14º Poema: Confidência, de Os Escravos, de Castro Alves
Confidência
Maldição sobre vós, doutores da
lei!
Maldição sobre vós, hipócritas! Assemelhais-vos aos sepulcros brancos
por fora; o exterior parece formoso,
mas o interior está cheio de ossos e
podridão.
EVANGELHO DE SÃO MATEUS, cap.
XXII. Quando, Maria, vês de minha fronte
Negra idéia voando no horizonte,
as asas desdobrar,
Triste segues então meu pensamento,
Como fita o barqueiro de Sorrento
As nuvens ao luar.
E tu me dizes, pálida inocente,
Derramando uma lágrima tremente,
Como orvalho de dor:
"Por que sofres?
A selva tem odores, "0 céu tem astros, os vergéis têm flores,
"Nossas almas o amor".
Ai!
tu vês nos teus sonhos de criança A ave de amor que o ramo da esperança
Traz no bico a voar;
E eu vejo um negro abutre que esvoaça,
Que co'as garras a púrpura espedaça
Do manto popular.
Tu vês na onda a flor azul dos campos,
Donde os astros, errantes pirilampos,
Se elevam para os céus;
E eu vejo a noite borbulhar das vagas
E a consciência é quem me aponta as plagas
Voltada para Deus.
Tua alma é como as veigas sorrentinas
Onde passam gemendo as cavatinas
Cantadas ao luar.
A minha — eco do grito, que soluça,
Grito de toda dor que se debruça
Do lábio a soluçar.
É que eu escuto o sussurrar de idéias,
O marulho talvez das epopéias,
Em torno aos mausoléus,
E me curvo no túm'lo das idades
— Crânios de pedra, cheios de verdades
E da sombra de Deus.
E nessas horas julgo que o passado
Dos túmulos a meio levantado
Me diz na solidão:
"Que és tu, poeta?
A lâmpada da orgia, "Ou a estrela de luz, que os povos guia
"À nova redenção?
Ó Maria, mal sabes o fadário
Que o moço bardo arrasta solitário
Na impotência da dor.
Quando vê que debalde à liberdade
Abriu sua alma - urna da verdade
Da esperança e do amor!
...
Quando vê que uma lúgubre coorte
Contra a estátua (sagrada pela morte)
Do grande imperador,
Hipócrita, amotina a populaça,
Que morde o bronze, como um cão de caça
No seu louco furor!
...
Sem poder esmagar a iniqüidade
Que tem na boca sempre a liberdade,
Nada no coração;
Que ri da dor cruel de mil escravos,
— Hiena, que do túmulo dos bravos,
Morde a reputação!
...
Sim... quando vejo, ó Deus, que o sacerdote
As espáduas fustiga com o chicote
Ao cativo infeliz;
Que o pescador das almas já se esquece
Das santas pescarias e adormece
Junto da meretriz...
Que o apóstolo, o símplice romeiro,
Sem bolsa, sem sandálias, sem dinheiro,
Pobre como Jesus,
Que mendigava outrora à caridade
Pagando o pão com o pão da eternidade,
Pagando o amor com a luz,
Agora adota a escravidão por filha,
Amolando nas páginas da Bíblia
O cutelo do algoz...
Sinto não ter um raio em cada verso
Para escrever na fronte do perverso:
"Maldição sobre vós!
Maldição sobre vós, tribuno falso!
Rei, que julgais que o negro cadafalso
É dos tronos o irmão!
Bardo, que a lira prostituis na orgia
— Eunuco incensador da tirania —
Sobre ti maldição!
Maldição sobre tí, rico devasso,
Que da música, ao lânguido compasso,
Embriagado não vês
A criança faminta que na rua
Abraça u'a mulher pálida e nua,
Tua amante...
talvez!... Maldição!
... Mas que importa?... Ela espedaça Acaso a flor olente que se enlaça
Nas c'roas festivais?
Nodoa a veste rica ao sibarita?
Que importam cantos, se é mais alta a grita
Das loucas bacanais?
Oh!
por isso, Maria, vês, me curvo Na face do presente escuro e turvo
E interrogo o porvir;
Ou levantando a voz por sobre os montes, —
"Liberdade", pergunto aos horizontes,
Quando enfim hás de vir?
Por isso, quando vês as noites belas,
Onde voa a poeira das estrelas
E das constelações,
Eu fito o abismo que a meus pés fermenta,
E onde, como santelmos da tormenta,
Fulgem revoluções!...