Tecnocracia #54: Em menos de um ano, o Pix já fez mais que as criptomoedas em uma década (3)
Mas essas receitas representam menos de 1% e esse impacto deve ser moderado”, disse o então presidente do Itaú, Candido Bracher, para a Folha de S.Paulo. Ele usa o adjetivo "moderado" porque ele era presidente do maior banco privado do Brasil, mas a verdade é que esse impacto deve ser mínimo.
A transferência de valores pelo Pix é só o primeiro serviço. O Banco Central já deixou claro que encara o Pix como uma plataforma, onde outros serviços vão ser acoplados. Abre aspas para um artigo publicado no site NeoFeed: “O calendário de ações da instituição, Banco Central, prevê, para o segundo semestre deste ano, o Pix Saque, que permitirá o saque de dinheiro em estabelecimentos comerciais, o Pix Troco, por meio do qual o consumidor poderá fazer uma compra com um valor maior que o da transação e receber o troco em espécie do comerciante, e o Pix Agendado, para pagamentos programados”. Além destes três, pelo menos outros três estão sendo implementados: o Pix por aproximação, o Pix offline e o Pix Garantido, para pagamentos parcelados.
Ao avançar sobre outros serviços financeiros, o Pix deixa de ser um experimento e vai aos poucos assumindo o papel a médio prazo de malha do sistema bancário brasileiro. De novo: esse movimento está muito longe de ser desprezível em um mercado altamente regulado e concentrado como o bancário no Brasil. Claro, existem uma série de dúvidas ainda a serem esclarecidas, muitas práticas e algumas estratégicas. A principal é: existe alguma chance de os bancos desenvolverem o famoso “cold feet” e abandonarem o Pix?
Parece altamente improvável por uma simples razão: um ambiente concorrencial equilibrado joga a favor dos bancos. Eles já têm base de clientes, estrutura técnica, cardápio de serviços financeiros e a inércia ao próprio favor. Um exemplo: 20% de todos os Pix são processados por um player só, o Itaú. Historicamente, os bancos no Brasil nunca abraçaram uma tecnologia sem a certeza de que, ao fim do ciclo de mudanças, tudo estaria mais ou menos no mesmo lugar. Puxa-se o tapete só quando tem certeza que todo mundo vai cair de pé. A perda de receita por DOC é uma dor de cabeça temporária para se ganhar bem adiante. Outro ponto: o Pix é a introdução do open banking, uma iniciativa do Banco Central que vai facilitar a portabilidade de serviços financeiros para outras instituições. O compartilhamento de dados pelo open banking já começou em agosto. Isso quer dizer que bancos tradicionais e fintechs mais modernas vão ter que competir em taxas pelos seus clientes. Um picolé de mangaba para você que adivinhar quem tem mais cacife para oferecer taxas mais baixas... Frente a essa mudança sísmica no sistema bancário brasileiro, você sentiu falta de um termo? E o bitcoin? E as criptomoedas? Você está ouvindo há anos que elas são o futuro. Aí a gente volta pro Segway. No começo da década passada, o mercado esperava uma revolução em transportes com um patinete de duas rodas com giroscópio. Esperava-se uma revolução que nunca apareceu. O que que impediu? A realidade. As mudanças mais relevantes do setor nos anos seguintes foram incrementais em tecnologias já existentes: o motor elétrico e a coordenação em tempo real entre demanda e oferta. A revolução do Segway nunca veio – quer dizer, ela veio, mas não era uma revolução. Era um estalinho, que acabou nichada em um grupo minúsculo.
Da mesma forma, não houve tema sobre tecnologia e finanças na última década mais discutido e aventado que as criptomoedas, quase sempre explorando os impactos positivos. Eu acho – vamos deixar claro – eu acho que elas têm um potencial financeiro muito maior do que o Segway jamais teve em transportes. O ponto é que as criptomoedas viraram o nosso Godot: a gente tá há uma década esperando a enorme revolução enquanto todas não passam de brinquedos nas mãos de uma galera que forma o cerne dessa cultura tóxica de empreendedorismo digital na qual estamos afundados (olha o bulletproof coffee e os coletinhos acolchoados sem manga aí de novo).
Isso não quer dizer que, em médio ou longo prazo, ou longuíssimo prazo, alguma expectativa não se cumpra, ainda que de forma atrasada. Eu não estou tirando o potencial das criptomoedas; elas têm. O meu ponto é que, ao mesmo tempo em que a gente espera o Godot, já existe uma mudança em curtíssimo prazo com potencial de transformar o sistema bancário brasileiro e da qual você, provavelmente, já faz parte. É essa a mudança que vai balizar como você transita seu dinheiro nas próximas décadas, algo tão grande (ou até maior) que a introdução dos cheques e dos cartões. Eu digo que o Pix é a maior revolução bancária brasileira da última década porque eu estou sendo comedido. Talvez ela seja das últimas décadas. O recado final é: pare de aventar castelos de sonho no céu e comece a olhar a realidade. Tem coisa muito interessante acontecendo; preste atenção nelas. Pode parecer contraintuitivo, mas agora se você não quiser se estabacar no chão, você vai precisar tirar o olho do Segway. A gente volta em quinze dias.