Tecnocracia #54: Em menos de um ano, o Pix já fez mais que as criptomoedas em uma década (2)
Qual foi a última vez que você recebeu o seu salário em notas para guardar no bolso ou na bolsa? Muito provavelmente, essa pergunta nem faz sentido para você, porque o sistema bancário encontrou maneiras mais práticas e seguras de transacionar volumes. O cheque a partir do século XIX, por exemplo. A partir dos anos 2000, no entanto, a digitalização do sistema bancário significou também que o seu dinheiro virou bits. Hoje, para muitos de nós, o dinheiro não é mais nada do que um dado guardado em um servidor seguro dentro de um data center refrigerado. A cada compra, o dado diminui. A cada salário, ele aumenta. Para uma parte relevante dos brasileiros da classe média para cima, o dinheiro já é digital há um bom tempo.
Então por que que o Pix deu tão certo? São alguns os fatores. Primeiro é que a tecnologia por trás do Pix não é necessariamente revolucionária — a Red Hat, contratada pelo Banco Central para criar o sistema por trás, orquestrou só tecnologias que já estavam disponíveis no mercado, e no site da Red Hat você consegue baixar o “case” para ter mais detalhes técnicos sobre a implementação do Pix. Não tem nada de protocolos novos ou a exigência de um novo tipo de processamento distribuído ou o escambau. É tudo mais do mesmo e isso é bom. Uma das pecinhas encaixadas no sistema do Pix é uma tecnologia que era apontada como o futuro há décadas e que, finalmente, encontrou uma serventia prática no dia a dia: o QR Code. Quem trabalha com tecnologia sabe como, desde a virada do século, os mais otimistas diziam que o QR Code revolucionaria os elos entre o mundo real e o virtual. Demorou, mas finalmente chegou — a publicidade e a mídia têm se esforçado muito nos últimos anos para você baixar apps ou participar de promoções com o QR Code na TV, mas o Pix é seu case de inegável sucesso.
O segundo fator é que o Pix já está totalmente integrado aos bancos. Em vez de ter uma wallet separada que exige tecnologia X ou Y, é só entrar no aplicativo do seu banco, seja ele tradicional ou digital, e movimentar seu dinheiro. O terceiro fator tem relação com isso: o Pix é amplo. Você pode fazer transferência (uma vez ou recorrente) e emitir pagamento. No futuro, vai ser possível saque, parcelamento e algumas outras coisas. O quarto é introduzir no sistema financeiro informações mundanas — você pode mandar dinheiro para um número de telefone, para um e-mail, para um CPF, um CNPJ... Você não precisa ter um novo número na vida das pessoas. O quinto é que funciona até nos celulares mais simples. Você não precisa ter um iPhone poderoso para receber dinheiro ou pagar alguma coisa. E por fim, o sexto: é que o Pix é, na imensa maioria dos seus usos, gratuito. Você pode comprar uma pipoca na rua por R$ 3 [três reais] sem se preocupar com tarifas. Há taxações, principalmente para pessoas jurídicas, mas algumas fintechs e bancos podem escolher isentar essas taxas.
Como resultado desse cenário que eu tô descrevendo para vocês, em menos de um ano ativo, o Pix já foi usado por mais de 97 [noventa e sete] milhões de brasileiros. Para um pouco para pensar na maluquice que é isso: um país gigantesco, com um sistema bancário super regulado, conseguiu fazer a transição para uma nova tecnologia de pagamentos eletrônicos monstruosa em menos de um ano. A adoção foi tão acachapante que já cogitam a possibilidade de o Pix matar uma instituição nacional, a jabuticaba por excelência do sistema financeiro brasileiro: o boleto. Em menos de seis meses, mais de 2 milhões de contas de clientes da operadora TIM foram pagas usando Pix. Ou seja, é uso geral; a população inteira tá usando.
Essa velocidade sugere uma demanda latente que estava pronta para ser suprida. E vamos dar de novo outro passinho para trás: tem algumas ondas tecnológicas que o Brasil não entra de cara, o que, em retrospecto, se mostra ótimo. O atraso tecnológico, em raras vezes, funciona a nosso favor. Foi assim com urna eletrônica, por exemplo: em vez da gente sair do papel para as urnas de alavanca que os EUA adotaram lá atrás e ainda usam, a gente já foi direto para a eletrônica na virada do século. Em termos de pagamentos, o mesmo acontece com os aplicativos de pagamento instantâneo que inundaram os mercados norte-americano e europeu na última década. O principal deles no Ocidente é o Venmo — o Wechat faz o mesmo na China, mas, até aí, o que o WeChat não faz, não é mesmo? O Venmo, que foi comprado pelo PayPal, facilitou as pequenas transações, aquelas diárias que a gente faz com quem a gente mora ou trabalha. Dividir um café, uma conta de luz, uma noite na balada, um táxi… Para fazer isso, até novembro de 2020 no Brasil, você precisava dum DOC ou dum TED. O Venmo tirou totalmente a fricção das transações financeiras e deu um elã de mensagem instantânea ao negócio — você selecionava o valor para quem e mandava uma mensagem pessoal. Pronto. Empreendedores brasileiros até que tentaram emular o Venmo por aqui — uma startup capixaba lançou um aplicativo em 2012 de pagamentos móveis que seguia mais ou menos as pegadas do Venmo. Três anos depois, a holding J&F — que controla, entre outros negócios, a JBS — comprou a startup e a integrou ao Banco Original — era o PicPay, cujo IPO na Nasdaq foi adiado nos próximos meses, depois de uma grande expectativa. Aí entra na discussão uma instituição fundamental para a gente entender o Pix, e o sucesso do Pix, que é o banco. O Pix não só foi abraçado pelos bancos — ele foi incentivado. Hoje a tela inicial dos aplicativos de alguns dos maiores bancos do Brasil dão destaque ao Pix. O que nos leva a pilar básico sobre o qual nós já falamos no Tecnocracia #13: nenhuma tecnologia bancária avança ou financeira no Brasil sem que os bancos explicitamente tenham decidido. Foi assim com os cheques na virada do século XIX, os cartões de crédito e suas máquinas reco-reco na década de 1980, a digitalização das redes de transação, o que levou aos cartões de débito a partir dos anos 1990…
O problema é que a história não para aí. Este episódio da primeira temporada do Tecnocracia argumentava que os bancos estão sob ataque, mas não das fintechs que você normalmente considera na discussão: o risco vem das credenciadoras de cartão de crédito. A ascensão de PagSeguro e Stone na última década atacou uma brecha que o sistema bancário monolítico brasileiro, dividido praticamente em um duopólio privado (Itaú e Bradesco), achava que estava resolvido. A Rede e a Cielo (formadas das costelas de Itaú e Bradesco, respectivamente) nadaram de braçada por tanto tempo que se acostumaram com a ideia da liderança — o mercado da tecnologia já mostrou que essa é uma péssima estratégia. Vindas de dois mercados completamente diferentes, Stone e PagSeguro cresceram como foguetes, abriram capital nos Estados Unidos e, mais do que pressionarem, passaram a valer mais que os líderes com negócios menores, indicativo que o mercado vê ambos como o futuro, e não a Rede e a Cielo. Inclusive, há um boato circulando há anos de que a Stone alguma hora vai assumir a Cielo. O episódio inteiro #13 explica melhor a questão. Vamos lembrar que você está me ouvindo aqui dentro do seu cérebro, mas este roteiro está com todos os links e alguns gráficos impressos em sua glória no Manual do Usuário. Então, se você quer ler alguns desses links, ou ter acesso a algum desses conteúdos mais fácil, é só entrar no Manual do Usuário e procurar pelo roteiro desse episódio. Voltando. O meu ponto é que não houve nenhuma mudança radical na regra que beneficiasse apenas Stone e PagSeguro. Ambas tavam vencendo os bancos no próprio jogo dos bancos, sob suas próprias regras. O que pendeu a balança aí foi uma melhor execução. Foi entender que o modelo que valia quando as regras foram definidas já tinha evoluído, que havia espaço para alguma coisa nova. Os bancos não são bestas, tá, gente? Ninguém chega ao tamanho e à concentração que têm no Brasil hoje sendo ingênuo. O caso das adquirentes de cartão foi o que a Luciana Gimenez chamaria de “cautionary tale”: aquela historinha repassada oralmente para infundir medo no coração dos executivos. Siga os mesmos passos e sofra as consequências. A forma como os bancos adotaram o Pix deixa claro que, nos cenários adiante, mesmo uma transformação dessa escala tende a beneficiá-los. Como? Por facilitar a bancarização dos excluídos e por mostrar também que nenhum deles está dormindo, como estavam dormindo com a ascensão de PagSeguro e Stone.
Para os bancos, o Pix resolve alguns problemas. Um deles é impedir que um Venmo da vida monopolize o setor. Mas talvez o principal é ajudar a trazer para o sistema bancário cerca de 34 milhões de brasileiros que ainda não têm conta bancária, segundo dados do Instituto Locomotiva de janeiro de 2021. Esse grupo, composto principalmente de trabalhadores informais, movimenta um montante financeiro estimado em quase R$ 350 bilhões [trezentos e cinquenta bilhões de reais], equivalente ao PIB inteiro da Croácia. A pandemia forçou uma adoção acelerada — segundo o mesmo Instituto Locomotiva, em 2019 [dois mil e dezenove], o número de não bancarizados era 45 [quarenta e cinco] milhões, hoje são 34 [trinta e quatro]. Usar o Pix é tão fácil que uma parte considerável desse grupo, já dono de celulares, vai ficar mais tentado ou mais tentada a abrir uma conta. Não precisa ser num banco tradicional, pode ser em uma das dezenas de startups criadas na última década para surfar a onda de fintech. Os bancos tradicionais jogam o chamado long game. Em curto prazo, o Pix vai ter um impacto negativo principalmente pela queda nas receitas em curto prazo de DOC e boletos e, em médio e longo prazo, na de cartões de crédito e débito. Esse efeito já começou a ser sentido. Abre aspas para o balanço do Itaú no segundo trimestre de 2021: “na visão comparativa entre os seis primeiros meses do ano, a redução foi de 4,9%, ocasionada por menores receitas com transferências de recursos, além da entrada do Pix”.
A gente vê claramente como o Pix entrou na casa e deitou na cama do DOC e do boleto, principalmente os de valor menor, quando a gente analisa os dados do Banco Central. Em número de transações mensais, o Pix decola e, em março de 2021, já é mais popular que qualquer outro instrumento de transferência de crédito: DOC, TED, boleto e cheque. Lembremos que cartões não são considerados instrumentos de transferência de crédito nesse recorte do Banco Central, tá bom? Só ver o número de transações, porém, é uma armadilha. Se pegarmos os valores, outra história emerge. O crescimento do Pix também é grande, mas aqui ele ocupa a vice-liderança. Quem lidera com uma enorme margem é o TED — você percebeu que lá em cima, no parágrafo anterior, eu só coloquei DOC e boleto entre os alvos de curto prazo do Pix, né? O TED continua e deve continuar a ser o padrão em transferências bancárias de grandes volumes entre pessoas jurídicas, dadas as “transações de altíssimo valor”, nas palavras do Banco Central. Para você ter uma ideia: o montante total transacionado por TED em agosto de 2021, o dado mais recente, foi de pouco mais de R$ 3,2 trilhões [três trilhões de reais]. O do Pix foi de R$ 532 bilhões [meio trilhão], seis vezes menos, só que esse valor já foi maior do que de boletos (R$ 427 bilhões) e DOC + cheques (R$ 64 bilhões). Na média, o valor de cada TED feito em agosto no Brasil foi 60 vezes maior do que cada Pix. Todos estes dados estão no dashboard sobre meios de pagamentos do Banco Central; são dados oficiais.
Se a gente coloca cartões de crédito e débito na roda, o Pix já movimenta mais dinheiro que ambos em volume financeiro. O que ainda não passou é no número de transações. Os dados consolidados mais recentes são do primeiro trimestre.
Vamos voltar a esses novos bancarizados. Esses caras podem entrar no sistema bancário brasileiro pelas novas startups (essa coisa mais um pouco pop) ou pelos bancos tradicionais. A questão é que muitos desses novos bancarizados vão precisar de outros serviços financeiros que não apenas o Pix. A gente já falou isso naquele episódio #13 do Tecnocracia. O banco basicamente é composto por uma instituição que oferece um cardápio de dezenas de serviços financeiros. A gente... Acho que o brasileiro médio usa os principais, né. Tem um ou outro que grande parte das pessoas usa: saque, transferência, crédito... Mas você tem aí um cardápio enorme de coisas que estão sendo ofertadas. Essa é uma restrição ainda dessas startups. As startups que chegam na última década ainda têm um cardápio muito pequeno. As startups conseguem suprir esses novos bancarizados até um limite. As únicas instituições com um cardápio de dezenas de serviços financeiros, de investimento em ações a empréstimo imobiliário, são os bancões. Isso sem contar a capacidade de oferecer condições melhores para empréstimos, um dos seus produtos mais lucrativos, pela gordura financeira mantida há décadas — a maioria das startups têm margens bem menores e são incapazes de brigar nesse preço, como um Itaú, Bradesco ou Santander conseguem. Ter mais gente no sistema aumenta as chances de que, em algum momento, alguns deles precisarão dos serviços dos bancos. Todos os rios aqui correm para o mesmo mar: o da centralização bancária. Ainda que algum player se destaque, os bancos têm bolso fundo e incontáveis trimestres seguidos de lucros gordos para comprá-lo. Do atual cenário de fintech no Brasil, os bancos só não têm mandíbula para morder e estômago para digerir um player: com tanto dinheiro estrangeiro e um IPO já engatilhado nos EUA nos próximos meses, o Nubank deverá se colocar ombro a ombro com o Santander na terceira colocação entre os bancos privados do Brasil. Depois do caso das adquirentes de cartões, da Stone e da PagSeguro, os bancos deram os anéis para não perder os dedos e, lá na frente, voltarem a comprar tantos outros anéis. E isso não é segredo para ninguém: os próximos executivos falam abertamente. “O Pix vai trazer reflexos importantes no mercado financeiro e deve beneficiar o Itaú com a bancarização de uma parte importante da população. Por outro lado, é de se esperar que boa parte dessas pessoas passe a usar o Pix ao invés de TEDs e DOCs. Isso deve ter um impacto inicial nas receitas com conta corrente do banco.