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Podcast do projeto Querino (*Generated Transcript*), 3. Chove chuva - Part 2

3. Chove chuva - Part 2

tinha apenas a bumba, percussão, ela ao compor essa marchinha para o cordão,

ela se antecipa, porque o carnaval, só 18 anos depois, passa a ter música própria,

composta para a festa, com o samba carnavalesco, pelo telefone, em 1917.

Pelo telefone.

Você já deve conhecer as polêmicas envolvendo pelo telefone.

Por muito tempo a música foi reconhecida como o primeiro samba gravado,

mas tinha gente que dizia que não era samba, que era machixe.

E também tinha gente reclamando que apesar do registro ter sido feito pelo donga,

a composição na verdade tinha sido a várias mãos.

Fato é que pelo telefone é um marco da história do Brasil,

porque na época o que mais tinham eram essas criações coletivas,

então os compositores acabavam não sendo reconhecidos nem remunerados por elas.

Ao fazer o registro da partitura, o donga assumiu uma postura de compositor,

de dono da obra, como é hoje em dia.

Ele deu sequência àquilo que a Chiquinha começou.

Mas agora o bicho pegou porque sendo samba ou machixe,

a gente acabou caindo de novo no samba.

E no samba a parada fica séria.

Se a gente pegar a história do samba, por exemplo,

a gente pode pensar uma história de resistência do povo negro dentro do território nacional,

tentando encontrar formas de se relacionar com esse grande significante brasileiro.

A música popular é uma invenção popular, é uma invenção do povo brasileiro,

e sobretudo dos negros.

Se a gente pegar o samba, você tem um povo ali que era escravizado,

que é abandonado nos grandes centros urbanos da cidade, no Rio de Janeiro, em Salvador,

um pouco de São Paulo também, etc.

Que vai criar formas de sobrevivência num estado que as criminalizava

através de diversos mecanismos legais mesmo, né?

Lei da avadiagem, essas coisas.

Vai criar formas de sobrevivência e novas linguagens,

vai criar formas de adaptação de aspectos da sua cultura a uma linguagem moderna.

O Clóvis Moura, grande historiador, sociólogo e intelectual,

chamava isso de cultura de resistência,

algo que é praticado pelos negros no Brasil desde que os primeiros africanos foram desembarcados aqui.

Para além da genialidade da arte, da criação artística,

da necessidade e do desejo de se expressar,

era também um mecanismo de defesa contra a cultura dominante,

aquela que era imposta pelos opressores, pelos brancos.

Empurravam uma única cultura, entre aspas, aceitável sobre o povo negro,

e o povo negro empurrava de volta, e mais forte.

O samba vai ser talvez uma das primeiras formas de linguagem moderna que a gente vai ter no país,

pensando na urbanização e tal, essas coisas.

A música popular brasileira, diferente de outras linguagens,

por exemplo, como a literatura que vai ser importada, vai chegar aqui já formatada,

e a gente vai adaptar, mas ela vem das elites de cima e se impõe para baixo,

a música popular é de criação dos de baixo que se impõem acima.

Empurra que a gente empurra de volta.

O negro brasileiro criou aquilo que nós chamamos de música popular,

é uma criação negra que apresenta aspectos da tradição negra, portanto de uma ancestralidade,

e que no entanto, por ser negra, é ultramoderno e não tradicional.

A contribuição da cultura negra para a música popular brasileira é a sua invenção,

a sua criação. Não fosse, esses sujeitos não haveria.

E daí você lembra de toda aquela história do show do Réveillon, do começo do episódio?

Dá para enxergar meio que uma linha nisso tudo, pensando lá de trás.

Claro que não é uma linha evolutiva, nada disso, só uma ideia de continuidade mesmo,

que uma coisa acaba surgindo por influência da outra.

Primeiro já tinham os povos originários aqui, povos musicais,

daí chegam lá aqueles ritmos europeus, coisa de piano, de cravo,

os africanos pegam aquilo, juntam com tudo que traziam e constroem algo novo,

vem maracatu, jongo, lundu, cateretê, choro, machixe, samba.

Daí a gente tem a genialidade de um Pixinguinha, de uma Clementina de Jesus,

a turma da Bossa Nova bebendo desse samba, se inspirando nele, e esse caminho leva a MPB.

Um guarda-chuva que na teoria reúne toda a diversidade da nossa música,

música popular brasileira, com M, P e B maiúsculos, a nossa Brasilidade.

Montei um curso que estou apresentando que se chama Música Preta Brasileira.

E daí em alguns lugares que eu apresento esse curso, de vez em quando aparece alguém

dizendo, ah, mas por que falar em música preta brasileira?

Música não tem cor, o que existe é a música brasileira.

E aí é muito curioso, como essa ideia de nação serve para eliminar diferenças,

homogeneizar aquilo que seria da ordem de uma pluralidade em conflito.

E aí a gente pensa na identidade negra, na identidade indígena, etc.

Quando se homogeniza algo, geralmente alguma coisa vai ficar de fora.

Tem um texto do Paulo da Costa e Silva, professor e pesquisador,

que deu pra gente a ideia de abrir o episódio com aquela história do show em homenagem ao Tom Jobim.

O Paulo diz lá que tem esse grande guarda-chuva da MPB,

e que esse guarda-chuva tomou emprestada a tradição do samba,

mas nunca se integrou de fato com ela.

Aí ele faz até uma analogia, era como se um temporal caísse no palco na hora do show.

Estava todo mundo embaixo do guarda-chuva, Chico, Caetano, Gal,

mas o Paulinho da Viola, o representante do samba,

estava com o corpo meio pra fora, tomando chuva.

O brasileiro tem esse pressuposto homogenizador que acaba por negar particularidades,

porque ele sabe que é uma forma de ocultar o processo de extermínio ainda em curso da população negra no Brasil.

Mas e se a gente olhasse pra um outro caminho que estava sendo trilhado esse tempo todo?

Um que também veio junto lá de trás, que se associou a essa tradição, a negritude,

mas que a partir de tudo isso criou algo diferente.

Esse caminho está simbolizado em um nome.

Um nome que a gente não falou aqui ainda.

O cara que abriu esses caminhos.

Ele não apenas segue nas transformações da MPB como uma vertente,

mas ele inaugura uma outra vertente que vai desaguar

e uma outra história da música popular brasileira.

Ao realizar o negro enquanto sujeito de si, totalmente sujeito de si próprio,

ele reatualiza a música popular e recria os seus caminhos.

O fundador de uma nova história da música popular brasileira.

Bebendo de tudo que veio antes, valorizando tudo que veio antes,

mas construindo outro futuro.

Afrofuturista.

E ao fazer isso ele reinventa a função do violão, reinventa a função do canto, reinventa a função da voz,

reinventa o imaginário negro.

E é por isso que eu acho mais avançado do que o Pantera Negra.

Porque o Pantera Negra faz isso até certo ponto, mas recoloca o que é mais importante.

Ponto, mas recoloca dentro da lógica do liberalismo norte-americano.

É o negro em liberdade sujeito à dinâmica do capital.

O Jorge Bem não é isso.

É o negro em liberdade plena, nos momentos onde ele consegue alcançar isso.

Jorge Bem Jor.

Eu quero ver quando o zumbi chegar.

O que vai acontecer?

Zumbi é o senhor das guerras, é o senhor das demandas.

Quando o zumbi chega, é zumbi quem manda.

Eu quero ver. Eu quero ver.

Isso que você está ouvindo é a letra de uma música do Jorge Bem Jor.

O nome é Zumbi.

Quem declamou pra gente ao longo do episódio é a Angélica Paulo, jornalista que foi uma das pesquisadoras

e é a produtora do podcast do Projeto Quirino.

Eu sou fascinado por essa música.

O Jorge Bem começa falando os nomes de alguns dos povos africanos que vieram escravizados pro Brasil.

Depois menciona uma princesa africana sendo vendida num leilão de escravizados.

E isso é verdade, a escravidão trouxe integrantes de realezas africanas,

de grandes reinos muito mais antigos, cuja história começou muito antes de português sequer pisar em África.

Daí ele fala dos senhores brancos sentados, sem fazer nada, enquanto todo o trabalho era feito por mãos negras.

E termina com um aviso. Eu ouço até como ameaça.

Eu quero ver quando o zumbi chegar.

Eu quero ver quando o zumbi chegar.

O que vai acontecer.

Uma coisa é pensar o Jorge Bem como um músico da tradição da MPB, da música popular brasileira,

como o Jorge Bem do país tropical, o Jorge Bem da festividade, da grande festa do Brasil, do futebol, etc.

Outra coisa é pensar o Jorge Bem como um músico no interior da música preta brasileira, que traz outras temáticas.

Jorge Bem passa a significar outra coisa.

Uma coisa é pensar o samba a partir dessa ideia de brasilidade.

Samba como carnaval, futebol, nos confirmando, nós todos, pretos, brancos, como uma sociedade mestiça.

Outra coisa é pensar o samba como resistência negra.

E, portanto, em grande medida, contrária a uma série de determinações do Estado Nacional.

Não como uma confirmação do Estado Nacional, mas como uma negação interna ao próprio conceito de identidade nacional.

O Jorge Bem é filho de dois brasileiros, mas os pais da mãe dele são etíopes.

Ele já diz que a mãe dele é filha de nobres africanos que, por um descuido geográfico, nasceu no Brasil.

Dentro dessa tradição da MPB, ela é lida na chave de uma espécie de continuação diferenciada

daquilo que o gesto inaugural do João Gilberto, que é outro gênio, havia criado.

O João Gilberto, que retualiza o samba, ele cria um outro modelo de samba,

e o Jorge Bem também cria um outro modelo de samba, mas muito próximo daquilo que o João Gilberto efetivamente havia feito.

Só que em uma outra linguagem, mais percussiva, então.

Balança a perna, balança sem parar, arrasta as sandálias, arrasta até gastar.

Aliás, a ideia aqui não é colocar o Jorge Bem em oposição ao João Gilberto, muito longe disso.

O Jorge Bem sempre se disse devoto do João Gilberto.

Com o seu vai e vem.

É muito difícil pensar o Jorge Bem sem o João Gilberto, porque o João Gilberto ele meio que inaugura

essa condição de possibilidade que vai ser a MPB.

Se não fosse a revolução do João Gilberto, talvez o Jorge Bem, por exemplo, tivesse necessariamente que fazer samba.

Essa ideia de uma linguagem autoral, essa linguagem autoral ter presença nas gravadoras, como uma aposta e tal,

se deve muito ao sucesso da Bossa Nova, e sobretudo ao que o João Gilberto conseguiu realizar com o violão.

O próprio fato de ser voz e violão, que o Jorge Bem vai começar nesse sentido.

Mas, por outro lado, tudo aquilo que não está no João Gilberto, está no Jorge Bem.

Ele não está pensando na evolução musical, pensado a partir das relações harmônicas,

ele transforma o violão quase num instrumento de percussão.

Como se o violão do Jorge Bem fosse uma espécie de atabaque, que apontasse para tradições, portanto,

que são muito anteriores, mas ao mesmo tempo apontasse para o futuro.

Ele recupera essa tradição negra, que vai estar inscrita no território nacional, muito fortemente,

na música popular brasileira, muito fortemente, e recria isso apontando para um futuro,

uma espécie de futuro de redenção do povo negro.

É por isso também que eu penso que aquela música,

Moro num país tropical, abençoado por Deus,

que foi pensada na época como uma espécie de adesão ao paradigma nacionalista do regime.

Na verdade, o país tropical abençoado por Deus não é o país dos militares,

é o país do povo negro em liberdade, que só existe a partir do território nacional,

mas fora do significante nação, tal como pensado pelos militares.

O país tropical abençoado por Deus é o país dos quilombos dos palmares.

Essa ideia do Jorge Bem como criador de uma mitologia negra,

pensado a partir do amor e não da dor,

pensado para fora daquilo que o colonizador fez do nosso povo,

essa redução do corpo negro, é uma condição de pura materialidade, de pura coisa,

a redução radical da subjetividade ao corpo, como diz o Fanon.

O Jorge Bem consegue criar narrativas do povo negro, das mulheres.

Eu só quero que Deus me ajude a ver meu filho nascer e crescer e ser um campeão.

É um horizonte de liberdade tão grande, tão pensado para fora do que o racismo faz de nós,

que o cara fez um disco sobre alquimia.

Aquele disco ali, o Teme Alquimia,

aquele disco é uma das experiências mais radicais em termos de liberdade temática.

O disco é o A Tábua de Esmeralda, de 74.

Pô, o que é aquilo? Começa com alquimia, depois São Tomás de Aquino,

daí tem música em inglês, tem vários sons, vários ritmos, temáticas,

tudo de acordo com o desejo do sujeito.

É como se o negro, dentro da sociedade brasileira, que é absolutamente racista,

que o racismo está no seu DNA, ele constrói um imaginário

onde o negro pode ser absolutamente qualquer coisa.

Como nós efetivamente podemos ser, mas obviamente que as condições de racialização da sociedade

não permite que nós sejamos.

Mas o imaginário do Jorge Bem consegue alcançar essa liberdade.

O imaginário é a prática musical, efetivamente.

É como se a singularidade que o Jorge Bem atinge naquilo que ele faz na música dele

fosse tão grande que não pudesse ser replicada.

Não dá pra ter um método Jorge Bem, assim como é possível ter o método Bossa Nova,

não é possível ter o método Jorge Bem.

É uma singularidade muito radicalizada.

E essa singularidade alcança, no retorno dessa consciência,

a uma ancestralidade negra.

Porque a música do Jorge Bem é totalmente ancestralidade negra.

Do jeito que ele canta, emulando figuras do candomblé, por exemplo,

no Voxê, no Preto Velho,

nas figuras que ele cria, nas personagens que ele inventa,

nas temáticas que ele aborda.

Essa ideia do Jorge Bem ser uma espécie de criou que realiza essa ponte

entre o passado negro, mas um passado anterior à escravidão.

E ele canaliza essa história em si, no momento mesmo da ilustração.

E ao fazer isso, ele aponta para um horizonte de liberdade via imaginário,

que ressignifica e muda por completo a história da música popular.

Se a Bossa Nova, em alguma medida, a gente pode identificar uma linha de continuidade.

Bossa Nova, Tropicália, Chico Buarque, MPB, depois MPB,

depois MPB mais pop dos anos 90, atravessa no rock,

o Jorge Bem vai desaguar em outras águas.

O Racionais não tem nada a ver com o rap brasileiro,

não tem nada a ver com o João Gilberto,

mas tem tudo a ver com o Jorge Bem.

O black dos anos 70 também, ali,

o próprio Djavan, depois o Pagode Romântico,

o próprio Oxé, em grande medida, vai ter uma relação com a linguagem proposta pelo Jorge Bem,

que, em grande medida, é uma espécie de anti-João Gilberto.

Quando eu penso nesses caminhos abertos pelo Jorge Bem,

isso me leva de novo pra Zumbi,

que é aquela música que a gente ouviu declamada ao longo do episódio.

Aquela versão que a gente já ouviu é a do Tábua de Esmeralda,

mas tem uma regravação completamente diferente

que ele lançou dois anos depois, em 76.

O disco era o África Brasil.

Na Zumbi do África Brasil, ele tá muito mais raivoso, né?

O Jorge Bem não canta com raiva,

o Jorge Bem canta perdoando as dores do mundo,

que é de uma sabedoria ancestral absurda.

O canto da perspectiva de Oxalá, que tá falando ali.

Podem vir, sabemos do que vocês fizeram com a gente, mas tudo bem, podem vir.

Que não quer dizer que tá tudo bem, assim, né?

De, ah, foram perdoados, não é isso.

Mas, assim, bem, aqui é a perspectiva da sabedoria ancestral mesmo, assim.

Geralmente o canto dele é isso.

Agora, no África Brasil, ele tá com raiva.

Eu quero ver o que vai acontecer

Eu quero ver o que vai acontecer

Eu quero ver o que vai acontecer

Quando o Zumbi chegar

Zumbi é senhor das guerras, senhor das demandas

Quando o Zumbi chega e a Zumba é queimada

Eu quero ver, eu quero ver

Salve meu povo, eu quero ver

Quando o Zumbi chegar o que vai acontecer

Zumbi é senhor das guerras

Zumbi é senhor das demandas

Eu quero ver

Dentro dessa ideia de Brasil como um campo de conflito permanente

Onde um lado detém o monopólio da violência

E o outro sobrevive e reinventa formas de vida

Que jamais seriam inventadas pelos povos que tem as armas

Que é o polo branco, obviamente

O mais curioso e perverso, por outro lado, desse movimento

Aquilo que tem de bom no Brasil, que presta no Brasil, é negro

A brasilidade oficial, o Brasil oficial

Produz mecanismos de morte, opressão, violência

E tudo aquilo que é interessante e bom e positivo

É produzido pelo negro que resiste a esse modelo de morte, violência e exclusão

E o que há de perverso nisso é que essas formas de resistência

São frequentemente apropriadas como signos de brasilidade

O povo negro

O povo negro

É a cultura de resistência que o Clóvis Moura dizia

E assim o povo negro se entranhou e fincou o pé não só na música

Mas em outras formas da nossa cultura

Nas artes plásticas, por exemplo

Tinha um importante antropólogo, o Mariano Carneiro da Cunha

Que dizia que o nascimento das artes no Brasil

Tinha uma conexão umbilical com o modo de fazer africano

Ele escreveu que a infiltração do elemento escravo nas artes brasileiras

Coincide com a própria eclosão das mesmas no Brasil

E que o negro contribuiu de modo definitivo

Na desvinculação das artes plásticas brasileiras

De sua tutela metropolitana

Ou seja, foi graças à influência afro-brasileira

Que nasceu uma arte genuinamente brasileira

Não só mais uma reprodução do que vinha de Portugal e da Europa

Cultura de resistência

Eles empurram, a gente empurra de volta

E com mais força

Tem um outro filho dessa diáspora que eu gosto muito

O intelectual estadunidense W.E.B. Du Bois

Em 1903 ele escreveu assim

O cancioneiro negro, o lamento ritmado do escravo

É hoje não só a única música americana

Mas também a mais bela expressão da experiência humana

A surgir deste lado do oceano

Acho que essa frase se aplica perfeitamente ao Brasil

Não só tratando de música

Mas de todas as outras formas de arte e de cultura

Literatura, esculturas, pinturas, dramaturgia

Essas artes forjadas pela experiência afro-brasileira

São a mais bela expressão da experiência humana

A surgir deste lado do oceano

Se você quiser ouvir uma playlist com as músicas tocadas aqui no episódio

Eu postei lá nas minhas redes sociais

Arroba Thiago Rogero no Twitter e no Instagram

O Projeto Quirino é apoiado pelo Instituto Ibiraputanga

O podcast é produzido pela Rádio Novelo

O nosso site projetoquirino.com.br

Reúne todas as informações sobre o projeto e conteúdo adicional

O site foi desenvolvido pela AIE

E eu te convido a conferir também todo o material do Projeto Quirino

Que está sendo publicado pela revista Piauí

Nas bancas e no site da revista

Este episódio teve pesquisa de Gilberto Porcidônio

Rafael Domingos Oliveira e Angélica Paulo

Que também fez a produção e declamou aqui pra gente

A letra de Zumbi do Jorge Benjó

A edição é do Luca Mendes

A sonorização da Júlia Matos

E a finalização da Pipoca Sound

A checagem é do Gilberto Porcidônio

E a música original do Vitor Rodrigues Dias

Estratégia de promoção, distribuição e conteúdo digital

Bia Ribeiro

A identidade visual é do Draco Imagem

Os transcritores das entrevistas foram o Guilherme Póvoas e o Rodolfo Viana

A locução foi gravada no estúdio da Pipoca Sound

Com trabalhos técnicos de Luiz Rodrigues

Consultoria em roteiro de Mariana Jaspe

Paula Escarpim e Flora Thompson Devoe

Com revisão de Natália Silva

Consultoria em história Inaê Lopes dos Santos

Produção executiva Guilherme Alpendre

A execução financeira do projeto é do ISPIS

Instituto Sincronicidade para Interação Social

Idealização, reportagem, roteiro, apresentação e coordenação

Thiago Rogero

Este episódio usou áudios do projeto Discografia Brasileira

Do Instituto Moreira Salles e da TV Globo

Agradecimentos a Bia Paisleme, Marcelo Araújo, João Fernandes

Viviana Santiago e Renata Bittencourt do IMS

E também ao Paulo da Costa e Silva

As músicas usadas no episódio foram, na ordem que apareceram aqui

De Ouro e Marfim, do Gilberto Gil, interpretada pelo Gilberto Gil

Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, interpretada pelo Caetano Veloso

Anos Dourados, de Tom Jobim e Chico Buarque, interpretada pelo Chico Buarque

Se Todos Fossem Iguais a Você, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes

Interpretada pelo Paulinho da Viola e pela Gal Costa

Estrada do Sol, de Tom Jobim e Dolores Duran, interpretada pelo Milton Nascimento

Todas essas músicas foram interpretadas ao vivo na Praia de Copacabana, em 95

Seguindo com as músicas Sem Ela, de Raul Marques e Alberto Ribeiro

E Anjo Cruel, de Wilson Batista e Alberto Ribeiro

Interpretadas pelo João Gilberto e Os Garotos da Lua, em 51

Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes

Interpretada pela Elisete Cardoso para a gravadora Festa, em 58

E uma outra versão de Chega de Saudade, interpretada pelo João Gilberto

Para a gravadora Odeon, também em 58

Saudade fez um samba, de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli

Interpretada pelo João Gilberto para a gravadora Odeon, em 58

Samba de Uma Nota Só, de Tom Jobim e Newton Mendonça

Interpretada pelo João Gilberto para a gravadora Odeon, em 60

Samba da Minha Terra, de Dorival Caymmi

Interpretada pelo João Gilberto para a gravadora Odeon, em 61

Dias, Santificatos e Abertura em Ré, do padre José Maurício

Interpretadas por Vox Brasilienses e Ricardo Kanji

Para a gravadora Faya Music, em 2017

Beijo à Mão que Me Condena, do padre José Maurício

Interpretada por Orquestra e Coro Vox Brasilienses e Ricardo Kanji, em 2019

Valsa Andaluza, de Arthur Camilo

Interpretada por Arthur Camilo, em 1905

Pouca Marcha, de João de Almeida

Interpretada pela banda da Casa Edson, em 1909

O Malaquias, de M. Malaquias

Interpretada pela banda Escudeiro, em 1913

É o A Calunga, de Capiba

Interpretada por Mara e a Orquestra Colômbia do Rio de Janeiro, em 1937

Só com a ajuda do Santo, de Lequinho, Junior Fionda, Flavinho Horta, Gabriel Martins e Igor Leal

Interpretada pela Estação Primeira de Mangueira, Sigar Nerey e Milton Gonçalves

Para a gravadora Universal Music, em 2016

Sincopado Triste, de Ianto de Almeida e Macedo Neto

Interpretada pela Elisete Cardoso para a gravadora Copacabana, em 1960

Bolimbalacho, interpretada por Manuel Pedro dos Santos, o baiano, em 1902

Quebra-cabeças, de Ernesto Nazaré

Interpretada pela Orquestra Pan American, em 1927

Felicidade, de Zé Cavaquinho

Interpretada pelo Grupo do Malaquias, em 1904

Será Possível, interpretada pela Banda da Casa Edson, em 1902

Atraente, de Chiquinha Gonzaga

Interpretada por Chiquinha Gonzaga e pelo Grupo Chiquinha Gonzaga, em 1910

Corta-jaca, de Chiquinha Gonzaga e Machado Careca

Interpretada por Peppa Delgado e Mário Pinheiro, em 1906

Ou Abre Alas, de Chiquinha Gonzaga

Interpretada pela Orquestra Sinfônica Juvenil Chiquinha Gonzaga, em 2021

Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida

Interpretada pelo baiano, em 1917

Zumbi, de Jorge Benjor

Interpretada pelo Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1974

Balança Pema e Chove-chuva, de Jorge Benjor

Interpretadas por Jorge Benjor, para a gravadora Phillips, em 1963

Menina, mulher da pele preta, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1974

Pais Tropical, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Odéon, em 1969

Negro é lindo, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1971

5 Minutos, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1974

Mais que nada, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1963

Jorge da Capadócia, de Jorge Benjor

Interpretada pelos Racionais MCs, para a gravadora Coça Nostra, em 1998

A Gama Mold, de Leandro Learte

Interpretada pelo Arte Popular e pelo Jorge Benjor, para a gravadora Virgin, em 2000

E a África Brasil Zumbi, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1976

Até o próximo episódio!

3. Chove chuva - Part 2 3. Chove chuva chuva - Teil 2 3. Chove chuva chuva - Part 2 3. Lluvia, lluvia, lluvia - Parte 2 3. Pioggia pioggia pioggia - Parte 2

tinha apenas a bumba, percussão, ela ao compor essa marchinha para o cordão,

ela se antecipa, porque o carnaval, só 18 anos depois, passa a ter música própria,

composta para a festa, com o samba carnavalesco, pelo telefone, em 1917.

Pelo telefone.

Você já deve conhecer as polêmicas envolvendo pelo telefone.

Por muito tempo a música foi reconhecida como o primeiro samba gravado,

mas tinha gente que dizia que não era samba, que era machixe.

E também tinha gente reclamando que apesar do registro ter sido feito pelo donga,

a composição na verdade tinha sido a várias mãos.

Fato é que pelo telefone é um marco da história do Brasil,

porque na época o que mais tinham eram essas criações coletivas,

então os compositores acabavam não sendo reconhecidos nem remunerados por elas.

Ao fazer o registro da partitura, o donga assumiu uma postura de compositor,

de dono da obra, como é hoje em dia.

Ele deu sequência àquilo que a Chiquinha começou.

Mas agora o bicho pegou porque sendo samba ou machixe,

a gente acabou caindo de novo no samba.

E no samba a parada fica séria.

Se a gente pegar a história do samba, por exemplo,

a gente pode pensar uma história de resistência do povo negro dentro do território nacional,

tentando encontrar formas de se relacionar com esse grande significante brasileiro.

A música popular é uma invenção popular, é uma invenção do povo brasileiro,

e sobretudo dos negros.

Se a gente pegar o samba, você tem um povo ali que era escravizado,

que é abandonado nos grandes centros urbanos da cidade, no Rio de Janeiro, em Salvador,

um pouco de São Paulo também, etc.

Que vai criar formas de sobrevivência num estado que as criminalizava

através de diversos mecanismos legais mesmo, né?

Lei da avadiagem, essas coisas.

Vai criar formas de sobrevivência e novas linguagens,

vai criar formas de adaptação de aspectos da sua cultura a uma linguagem moderna.

O Clóvis Moura, grande historiador, sociólogo e intelectual,

chamava isso de cultura de resistência,

algo que é praticado pelos negros no Brasil desde que os primeiros africanos foram desembarcados aqui.

Para além da genialidade da arte, da criação artística,

da necessidade e do desejo de se expressar,

era também um mecanismo de defesa contra a cultura dominante,

aquela que era imposta pelos opressores, pelos brancos.

Empurravam uma única cultura, entre aspas, aceitável sobre o povo negro,

e o povo negro empurrava de volta, e mais forte.

O samba vai ser talvez uma das primeiras formas de linguagem moderna que a gente vai ter no país,

pensando na urbanização e tal, essas coisas.

A música popular brasileira, diferente de outras linguagens,

por exemplo, como a literatura que vai ser importada, vai chegar aqui já formatada,

e a gente vai adaptar, mas ela vem das elites de cima e se impõe para baixo,

a música popular é de criação dos de baixo que se impõem acima.

Empurra que a gente empurra de volta.

O negro brasileiro criou aquilo que nós chamamos de música popular,

é uma criação negra que apresenta aspectos da tradição negra, portanto de uma ancestralidade,

e que no entanto, por ser negra, é ultramoderno e não tradicional.

A contribuição da cultura negra para a música popular brasileira é a sua invenção,

a sua criação. Não fosse, esses sujeitos não haveria.

E daí você lembra de toda aquela história do show do Réveillon, do começo do episódio?

Dá para enxergar meio que uma linha nisso tudo, pensando lá de trás.

Claro que não é uma linha evolutiva, nada disso, só uma ideia de continuidade mesmo,

que uma coisa acaba surgindo por influência da outra.

Primeiro já tinham os povos originários aqui, povos musicais,

daí chegam lá aqueles ritmos europeus, coisa de piano, de cravo,

os africanos pegam aquilo, juntam com tudo que traziam e constroem algo novo,

vem maracatu, jongo, lundu, cateretê, choro, machixe, samba.

Daí a gente tem a genialidade de um Pixinguinha, de uma Clementina de Jesus,

a turma da Bossa Nova bebendo desse samba, se inspirando nele, e esse caminho leva a MPB.

Um guarda-chuva que na teoria reúne toda a diversidade da nossa música,

música popular brasileira, com M, P e B maiúsculos, a nossa Brasilidade.

Montei um curso que estou apresentando que se chama Música Preta Brasileira.

E daí em alguns lugares que eu apresento esse curso, de vez em quando aparece alguém

dizendo, ah, mas por que falar em música preta brasileira?

Música não tem cor, o que existe é a música brasileira.

E aí é muito curioso, como essa ideia de nação serve para eliminar diferenças,

homogeneizar aquilo que seria da ordem de uma pluralidade em conflito.

E aí a gente pensa na identidade negra, na identidade indígena, etc.

Quando se homogeniza algo, geralmente alguma coisa vai ficar de fora.

Tem um texto do Paulo da Costa e Silva, professor e pesquisador,

que deu pra gente a ideia de abrir o episódio com aquela história do show em homenagem ao Tom Jobim.

O Paulo diz lá que tem esse grande guarda-chuva da MPB,

e que esse guarda-chuva tomou emprestada a tradição do samba,

mas nunca se integrou de fato com ela.

Aí ele faz até uma analogia, era como se um temporal caísse no palco na hora do show.

Estava todo mundo embaixo do guarda-chuva, Chico, Caetano, Gal,

mas o Paulinho da Viola, o representante do samba,

estava com o corpo meio pra fora, tomando chuva.

O brasileiro tem esse pressuposto homogenizador que acaba por negar particularidades,

porque ele sabe que é uma forma de ocultar o processo de extermínio ainda em curso da população negra no Brasil.

Mas e se a gente olhasse pra um outro caminho que estava sendo trilhado esse tempo todo?

Um que também veio junto lá de trás, que se associou a essa tradição, a negritude,

mas que a partir de tudo isso criou algo diferente.

Esse caminho está simbolizado em um nome.

Um nome que a gente não falou aqui ainda.

O cara que abriu esses caminhos.

Ele não apenas segue nas transformações da MPB como uma vertente,

mas ele inaugura uma outra vertente que vai desaguar

e uma outra história da música popular brasileira.

Ao realizar o negro enquanto sujeito de si, totalmente sujeito de si próprio,

ele reatualiza a música popular e recria os seus caminhos.

O fundador de uma nova história da música popular brasileira.

Bebendo de tudo que veio antes, valorizando tudo que veio antes,

mas construindo outro futuro.

Afrofuturista.

E ao fazer isso ele reinventa a função do violão, reinventa a função do canto, reinventa a função da voz,

reinventa o imaginário negro.

E é por isso que eu acho mais avançado do que o Pantera Negra.

Porque o Pantera Negra faz isso até certo ponto, mas recoloca o que é mais importante.

Ponto, mas recoloca dentro da lógica do liberalismo norte-americano.

É o negro em liberdade sujeito à dinâmica do capital.

O Jorge Bem não é isso.

É o negro em liberdade plena, nos momentos onde ele consegue alcançar isso.

Jorge Bem Jor.

Eu quero ver quando o zumbi chegar.

O que vai acontecer?

Zumbi é o senhor das guerras, é o senhor das demandas.

Quando o zumbi chega, é zumbi quem manda.

Eu quero ver. Eu quero ver.

Isso que você está ouvindo é a letra de uma música do Jorge Bem Jor.

O nome é Zumbi.

Quem declamou pra gente ao longo do episódio é a Angélica Paulo, jornalista que foi uma das pesquisadoras

e é a produtora do podcast do Projeto Quirino.

Eu sou fascinado por essa música.

O Jorge Bem começa falando os nomes de alguns dos povos africanos que vieram escravizados pro Brasil.

Depois menciona uma princesa africana sendo vendida num leilão de escravizados.

E isso é verdade, a escravidão trouxe integrantes de realezas africanas,

de grandes reinos muito mais antigos, cuja história começou muito antes de português sequer pisar em África.

Daí ele fala dos senhores brancos sentados, sem fazer nada, enquanto todo o trabalho era feito por mãos negras.

E termina com um aviso. Eu ouço até como ameaça.

Eu quero ver quando o zumbi chegar.

Eu quero ver quando o zumbi chegar.

O que vai acontecer.

Uma coisa é pensar o Jorge Bem como um músico da tradição da MPB, da música popular brasileira,

como o Jorge Bem do país tropical, o Jorge Bem da festividade, da grande festa do Brasil, do futebol, etc.

Outra coisa é pensar o Jorge Bem como um músico no interior da música preta brasileira, que traz outras temáticas.

Jorge Bem passa a significar outra coisa.

Uma coisa é pensar o samba a partir dessa ideia de brasilidade.

Samba como carnaval, futebol, nos confirmando, nós todos, pretos, brancos, como uma sociedade mestiça.

Outra coisa é pensar o samba como resistência negra.

E, portanto, em grande medida, contrária a uma série de determinações do Estado Nacional.

Não como uma confirmação do Estado Nacional, mas como uma negação interna ao próprio conceito de identidade nacional.

O Jorge Bem é filho de dois brasileiros, mas os pais da mãe dele são etíopes.

Ele já diz que a mãe dele é filha de nobres africanos que, por um descuido geográfico, nasceu no Brasil.

Dentro dessa tradição da MPB, ela é lida na chave de uma espécie de continuação diferenciada

daquilo que o gesto inaugural do João Gilberto, que é outro gênio, havia criado.

O João Gilberto, que retualiza o samba, ele cria um outro modelo de samba,

e o Jorge Bem também cria um outro modelo de samba, mas muito próximo daquilo que o João Gilberto efetivamente havia feito.

Só que em uma outra linguagem, mais percussiva, então.

Balança a perna, balança sem parar, arrasta as sandálias, arrasta até gastar.

Aliás, a ideia aqui não é colocar o Jorge Bem em oposição ao João Gilberto, muito longe disso.

O Jorge Bem sempre se disse devoto do João Gilberto.

Com o seu vai e vem.

É muito difícil pensar o Jorge Bem sem o João Gilberto, porque o João Gilberto ele meio que inaugura

essa condição de possibilidade que vai ser a MPB.

Se não fosse a revolução do João Gilberto, talvez o Jorge Bem, por exemplo, tivesse necessariamente que fazer samba.

Essa ideia de uma linguagem autoral, essa linguagem autoral ter presença nas gravadoras, como uma aposta e tal,

se deve muito ao sucesso da Bossa Nova, e sobretudo ao que o João Gilberto conseguiu realizar com o violão.

O próprio fato de ser voz e violão, que o Jorge Bem vai começar nesse sentido.

Mas, por outro lado, tudo aquilo que não está no João Gilberto, está no Jorge Bem.

Ele não está pensando na evolução musical, pensado a partir das relações harmônicas,

ele transforma o violão quase num instrumento de percussão.

Como se o violão do Jorge Bem fosse uma espécie de atabaque, que apontasse para tradições, portanto,

que são muito anteriores, mas ao mesmo tempo apontasse para o futuro.

Ele recupera essa tradição negra, que vai estar inscrita no território nacional, muito fortemente,

na música popular brasileira, muito fortemente, e recria isso apontando para um futuro,

uma espécie de futuro de redenção do povo negro.

É por isso também que eu penso que aquela música,

Moro num país tropical, abençoado por Deus,

que foi pensada na época como uma espécie de adesão ao paradigma nacionalista do regime.

Na verdade, o país tropical abençoado por Deus não é o país dos militares,

é o país do povo negro em liberdade, que só existe a partir do território nacional,

mas fora do significante nação, tal como pensado pelos militares.

O país tropical abençoado por Deus é o país dos quilombos dos palmares.

Essa ideia do Jorge Bem como criador de uma mitologia negra,

pensado a partir do amor e não da dor,

pensado para fora daquilo que o colonizador fez do nosso povo,

essa redução do corpo negro, é uma condição de pura materialidade, de pura coisa,

a redução radical da subjetividade ao corpo, como diz o Fanon.

O Jorge Bem consegue criar narrativas do povo negro, das mulheres.

Eu só quero que Deus me ajude a ver meu filho nascer e crescer e ser um campeão.

É um horizonte de liberdade tão grande, tão pensado para fora do que o racismo faz de nós,

que o cara fez um disco sobre alquimia.

Aquele disco ali, o Teme Alquimia,

aquele disco é uma das experiências mais radicais em termos de liberdade temática.

O disco é o A Tábua de Esmeralda, de 74.

Pô, o que é aquilo? Começa com alquimia, depois São Tomás de Aquino,

daí tem música em inglês, tem vários sons, vários ritmos, temáticas,

tudo de acordo com o desejo do sujeito.

É como se o negro, dentro da sociedade brasileira, que é absolutamente racista,

que o racismo está no seu DNA, ele constrói um imaginário

onde o negro pode ser absolutamente qualquer coisa.

Como nós efetivamente podemos ser, mas obviamente que as condições de racialização da sociedade

não permite que nós sejamos.

Mas o imaginário do Jorge Bem consegue alcançar essa liberdade.

O imaginário é a prática musical, efetivamente.

É como se a singularidade que o Jorge Bem atinge naquilo que ele faz na música dele

fosse tão grande que não pudesse ser replicada.

Não dá pra ter um método Jorge Bem, assim como é possível ter o método Bossa Nova,

não é possível ter o método Jorge Bem.

É uma singularidade muito radicalizada.

E essa singularidade alcança, no retorno dessa consciência,

a uma ancestralidade negra.

Porque a música do Jorge Bem é totalmente ancestralidade negra.

Do jeito que ele canta, emulando figuras do candomblé, por exemplo,

no Voxê, no Preto Velho,

nas figuras que ele cria, nas personagens que ele inventa,

nas temáticas que ele aborda.

Essa ideia do Jorge Bem ser uma espécie de criou que realiza essa ponte

entre o passado negro, mas um passado anterior à escravidão.

E ele canaliza essa história em si, no momento mesmo da ilustração.

E ao fazer isso, ele aponta para um horizonte de liberdade via imaginário,

que ressignifica e muda por completo a história da música popular.

Se a Bossa Nova, em alguma medida, a gente pode identificar uma linha de continuidade.

Bossa Nova, Tropicália, Chico Buarque, MPB, depois MPB,

depois MPB mais pop dos anos 90, atravessa no rock,

o Jorge Bem vai desaguar em outras águas.

O Racionais não tem nada a ver com o rap brasileiro,

não tem nada a ver com o João Gilberto,

mas tem tudo a ver com o Jorge Bem.

O black dos anos 70 também, ali,

o próprio Djavan, depois o Pagode Romântico,

o próprio Oxé, em grande medida, vai ter uma relação com a linguagem proposta pelo Jorge Bem,

que, em grande medida, é uma espécie de anti-João Gilberto.

Quando eu penso nesses caminhos abertos pelo Jorge Bem,

isso me leva de novo pra Zumbi,

que é aquela música que a gente ouviu declamada ao longo do episódio.

Aquela versão que a gente já ouviu é a do Tábua de Esmeralda,

mas tem uma regravação completamente diferente

que ele lançou dois anos depois, em 76.

O disco era o África Brasil.

Na Zumbi do África Brasil, ele tá muito mais raivoso, né?

O Jorge Bem não canta com raiva,

o Jorge Bem canta perdoando as dores do mundo,

que é de uma sabedoria ancestral absurda.

O canto da perspectiva de Oxalá, que tá falando ali.

Podem vir, sabemos do que vocês fizeram com a gente, mas tudo bem, podem vir.

Que não quer dizer que tá tudo bem, assim, né?

De, ah, foram perdoados, não é isso.

Mas, assim, bem, aqui é a perspectiva da sabedoria ancestral mesmo, assim.

Geralmente o canto dele é isso.

Agora, no África Brasil, ele tá com raiva.

Eu quero ver o que vai acontecer

Eu quero ver o que vai acontecer

Eu quero ver o que vai acontecer

Quando o Zumbi chegar

Zumbi é senhor das guerras, senhor das demandas

Quando o Zumbi chega e a Zumba é queimada

Eu quero ver, eu quero ver

Salve meu povo, eu quero ver

Quando o Zumbi chegar o que vai acontecer

Zumbi é senhor das guerras

Zumbi é senhor das demandas

Eu quero ver

Dentro dessa ideia de Brasil como um campo de conflito permanente

Onde um lado detém o monopólio da violência

E o outro sobrevive e reinventa formas de vida

Que jamais seriam inventadas pelos povos que tem as armas

Que é o polo branco, obviamente

O mais curioso e perverso, por outro lado, desse movimento

Aquilo que tem de bom no Brasil, que presta no Brasil, é negro

A brasilidade oficial, o Brasil oficial

Produz mecanismos de morte, opressão, violência

E tudo aquilo que é interessante e bom e positivo

É produzido pelo negro que resiste a esse modelo de morte, violência e exclusão

E o que há de perverso nisso é que essas formas de resistência

São frequentemente apropriadas como signos de brasilidade

O povo negro

O povo negro

É a cultura de resistência que o Clóvis Moura dizia

E assim o povo negro se entranhou e fincou o pé não só na música

Mas em outras formas da nossa cultura

Nas artes plásticas, por exemplo

Tinha um importante antropólogo, o Mariano Carneiro da Cunha

Que dizia que o nascimento das artes no Brasil

Tinha uma conexão umbilical com o modo de fazer africano

Ele escreveu que a infiltração do elemento escravo nas artes brasileiras

Coincide com a própria eclosão das mesmas no Brasil

E que o negro contribuiu de modo definitivo

Na desvinculação das artes plásticas brasileiras

De sua tutela metropolitana

Ou seja, foi graças à influência afro-brasileira

Que nasceu uma arte genuinamente brasileira

Não só mais uma reprodução do que vinha de Portugal e da Europa

Cultura de resistência

Eles empurram, a gente empurra de volta

E com mais força

Tem um outro filho dessa diáspora que eu gosto muito

O intelectual estadunidense W.E.B. Du Bois

Em 1903 ele escreveu assim

O cancioneiro negro, o lamento ritmado do escravo

É hoje não só a única música americana

Mas também a mais bela expressão da experiência humana

A surgir deste lado do oceano

Acho que essa frase se aplica perfeitamente ao Brasil

Não só tratando de música

Mas de todas as outras formas de arte e de cultura

Literatura, esculturas, pinturas, dramaturgia

Essas artes forjadas pela experiência afro-brasileira

São a mais bela expressão da experiência humana

A surgir deste lado do oceano

Se você quiser ouvir uma playlist com as músicas tocadas aqui no episódio

Eu postei lá nas minhas redes sociais

Arroba Thiago Rogero no Twitter e no Instagram

O Projeto Quirino é apoiado pelo Instituto Ibiraputanga

O podcast é produzido pela Rádio Novelo

O nosso site projetoquirino.com.br

Reúne todas as informações sobre o projeto e conteúdo adicional

O site foi desenvolvido pela AIE

E eu te convido a conferir também todo o material do Projeto Quirino

Que está sendo publicado pela revista Piauí

Nas bancas e no site da revista

Este episódio teve pesquisa de Gilberto Porcidônio

Rafael Domingos Oliveira e Angélica Paulo

Que também fez a produção e declamou aqui pra gente

A letra de Zumbi do Jorge Benjó

A edição é do Luca Mendes

A sonorização da Júlia Matos

E a finalização da Pipoca Sound

A checagem é do Gilberto Porcidônio

E a música original do Vitor Rodrigues Dias

Estratégia de promoção, distribuição e conteúdo digital

Bia Ribeiro

A identidade visual é do Draco Imagem

Os transcritores das entrevistas foram o Guilherme Póvoas e o Rodolfo Viana

A locução foi gravada no estúdio da Pipoca Sound

Com trabalhos técnicos de Luiz Rodrigues

Consultoria em roteiro de Mariana Jaspe

Paula Escarpim e Flora Thompson Devoe

Com revisão de Natália Silva

Consultoria em história Inaê Lopes dos Santos

Produção executiva Guilherme Alpendre

A execução financeira do projeto é do ISPIS

Instituto Sincronicidade para Interação Social

Idealização, reportagem, roteiro, apresentação e coordenação

Thiago Rogero

Este episódio usou áudios do projeto Discografia Brasileira

Do Instituto Moreira Salles e da TV Globo

Agradecimentos a Bia Paisleme, Marcelo Araújo, João Fernandes

Viviana Santiago e Renata Bittencourt do IMS

E também ao Paulo da Costa e Silva

As músicas usadas no episódio foram, na ordem que apareceram aqui

De Ouro e Marfim, do Gilberto Gil, interpretada pelo Gilberto Gil

Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, interpretada pelo Caetano Veloso

Anos Dourados, de Tom Jobim e Chico Buarque, interpretada pelo Chico Buarque

Se Todos Fossem Iguais a Você, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes

Interpretada pelo Paulinho da Viola e pela Gal Costa

Estrada do Sol, de Tom Jobim e Dolores Duran, interpretada pelo Milton Nascimento

Todas essas músicas foram interpretadas ao vivo na Praia de Copacabana, em 95

Seguindo com as músicas Sem Ela, de Raul Marques e Alberto Ribeiro

E Anjo Cruel, de Wilson Batista e Alberto Ribeiro

Interpretadas pelo João Gilberto e Os Garotos da Lua, em 51

Chega de Saudade, de Tom Jobim e Vinícius de Moraes

Interpretada pela Elisete Cardoso para a gravadora Festa, em 58

E uma outra versão de Chega de Saudade, interpretada pelo João Gilberto

Para a gravadora Odeon, também em 58

Saudade fez um samba, de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli

Interpretada pelo João Gilberto para a gravadora Odeon, em 58

Samba de Uma Nota Só, de Tom Jobim e Newton Mendonça

Interpretada pelo João Gilberto para a gravadora Odeon, em 60

Samba da Minha Terra, de Dorival Caymmi

Interpretada pelo João Gilberto para a gravadora Odeon, em 61

Dias, Santificatos e Abertura em Ré, do padre José Maurício

Interpretadas por Vox Brasilienses e Ricardo Kanji

Para a gravadora Faya Music, em 2017

Beijo à Mão que Me Condena, do padre José Maurício

Interpretada por Orquestra e Coro Vox Brasilienses e Ricardo Kanji, em 2019

Valsa Andaluza, de Arthur Camilo

Interpretada por Arthur Camilo, em 1905

Pouca Marcha, de João de Almeida

Interpretada pela banda da Casa Edson, em 1909

O Malaquias, de M. Malaquias

Interpretada pela banda Escudeiro, em 1913

É o A Calunga, de Capiba

Interpretada por Mara e a Orquestra Colômbia do Rio de Janeiro, em 1937

Só com a ajuda do Santo, de Lequinho, Junior Fionda, Flavinho Horta, Gabriel Martins e Igor Leal

Interpretada pela Estação Primeira de Mangueira, Sigar Nerey e Milton Gonçalves

Para a gravadora Universal Music, em 2016

Sincopado Triste, de Ianto de Almeida e Macedo Neto

Interpretada pela Elisete Cardoso para a gravadora Copacabana, em 1960

Bolimbalacho, interpretada por Manuel Pedro dos Santos, o baiano, em 1902

Quebra-cabeças, de Ernesto Nazaré

Interpretada pela Orquestra Pan American, em 1927

Felicidade, de Zé Cavaquinho

Interpretada pelo Grupo do Malaquias, em 1904

Será Possível, interpretada pela Banda da Casa Edson, em 1902

Atraente, de Chiquinha Gonzaga

Interpretada por Chiquinha Gonzaga e pelo Grupo Chiquinha Gonzaga, em 1910

Corta-jaca, de Chiquinha Gonzaga e Machado Careca

Interpretada por Peppa Delgado e Mário Pinheiro, em 1906

Ou Abre Alas, de Chiquinha Gonzaga

Interpretada pela Orquestra Sinfônica Juvenil Chiquinha Gonzaga, em 2021

Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida

Interpretada pelo baiano, em 1917

Zumbi, de Jorge Benjor

Interpretada pelo Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1974

Balança Pema e Chove-chuva, de Jorge Benjor

Interpretadas por Jorge Benjor, para a gravadora Phillips, em 1963

Menina, mulher da pele preta, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1974

Pais Tropical, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Odéon, em 1969

Negro é lindo, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1971

5 Minutos, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1974

Mais que nada, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1963

Jorge da Capadócia, de Jorge Benjor

Interpretada pelos Racionais MCs, para a gravadora Coça Nostra, em 1998

A Gama Mold, de Leandro Learte

Interpretada pelo Arte Popular e pelo Jorge Benjor, para a gravadora Virgin, em 2000

E a África Brasil Zumbi, de Jorge Benjor

Interpretada por Jorge Benjor, para a gravadora Philips, em 1976

Até o próximo episódio!