liderado pelo premiê Abdelilah Benkirane, assumiu em novembro daquele ano
Embora existissem muitas semelhanças entre os movimentos, havia também diferenças no
comportamento de manifestantes e na reação das autoridades de acordo com o grau de liberdades
democráticas de cada país durante a Primavera Árabe
Além disso, em monarquias cujos reis desfrutavam de significativa credibilidade, a insatisfação
das ruas mirava mais nos políticos que chefiavam o Executivo
Foi o que aconteceu na Jordânia
Inspirados pelos tunisianos, já no início de 2011, os jordanianos foram às
ruas em protesto contra desemprego, pobreza e corrupção
Pediam a renúncia do primeiro-ministro Samir al-Rifai, o que ocorreu poucos dias depois
Em fevereiro, o rei Abdullah colocou no cargo Marouf Bakhit e pediu que ele iniciasse imediatamente
um processo de reforma política
Bakhit não foi capaz de estabilizar a situação
Um mês depois, manifestantes já pediam sua renúncia
Em novembro, o rei Abdullah decidiu substituí-lo por Awn Khasawneh, que também não duraria
muito tempo no cargo - apenas seis meses
Apesar das constantes crises políticas, acompanhadas de protestos relativamente pacíficos, o regime
monárquico da Jordânia evitou uma revolta maior
O rei Abdullah ofereceu concessões, implantou algumas reformas internas e sobreviveu à
fase mais difícil da Primavera Árabe
As monarquias de Arábia Saudita e Kuwait enfrentaram protestos de rua de menores consequências
No Kuwait, as manifestações começaram em fevereiro e reuniram principalmente árabes
que viviam ou mesmo nasceram no país, mas não eram considerados cidadãos kuwaitianos
Em seguida, outros passaram a exigir melhorias no país, especialmente no combate à corrupção
Em novembro de dois mil e onze, manifestantes invadiram o Parlamento do Kuwait
A ação levaria à prisão, sete anos mais tarde, várias pessoas, incluindo três parlamentares
Já o regime saudita, diante de manifestações por reformas políticas, focou no dinheiro
Entre fevereiro e março de dois mil e onze, a Arábia Saudita anunciou cerca de 130 bilhões
de dólares para desempregados e para quem tentava adquirir o primeiro imóvel, além
da criação de milhares de empregos
O governo, entretanto, continuava reprimindo manifestações de rua, a maioria no leste
do país, em áreas de população xiita
O regime saudita, no entanto, não se preocupava apenas com a própria estabilidade
O minúsculo mas importante Bahrein - um arquipélago rico em petróleo na costa da Arábia Saudita
– era a bola da vez
De novo, em fevereiro de dois mil e onze, uma série de protestos abalou o pequeno país,
onde sessenta por cento dos habitantes são xiitas, governados por uma monarquia sunita,
assim como os outros reinos do Golfo
As manifestações reuniram principalmente xiitas
A Rotatória Pérola, na capital, Manama, acabou ocupada por milhares de pessoas, que
instalaram um acampamento, reproduzindo a estrutura montada por egípcios na praça
Tahir, no Egito
Em março, porém, o rei do Bahrein, Hamad bin Isa Al Khalifa, autorizou uma intervenção
militar liderada pela Arábia Saudita, com apoio dos Emirados Árabes, para sufocar a
nascente revolução
Dois mil soldados e policiais não apenas expulsaram os manifestantes, numa ação que
deixou dezenas de mortos, mas também destruíram a Rotatória Pérola e o monumento que dava
nome ao local
Mas, para dois países, a Primavera Árabe provocou mudanças profundas, ainda mais trágicas
e de longa duração
Governada por mais de quarenta anos pela mão-de-ferro do coronel Muammar Khadafi, a Líbia é dona
das maiores reservas de petróleo e gás da África
O país sempre foi marcado por diferenças históricas entre o leste, onde estão as
principais reservas de petróleo, e o oeste, onde fica a capital, Trípoli
Em fevereiro de 2011, o impacto das revoluções na Tunísia e no Egito levou a protestos de
rua, iniciados em Benghazi, segunda maior cidade do país, no leste
A resposta do regime de Khadafi veio na forma de uma repressão violenta
Os protestos espalharam-se para outras cidades, e Benghazi tornou-se o centro de um movimento
contra o regime de Khadafi
O governo enviou tropas para a cidade com a promessa de destruir a revolução que se
formava no leste da Líbia
Pouco antes de uma invasão, porém, o Conselho de Segurança das Organização das Nações