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Podcast do projeto Querino (*Generated Transcript*), 6. A cor dos faraós - Part 2

6. A cor dos faraós - Part 2

veio o Código Penal. E o Código Penal colocou como crime à saúde pública a prática do

espiritismo, da magia e dos seus sortilégios, além do uso de talismãs e de cartomancias.

De maneira geral, tudo que não fosse uma religião cristã entrava nessa categoria

aí. Na história do país, se teve sempre um

grupo religioso que é perseguido pelo Estado, na colônia do Império e no início da República,

e que perdurou para depois da República. Tanto que esses objetos sagrados hoje que

estão no Museu da República, eu costumo dizer que é a maior prova concreta de como

o Estado republicano nos tratou até hoje. No começo do século passado, a própria imprensa

comemorava os ataques da polícia aos cultos de matriz africana. Os jornais chamavam de

limpeza. A Polícia Civil do Rio tinha uma delegacia só para lidar com esse tipo de

caso. Durante décadas, a polícia apreendia objetos religiosos e por outras tantas décadas

e até muito recentemente, essas peças sagradas eram expostas num museu de magia negra. Esse

era o nome. Até que a campanha Liberte Nosso Sagrado conseguiu que todo o material fosse

transferido para o Museu da República, em 2020. Nos últimos 30 anos, o Estado deixou ele

diretamente de perseguir. E há isso hoje, os neopentecostais. E essa afeição vem desses

grupos, mas com a omissão do Estado. E aí a gente chega a este momento atual.

No interior de São Paulo, uma mãe chegou a perder a guarda da filha de 12 anos depois

de denúncias de maus tratos e abuso num ritual de iniciação ao candomblé.

A decisão levou em consideração acusações feitas pela avó materna da criança que não foram comprovadas.

O executivo e também boa parcela do judiciário se omite diante do combate sistemático que é feito

contra os cultos afro-brasileiros. Sistemático. E a coisa escalou a tal ponto que agora está acontecendo isso aqui.

Traficantes estão impedindo o terreiro de um bando de candomblé de funcionar. Os espaços são invadidos

e predados pelos bandidos. Neste muro, a inscrição, Jesus é dono deste lugar.

E como chegou o absurdo de você ter casas nossas sendo queimadas, sacerdotes sendo assassinados,

tráfico de droga evangelizada, que é uma coisa que nunca se pensou em ter, que expulsa e que obriga

as pessoas a destruir o seu próprio sagrado. E tudo isso em silêncio. Eu não tenho dúvida se fosse contra

outro grupo ou se agiria mais rápido. Então essa liberdade para nós nunca existiu.

Nessa perseguição recente às religiões de matriz africana, especialmente nos casos em que os ataques

foram promovidos por evangélicos, tem uma coisa que pega demais para mim.

A quantidade de gente negra que está nas igrejas evangélicas.

Aliás, dizer evangélicos é uma forma de generalizar. São muitas denominações diferentes e daqui a pouco

a gente vai falar sobre elas. Inclusive muitas pessoas dessas religiões preferem usar o termo

cristãos. Mas como o IBGE usa evangélicos, a gente vai manter essa denominação aqui só para ficar

mais simples, já que em cristãos entram também os católicos, enfim. E pensando nos evangélicos,

a maioria é negra. Pretos e pardos, 59%, segundo uma pesquisa de 2020 do Data Folha.

É mais do que a proporção geral de negros na população brasileira, que fica ali entre 54% e 56%.

E tem um pastor negro, o nome dele é Marco David Oliveira. Bom, deixa ele se apresentar.

Eu sou o Marco David Oliveira, sou pastor da denominação Batista, sou pastor da nossa

igreja brasileira, a Igreja Batista. Ele escreveu o livro A religião mais negra do Brasil,

por que os negros fazem opção pelo pentecostalismo?

Porque na verdade, assim, a gente pensar dos negros e negras religiosos,

eles estão nas igrejas evangélicas. É óbvio que a maioria é católica,

mas quando eu falo que a religião mais negra do Brasil é igreja evangélica,

eu não estou falando de simplesmente crentes nominais ou católicos nominais.

Eu sou católico, nunca vou à igreja, não participo de absolutamente nada, mas sou católico.

Na igreja evangélica não é isso. Então, nesse sentido que eu falo que

a religião mais negra do Brasil é igreja evangélica.

O começo das igrejas evangélicas no Brasil foi no século XIX,

primeiro com o que é conhecido como protestantismo de imigração.

Os anglicanos, ingleses e luteranos alemães que vieram ali na primeira metade do século.

Depois teve o protestantismo de missão, que eram missionários vindos principalmente dos Estados Unidos.

Presbiterianos, metodistas, batistas. Nessa leva acabou vindo gente do sul dos Estados Unidos, inclusive.

O sul escravista, dos confederados que queriam a todo custo manter a escravidão,

mas que perderam a guerra civil. Daí muitos deles vieram parar no Brasil.

E essas todas são as chamadas igrejas históricas dentro das evangélicas.

Aí lá nos Estados Unidos também surgiu a igreja pentecostal.

Pentecostes era uma festa da colheita. Então as pessoas se reuniram lá de diversas nacionalidades,

vários africanos e tal. Várias pessoas se reuniram lá para essa festa.

Quando Jesus Cristo terminou a sua missão e foi torturado e crucificado,

ele ressuscitou e prometeu aos discípulos o Espírito Santo.

E a chegada do Espírito Santo aconteceu nesse dia de Pentecostes.

E qual foi a evidência disso?

É que as pessoas começaram a falar nas suas línguas, mas cada um entendia na sua própria língua.

Os pentecostais surgem com essa compreensão de que eles precisam revisitar esse dia.

E acontece aquela glossolalia, que eles chamam de glossolalia, aquele falar línguas e tudo mais.

É como se fosse um retorno a esse dia.

E o mito fundador da igreja pentecostal envolve um homem negro, o William Seymour, no começo do século XX.

A história era assim.

O Seymour, que era filho de ex-escravizados, estava frequentando a escola bíblica metodista de um pastor, um homem branco.

E esse pastor branco...

Ele era muito racista, ele não deixava negros estudarem.

A empregada dele pediu para que o William Seymour estudasse.

Ele falou assim, pode estudar, mas ele vai ficar pelo lado de fora no corredor, na janela.

Ele não vai ficar junto com os brancos.

Então ele fica pelo lado de fora estudando.

Então ele fez o tempo todo do seminário dele no corredor.

E aí aconteceu essa glossolalia, essa experiência do pentecostes na sala de aula entre os alunos.

Eles começaram a orar e começaram a falar em outras línguas e terem manifestações com o corpo, aquela coisa toda.

Isso também aconteceu com o William Seymour.

O William Seymour então foi para a Rua Azul e encontrou uma igreja metodista africana abandonada.

E ali ele começou os cultos dele, interracial inclusive.

Começou a comunicar música negra e muita utilização do corpo.

É um mito fundante, porque ferveu o mundo todo.

Porque as pessoas iam lá para ver o que estava acontecendo.

Daí no fim dos anos 70, aqui no Brasil, quando a ditadura estava em crise, a economia estava em crise,

surgiram as igrejas neopentecostais.

E tudo isso ligado a um contexto geral de empobrecimento da população,

de crescimento desordenado das cidades, de falta de oportunidades.

Nas igrejas evangélicas há redes de apoio, de comunhão, de ajuda.

E é aquela igreja lá que muitas vezes no tiroteio o povo para lá se esconde, se protege.

É o lugar onde as crianças são atendidas, onde a mãe sola às vezes deixa a criança para que ela possa trabalhar.

É essa a base que chega.

Onde o Estado não quis chegar, a igreja chegou.

E ela ajuda, de fato, muita gente.

Ninguém se considera extremamente feliz ralando a vida toda, não conseguindo absolutamente nada,

passando dificuldades o tempo todo. Não.

Aí vem a igreja neopentecostal com uma teologia que surgiu nos Estados Unidos, a teologia da prosperidade.

Isso dá um empoderamento tremendo às pessoas que estão nas comunidades.

O cara entende que ele não precisa ser pobre a vida inteira,

que Deus não quer ele pobre daquele jeito, não quer ele passando dificuldades.

Além de todos esses espaços que a igreja evangélica de fato ocupa,

algo que a gente nunca pode esquecer é a agência das pessoas.

Não pode achar que é por desconhecimento, por inocência que as pessoas negras estão nessas igrejas.

É por opção também.

Por escolha.

Por considerarem que faz bem para elas, para a vida delas, para os familiares.

Não dá para ser fiscal da fé alheia.

E também não dá para ficar só nesse discurso de

ah, é uma população que foi abandonada pelo Estado.

A proporção de evangélicos com ensino superior, por exemplo, é quase igual à dos católicos.

Agência.

As pessoas escolhem o que elas consideram que é melhor para elas.

E o Marco Davi acredita que uma outra razão para o sucesso das igrejas pentecostais

e neopentecostais entre os negros brasileiros

está na africanidade.

O pentecostalismo valoriza a utilização do corpo.

Essa experiência de ser tomado pelo Espírito Santo,

isso para mim é muito africano e está muito próximo das religiões matrizes africanas.

O transe.

Rapaz, eu me arrepio de tudo que você falou.

Isso eu acho fantástico.

E olha o que o Babalaoi Vanir diz sobre isso.

Incorporar o Espírito Santo, isso é africanidade.

Vai incorporar o Espírito Santo e falar a língua estranha.

Qual é a diferença entre o cara receber o Espírito Santo e o outro receber o cabuco?

Ou receber o ouro de chá?

É transe.

A incorporação.

Isso é africano.

Isso é da espiritualidade africana.

Não é todo mundo, claro, que reconhece essa africanidade.

E isso tem um motivo.

E aí eu lembro do meu pai, rapaz.

Tocava muito pandeiro.

E pra você ver como é que a coisa era forte na minha cabeça.

Porque a minha denominação, a minha igreja,

de certa forma demonizava a cultura brasileira.

Então eu não aprendi a tocar pandeiro com meu pai,

que tocava muito, né?

Eu podia ter aprendido.

E eu não aprendi nada disso porque a igreja dizia mesmo que nas entrelinhas,

que aquilo não era de Deus.

Tem dois mitos de duas maldições

que são espalhados até hoje por alguns pastores.

Um deles é o da maldição de Cã.

O Cã era um dos filhos de Noé.

Aquele Noé, da arca.

Depois do dilúvio, né?

Houve o dilúvio.

Noé, ele bebe.

Bebe lá seu vinho lá.

E aí o Cã.

Tinha Cã, Sem e Jafé.

E aí Cã vê a nudez de Noé.

Está na Bíblia.

O Noé acabou dormindo pelado.

O Cã, que era um dos filhos, passou, viu e chamou os outros dois irmãos para ver.

Os dois não entraram na pilha do irmão e foram andando de costas

sem olhar para o pai e cobriram o Noé.

Quando Noé acordou e descobriu o que o filho mais novo tinha feito,

amaldiçoou não o Cã,

mas o filho dele, o Canaã.

Daí tem pastor até hoje,

pastor famoso, pastor político,

que diz que os povos africanos foram escravizados por causa da maldição de Cã.

Tem um texto que eu gosto do teólogo e pesquisador Glauber Henrique Correia Rocha,

que ele diz que na própria Bíblia,

dos quatro filhos de Cã,

três são descritos pelo Gênesis como os ancestrais dos povos africanos.

Sabe o único filho de Cã que não é ancestral dos africanos?

Justamente o Canaã.

Ainda sobre esse mito, tem um quadro mega famoso chamado A Redenção de Cã.

É uma pintura de 1895,

quando o Brasil, depois de ter sido forçado a acabar com a escravidão,

estava querendo eliminar a parcela negra da população.

Daí esse quadro mostra quatro pessoas.

Da esquerda para a direita, a primeira é uma senhora negra, de pele retinta, lenço na cabeça.

Ela está olhando para cima com a mão aberta e parece que está agradecendo aos céus.

Do lado dela está uma moça mais jovem,

daí você consegue ver que teve uma miscigenação ali,

porque ela é uma mulher negra, de pele clara.

Do lado da moça está um homem branco.

E ele tem um sorriso meio debochado, meio orgulhoso,

e está olhando para o bebê que está no colo da moça.

Um bebê branco, provavelmente o filho do casal.

A senhora negra da ponta está agradecendo pelo branqueamento da descendência dela.

Lembra do nome do quadro?

A Redenção de Cã.

E tem a outra maldição.

Um dia eu estava em um seminário, jovem seminarista, uns 30 mais ou menos.

Eu era o único preto no meio deles, e eu estava fazendo a palestra.

E aí eu perguntei a eles, qual é a maldição de Cain?

E todos em coro responderam a cor preta.

Eu olhei para eles assim, absurdo.

Não estou acreditando que eu estou em um seminário periferiano,

que eu estou fazendo uma palestra, que eu estou fazendo uma palestra.

Não estou acreditando que eu estou em um seminário periferiano,

que eu estou fazendo um negócio desse.

Aí eu perguntei assim, gente, vamos ler o texto de novo?

Você conhece a história dos irmãos Cain e Abel?

O Cain matou o irmão, daí está lá na Bíblia que Deus colocou nele uma marca.

Não tem nada falando que a tal da marca seria a cor negra ou a pele negra, nada.

Essa interpretação tem que ser expurgada,

porque é uma interpretação extremamente racista, extremamente maldosa,

não tem nada a ver com o texto.

E me chama muito a atenção que essa coisa ainda esteja,

de alguma forma, impregnada também na Igreja Evangélica.

E tem um motivo para existirem essas duas interpretações erradas da Bíblia.

Não foram erros, acidentais, ambos foram conscientes.

E a origem disso está na Igreja Católica.

Naquela tentativa, que eu falei mais cedo, de tentar justificar a escravidão.

De tentar justificar a exploração de um povo.

Como se fosse uma ordem divina e não uma escolha humana.

Uma deturpação que foi sendo passada adiante, mesmo para outras religiões,

e que infelizmente se mantém até hoje.

Eu já, nesses praticamente 30 anos,

estou no meio evangélico falando contra o racismo da Igreja.

Já fui espizinhado de todos os jeitos que eu posso imaginar.

Um dia eu estava no conselho de pastores, disseram que eu estava cheio de demônios,

e que queria dividir a Igreja.

Quando eu terminei, eu vi naquilo tudo, aquela violência toda,

naquele momento, rapaz, eu senti mesmo, Deus falando no meu coração,

é isso que eu quero que você faça.

Eu quero que você continue falando contra o racismo na Igreja.

Porque o racismo é pecado.

Tira a possibilidade do outro ser em mais semelhança de Deus,

como inclusive a Bíblia diz.

Tira a possibilidade do outro ser existir, ter sua própria alteridade.

É pecado, pecado.

E é sempre bom destacar que não são todos os evangélicos que são racistas.

Ou enfim, todos os pentecostais ou neopentecostais, é claro que não são todos.

Obviamente há muitos evangélicos que discordam disso, que combatem isso.

E a gente precisa lembrar que os evangélicos também sofrem preconceito.

E uma boa parte desse preconceito está fundada justamente em todos aqueles elementos

que, como a gente ouviu há pouco, remetem à africanidade.

Como o transe.

Como se falar em línguas fosse algo risível, como se fosse algo primitivo.

A gente já ouviu essa história.

É preconceito puro e simples.

Preconceito contra uma religião majoritariamente negra.

É uma violência que se retroalimenta.

E também é importante destacar que tem gente de outras religiões que também ataca as de matriz africana.

Gente que também é racista.

O que no mínimo cruza os braços, que se cala diante do racismo.

O que é tão baixo quanto.

A sociedade precisa entender que o ataque às religiões de matriz africana é o ataque à democracia e às liberdades.

Só isso que as pessoas pensam.

Porque hoje somos nós.

Eu sempre digo, né?

Primeiro vamos para a fogueira, mas depois vamos outros.

Entre os católicos tem um grupo ultraconservador no Rio de Janeiro

que recentemente impediu a realização de uma missa histórica do dia da consciência negra

porque tinha atabaque na celebração.

Depois de a igreja passar séculos lucrando com a escravidão,

foi só em 1839 que um papa, pela primeira vez, condenou o regime escravocrata.

Do outro lado da moeda, é inegável que alguns avanços sociais dos últimos anos no Brasil

foram graças a movimentos que surgiram dentro da igreja católica,

como por exemplo os pré-vestibulares comunitários

que garantiram a entrada de muita gente negra nas faculdades.

Assim como tem muito projeto social de igrejas evangélicas literalmente salvando vidas de pessoas negras.

Nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno.

Mas é difícil demais entender que em qualquer religião haja pessoas racistas.

Ainda mais num país em que mais da metade da população é negra.

Entre os muitos evangélicos progressistas e antirracistas que existem,

um que eu acho que você deve conhecer é o pastor Henrique Vieira.

Ele é autor de livro, já declamou em música do Emicida.

Eu entrevistei ele pro Vidas Negras, que é o podcast que eu fiz antes desse aqui.

E eu não esqueço de algo que ele me disse nessa entrevista.

Ele me contou que a primeira igreja protestante do Brasil era negra.

Nasceu no Recife.

Quem criou ela foi o Agostinho José Pereira, o divino mestre.

Foi um líder rebelde, um líder popular, um líder da população negra do Recife.

E que era cristão.

Este é o historiador e professor Marcos Joaquim Maciel de Carvalho.

O primeiro documento que ele encontrou sobre o divino mestre relatava a prisão dele

em meio à Revolução Praieira, que foi uma revolta que aconteceu

por causa de uma briga política entre liberais e conservadores no fim dos anos 1840.

E o divino mestre foi preso sob uma legação.

Suspeição de estar insuflando uma revolta escrava.

Aquela mobilização de negros, de presentes negros e tal.

E aí a defesa dele diz que ele é só um líder lutarano,

ele é um líder religioso, no Brasil tem liberdade religiosa.

Mas as autoridades acham que ele, por trás disso, não é só um líder religioso.

Quando ele foi preso, foi com ele mais de 16 pessoas.

E alguns quiseram ser presos com ele, porque não queriam deixar o divino mestre,

que é um dos nomes de Cristo, divino mestre.

Não queriam deixar ele ir sozinho para a cadeia, queriam acompanhar ele,

no infortúnio dele.

16 foram esses que foram presos junto com ele.

Mas está na documentação que o divino mestre tinha uns 300 seguidores, 300 fiéis.

Quando o divino mestre se considera um verdadeiro cristão, cristão ortodoxo,

é assim que ele se percebe.

Ele dizia que as imagens dos santos não tinham valor espiritual

e que os católicos não cumpriam os mandamentos.

E que ele estava em contato constante com Deus.

Ele se acha o verdadeiro portador da fé cristã.

Então isso incomoda em dobro, porque ele está confrontando

um dos grandes pilares do Estado, que é a igreja.

Porque havia nessa época a União Igreja-Estado.

Mas aos olhos das autoridades daquela época,

essa nem de longe era a maior ameaça representada pelo divino mestre.

É um herói, rapaz.

Eu fico imaginando, rapaz, naquela época, no Recife,

o cara alfabetizando negros.

Claro que isso é rebelde.

Não pode alfabetizar negro.

Você está entregando um instrumento a essa população escravizada, poderosíssimo.

E você lembra, e a gente já falou sobre isso,

da quantidade de impedimentos que havia, como leis, por exemplo,

para que pessoas negras pudessem aprender a ler e a escrever.

Isso tudo que o divino mestre estava fazendo

foi uns 40 anos antes da abolição.

E ele, então, foi capturado porque ele representava uma grande ameaça,

porque ele estava alfabetizando negros e negras na cidade do Recife

e defendia um cristianismo próprio, não era o católico.

No julgamento, a esposa dele contou que ela viu Deus num sonho.

E aí o desembargador pergunta se ele era branco ou preto.

E ela responde que ele era acaboclado.

E aí os caras riem, um riso, provavelmente, de um certo travo de nervosismo,

porque esse cara está alfabetizando 300 negros.

A maior parte deles são mulheres.

É muito interessante também como é que eles lidam com essa questão cromática.

Moreno, acaboclado.

Isso a gente tentar evitar as perspectivas contemporâneas

e pensar nas perspectivas da época como estratégia de resistência e de sobrevivência.

O significado do uso dessas expressões.

Esse ver o Senhor num sonho vincula o pentecostaleiro.

Eu puxaria para ir os pentecostais mesmo por um cristianismo que não é o católico

e que tem elementos e tradições que se misturam com elementos e tradições africanas.

E o mais próximo disso, no meu entendimento, é o cristianismo negro americano.

A pessoa também recebe espíritos, a pessoa tem sonhos.

Antes de se tornar o Divino Mestre, o Agostinho José Pereira nasceu livre no Recife em 1799.

A mãe dele tinha sido escravizada.

E tem um instrumento que é o pentecostaleiro.

E tem um instrumento, rapaz, didático, arretado, que é o ABC.

Naquela época, você aprendia a ler e escrever isso mesmo. ABCDEF.

Eu encontrei essa documentação Divino Mestre, mas eu não tinha encontrado o ABC.

Muitos anos depois, o Marcos encontrou o ABC.

É o primeiro documento que a gente tem escrito por um negro contra o racismo

e a favor da revolução, meu amigo.

Eu não conheço outro na história brasileira, anterior a esse, porque o ABC é fascinante.

Então, se você tem um verso revolucionário conclamando a revolução,

é um texto em favor do orgulho da cor morena.

Ele diz que é a cor dos faraóis, é a cor de Jesus.

É a cor daquelas pessoas que fizeram os dois impérios

e que estão sendo oprimidos aqui e que vai ter uma revirada.

Ele usa a expressão moreno.

Aí você vai para o Moraes, que é um dicionário de 1817,

moreno é um par de escuros, né? É o negro.

O ABC também cita a Revolução do Haiti,

a revolta de escravizados que libertou a ilha da colonização francesa

e criou um novo país, o primeiro país das Américas, a abolir a escravidão.

A íntegra do ABC você pode ler lá no site do Quirino, www.projetoquirino.com.br

O Divino Mestre acabou solto, mas não se sabe o que aconteceu com ele depois.

E toda essa história de resistência dele

me fez pensar de novo nas religiões de matriz africana.

Quando a gente vê todas essas notícias de que traficantes se expulsaram

o povo de santos das comunidades,

é óbvio que isso deve ser combatido,

que não pode ser feito por um único povo,

mas tem uma outra coisa também.

E aqui de novo o Babalaô Ivanir dos Santos.

Expulsou da comunidade não tem mais, só que se acha.

Mas se tu for dar direitinho aí, a turma já sabe que segunda-feira

o cara deu fuma, tá na casa de cicrano.

Quando a gente vai lá ver e tal, tá lá alguém virado no eixo, dando consulta.

Apesar de todas essas pressões, fica quietinho,

não tem nada a ver com o que aconteceu.

Não tem publicamente, não pode.

Não pode não quer dizer que não faça.

E a comunidade às vezes é coberta mesmo,

tem gente que é coberta, não quer nem saber.

É, resistência sempre.

A lógica da existência negra no Brasil é resistência.

É isso, por isso que vai sobreviver.

Por que você acha que esses anos todos,

perseguida pela igreja católica,

mais de 350 anos,

perseguida pelo Estado, pela República,

para parar da República,

a gente não vai conseguir.

E agora tu acha que o Pedro vai acabar?

Não vai acabar com isso.

Como é chegar na igreja católica,

é ver o cara lá, o ministro da cadeia, o Cade Chê.

Aí quando de noite você vai na Umbanda,

tá o cara lá, é o Ogão.

É assim que sobreviveu, entendeu?

E aí?

O projeto Querino é apoiado pelo Instituto Ibiraputanga.

O podcast é produzido pela Rádio ONU.

O nosso site projetoquerino.com.br

reúne todas as informações sobre o projeto

e conteúdo adicional.

O site foi desenvolvido pela AIE.

E eu te convido a conferir também

todo o material do projeto Querino

que está sendo publicado pela revista Piauí

nas bancas e no site da revista.

Este episódio teve pesquisa de Gilberto Porcidônio,

Rafael Domingos Oliveira

e Angélica Paulo,

que também fez a produção.

O projeto Querino é um projeto

que foi criado em 2013

e foi publicado em 2014.

A edição é do Luca Mendes,

a sonorização da Júlia Matos

e a finalização da Pipoca Sound.

A checagem é do Gilberto Porcidônio

e a música original

do Vitor Rodrigues Dias.

Estratégia de promoção,

distribuição e conteúdo digital

Bia Ribeiro.

A identidade visual é do Draco Imagem.

Os transcritores das entrevistas

foram Guilherme Póvoas

e Rodolfo Viana.

A locução foi gravada no estúdio da Pipoca Sound

com trabalhos técnicos do Luiz Rodrigues.

Consultoria em roteiro

de Mariana Jaspe,

Paula Escarpim e Flora Thompson Devoe

com revisão de Natália Silva.

Consultoria em história

Inaê Lopes dos Santos.

Produção executiva

Guilherme Alpendre.

A execução financeira do projeto é do ESPIS,

Instituto Sincronicidade para Interação Social.

Idealização,

reportagem, roteiro,

apresentação e coordenação

Thiago Rogero.

Este episódio usou áudios de TV Globo,

TV Brasil e SBT.

Até o próximo.

Legendas pela comunidade Amara.org


6. A cor dos faraós - Part 2 6. Die Farbe der Pharaonen - Teil 2 6. The color of the pharaohs - Part 2 6. El color de los faraones - Parte 2 6. La couleur des pharaons - Partie 2 6. Firavunların rengi - Bölüm 2

veio o Código Penal. E o Código Penal colocou como crime à saúde pública a prática do

espiritismo, da magia e dos seus sortilégios, além do uso de talismãs e de cartomancias.

De maneira geral, tudo que não fosse uma religião cristã entrava nessa categoria

aí. Na história do país, se teve sempre um

grupo religioso que é perseguido pelo Estado, na colônia do Império e no início da República,

e que perdurou para depois da República. Tanto que esses objetos sagrados hoje que

estão no Museu da República, eu costumo dizer que é a maior prova concreta de como

o Estado republicano nos tratou até hoje. No começo do século passado, a própria imprensa

comemorava os ataques da polícia aos cultos de matriz africana. Os jornais chamavam de

limpeza. A Polícia Civil do Rio tinha uma delegacia só para lidar com esse tipo de

caso. Durante décadas, a polícia apreendia objetos religiosos e por outras tantas décadas

e até muito recentemente, essas peças sagradas eram expostas num museu de magia negra. Esse

era o nome. Até que a campanha Liberte Nosso Sagrado conseguiu que todo o material fosse

transferido para o Museu da República, em 2020. Nos últimos 30 anos, o Estado deixou ele

diretamente de perseguir. E há isso hoje, os neopentecostais. E essa afeição vem desses

grupos, mas com a omissão do Estado. E aí a gente chega a este momento atual.

No interior de São Paulo, uma mãe chegou a perder a guarda da filha de 12 anos depois

de denúncias de maus tratos e abuso num ritual de iniciação ao candomblé.

A decisão levou em consideração acusações feitas pela avó materna da criança que não foram comprovadas.

O executivo e também boa parcela do judiciário se omite diante do combate sistemático que é feito

contra os cultos afro-brasileiros. Sistemático. E a coisa escalou a tal ponto que agora está acontecendo isso aqui.

Traficantes estão impedindo o terreiro de um bando de candomblé de funcionar. Os espaços são invadidos

e predados pelos bandidos. Neste muro, a inscrição, Jesus é dono deste lugar.

E como chegou o absurdo de você ter casas nossas sendo queimadas, sacerdotes sendo assassinados,

tráfico de droga evangelizada, que é uma coisa que nunca se pensou em ter, que expulsa e que obriga

as pessoas a destruir o seu próprio sagrado. E tudo isso em silêncio. Eu não tenho dúvida se fosse contra

outro grupo ou se agiria mais rápido. Então essa liberdade para nós nunca existiu.

Nessa perseguição recente às religiões de matriz africana, especialmente nos casos em que os ataques

foram promovidos por evangélicos, tem uma coisa que pega demais para mim.

A quantidade de gente negra que está nas igrejas evangélicas.

Aliás, dizer evangélicos é uma forma de generalizar. São muitas denominações diferentes e daqui a pouco

a gente vai falar sobre elas. Inclusive muitas pessoas dessas religiões preferem usar o termo

cristãos. Mas como o IBGE usa evangélicos, a gente vai manter essa denominação aqui só para ficar

mais simples, já que em cristãos entram também os católicos, enfim. E pensando nos evangélicos,

a maioria é negra. Pretos e pardos, 59%, segundo uma pesquisa de 2020 do Data Folha.

É mais do que a proporção geral de negros na população brasileira, que fica ali entre 54% e 56%.

E tem um pastor negro, o nome dele é Marco David Oliveira. Bom, deixa ele se apresentar.

Eu sou o Marco David Oliveira, sou pastor da denominação Batista, sou pastor da nossa

igreja brasileira, a Igreja Batista. Ele escreveu o livro A religião mais negra do Brasil,

por que os negros fazem opção pelo pentecostalismo?

Porque na verdade, assim, a gente pensar dos negros e negras religiosos,

eles estão nas igrejas evangélicas. É óbvio que a maioria é católica,

mas quando eu falo que a religião mais negra do Brasil é igreja evangélica,

eu não estou falando de simplesmente crentes nominais ou católicos nominais.

Eu sou católico, nunca vou à igreja, não participo de absolutamente nada, mas sou católico.

Na igreja evangélica não é isso. Então, nesse sentido que eu falo que

a religião mais negra do Brasil é igreja evangélica.

O começo das igrejas evangélicas no Brasil foi no século XIX,

primeiro com o que é conhecido como protestantismo de imigração.

Os anglicanos, ingleses e luteranos alemães que vieram ali na primeira metade do século.

Depois teve o protestantismo de missão, que eram missionários vindos principalmente dos Estados Unidos.

Presbiterianos, metodistas, batistas. Nessa leva acabou vindo gente do sul dos Estados Unidos, inclusive.

O sul escravista, dos confederados que queriam a todo custo manter a escravidão,

mas que perderam a guerra civil. Daí muitos deles vieram parar no Brasil.

E essas todas são as chamadas igrejas históricas dentro das evangélicas.

Aí lá nos Estados Unidos também surgiu a igreja pentecostal.

Pentecostes era uma festa da colheita. Então as pessoas se reuniram lá de diversas nacionalidades,

vários africanos e tal. Várias pessoas se reuniram lá para essa festa.

Quando Jesus Cristo terminou a sua missão e foi torturado e crucificado,

ele ressuscitou e prometeu aos discípulos o Espírito Santo.

E a chegada do Espírito Santo aconteceu nesse dia de Pentecostes.

E qual foi a evidência disso?

É que as pessoas começaram a falar nas suas línguas, mas cada um entendia na sua própria língua.

Os pentecostais surgem com essa compreensão de que eles precisam revisitar esse dia.

E acontece aquela glossolalia, que eles chamam de glossolalia, aquele falar línguas e tudo mais.

É como se fosse um retorno a esse dia.

E o mito fundador da igreja pentecostal envolve um homem negro, o William Seymour, no começo do século XX.

A história era assim.

O Seymour, que era filho de ex-escravizados, estava frequentando a escola bíblica metodista de um pastor, um homem branco.

E esse pastor branco...

Ele era muito racista, ele não deixava negros estudarem.

A empregada dele pediu para que o William Seymour estudasse.

Ele falou assim, pode estudar, mas ele vai ficar pelo lado de fora no corredor, na janela.

Ele não vai ficar junto com os brancos.

Então ele fica pelo lado de fora estudando.

Então ele fez o tempo todo do seminário dele no corredor.

E aí aconteceu essa glossolalia, essa experiência do pentecostes na sala de aula entre os alunos.

Eles começaram a orar e começaram a falar em outras línguas e terem manifestações com o corpo, aquela coisa toda.

Isso também aconteceu com o William Seymour.

O William Seymour então foi para a Rua Azul e encontrou uma igreja metodista africana abandonada.

E ali ele começou os cultos dele, interracial inclusive.

Começou a comunicar música negra e muita utilização do corpo.

É um mito fundante, porque ferveu o mundo todo.

Porque as pessoas iam lá para ver o que estava acontecendo.

Daí no fim dos anos 70, aqui no Brasil, quando a ditadura estava em crise, a economia estava em crise,

surgiram as igrejas neopentecostais.

E tudo isso ligado a um contexto geral de empobrecimento da população,

de crescimento desordenado das cidades, de falta de oportunidades.

Nas igrejas evangélicas há redes de apoio, de comunhão, de ajuda.

E é aquela igreja lá que muitas vezes no tiroteio o povo para lá se esconde, se protege.

É o lugar onde as crianças são atendidas, onde a mãe sola às vezes deixa a criança para que ela possa trabalhar.

É essa a base que chega.

Onde o Estado não quis chegar, a igreja chegou.

E ela ajuda, de fato, muita gente.

Ninguém se considera extremamente feliz ralando a vida toda, não conseguindo absolutamente nada,

passando dificuldades o tempo todo. Não.

Aí vem a igreja neopentecostal com uma teologia que surgiu nos Estados Unidos, a teologia da prosperidade.

Isso dá um empoderamento tremendo às pessoas que estão nas comunidades.

O cara entende que ele não precisa ser pobre a vida inteira,

que Deus não quer ele pobre daquele jeito, não quer ele passando dificuldades.

Além de todos esses espaços que a igreja evangélica de fato ocupa,

algo que a gente nunca pode esquecer é a agência das pessoas.

Não pode achar que é por desconhecimento, por inocência que as pessoas negras estão nessas igrejas.

É por opção também.

Por escolha.

Por considerarem que faz bem para elas, para a vida delas, para os familiares.

Não dá para ser fiscal da fé alheia.

E também não dá para ficar só nesse discurso de

ah, é uma população que foi abandonada pelo Estado.

A proporção de evangélicos com ensino superior, por exemplo, é quase igual à dos católicos.

Agência.

As pessoas escolhem o que elas consideram que é melhor para elas.

E o Marco Davi acredita que uma outra razão para o sucesso das igrejas pentecostais

e neopentecostais entre os negros brasileiros

está na africanidade.

O pentecostalismo valoriza a utilização do corpo.

Essa experiência de ser tomado pelo Espírito Santo,

isso para mim é muito africano e está muito próximo das religiões matrizes africanas.

O transe.

Rapaz, eu me arrepio de tudo que você falou.

Isso eu acho fantástico.

E olha o que o Babalaoi Vanir diz sobre isso.

Incorporar o Espírito Santo, isso é africanidade.

Vai incorporar o Espírito Santo e falar a língua estranha.

Qual é a diferença entre o cara receber o Espírito Santo e o outro receber o cabuco?

Ou receber o ouro de chá?

É transe.

A incorporação.

Isso é africano.

Isso é da espiritualidade africana.

Não é todo mundo, claro, que reconhece essa africanidade.

E isso tem um motivo.

E aí eu lembro do meu pai, rapaz.

Tocava muito pandeiro.

E pra você ver como é que a coisa era forte na minha cabeça.

Porque a minha denominação, a minha igreja,

de certa forma demonizava a cultura brasileira.

Então eu não aprendi a tocar pandeiro com meu pai,

que tocava muito, né?

Eu podia ter aprendido.

E eu não aprendi nada disso porque a igreja dizia mesmo que nas entrelinhas,

que aquilo não era de Deus.

Tem dois mitos de duas maldições

que são espalhados até hoje por alguns pastores.

Um deles é o da maldição de Cã.

O Cã era um dos filhos de Noé.

Aquele Noé, da arca.

Depois do dilúvio, né?

Houve o dilúvio.

Noé, ele bebe.

Bebe lá seu vinho lá.

E aí o Cã.

Tinha Cã, Sem e Jafé.

E aí Cã vê a nudez de Noé.

Está na Bíblia.

O Noé acabou dormindo pelado.

O Cã, que era um dos filhos, passou, viu e chamou os outros dois irmãos para ver.

Os dois não entraram na pilha do irmão e foram andando de costas

sem olhar para o pai e cobriram o Noé.

Quando Noé acordou e descobriu o que o filho mais novo tinha feito,

amaldiçoou não o Cã,

mas o filho dele, o Canaã.

Daí tem pastor até hoje,

pastor famoso, pastor político,

que diz que os povos africanos foram escravizados por causa da maldição de Cã.

Tem um texto que eu gosto do teólogo e pesquisador Glauber Henrique Correia Rocha,

que ele diz que na própria Bíblia,

dos quatro filhos de Cã,

três são descritos pelo Gênesis como os ancestrais dos povos africanos.

Sabe o único filho de Cã que não é ancestral dos africanos?

Justamente o Canaã.

Ainda sobre esse mito, tem um quadro mega famoso chamado A Redenção de Cã.

É uma pintura de 1895,

quando o Brasil, depois de ter sido forçado a acabar com a escravidão,

estava querendo eliminar a parcela negra da população.

Daí esse quadro mostra quatro pessoas.

Da esquerda para a direita, a primeira é uma senhora negra, de pele retinta, lenço na cabeça.

Ela está olhando para cima com a mão aberta e parece que está agradecendo aos céus.

Do lado dela está uma moça mais jovem,

daí você consegue ver que teve uma miscigenação ali,

porque ela é uma mulher negra, de pele clara.

Do lado da moça está um homem branco.

E ele tem um sorriso meio debochado, meio orgulhoso,

e está olhando para o bebê que está no colo da moça.

Um bebê branco, provavelmente o filho do casal.

A senhora negra da ponta está agradecendo pelo branqueamento da descendência dela.

Lembra do nome do quadro?

A Redenção de Cã.

E tem a outra maldição.

Um dia eu estava em um seminário, jovem seminarista, uns 30 mais ou menos.

Eu era o único preto no meio deles, e eu estava fazendo a palestra.

E aí eu perguntei a eles, qual é a maldição de Cain?

E todos em coro responderam a cor preta.

Eu olhei para eles assim, absurdo.

Não estou acreditando que eu estou em um seminário periferiano,

que eu estou fazendo uma palestra, que eu estou fazendo uma palestra.

Não estou acreditando que eu estou em um seminário periferiano,

que eu estou fazendo um negócio desse.

Aí eu perguntei assim, gente, vamos ler o texto de novo?

Você conhece a história dos irmãos Cain e Abel?

O Cain matou o irmão, daí está lá na Bíblia que Deus colocou nele uma marca.

Não tem nada falando que a tal da marca seria a cor negra ou a pele negra, nada.

Essa interpretação tem que ser expurgada,

porque é uma interpretação extremamente racista, extremamente maldosa,

não tem nada a ver com o texto.

E me chama muito a atenção que essa coisa ainda esteja,

de alguma forma, impregnada também na Igreja Evangélica.

E tem um motivo para existirem essas duas interpretações erradas da Bíblia.

Não foram erros, acidentais, ambos foram conscientes.

E a origem disso está na Igreja Católica.

Naquela tentativa, que eu falei mais cedo, de tentar justificar a escravidão.

De tentar justificar a exploração de um povo.

Como se fosse uma ordem divina e não uma escolha humana.

Uma deturpação que foi sendo passada adiante, mesmo para outras religiões,

e que infelizmente se mantém até hoje.

Eu já, nesses praticamente 30 anos,

estou no meio evangélico falando contra o racismo da Igreja.

Já fui espizinhado de todos os jeitos que eu posso imaginar.

Um dia eu estava no conselho de pastores, disseram que eu estava cheio de demônios,

e que queria dividir a Igreja.

Quando eu terminei, eu vi naquilo tudo, aquela violência toda,

naquele momento, rapaz, eu senti mesmo, Deus falando no meu coração,

é isso que eu quero que você faça.

Eu quero que você continue falando contra o racismo na Igreja.

Porque o racismo é pecado.

Tira a possibilidade do outro ser em mais semelhança de Deus,

como inclusive a Bíblia diz.

Tira a possibilidade do outro ser existir, ter sua própria alteridade.

É pecado, pecado.

E é sempre bom destacar que não são todos os evangélicos que são racistas.

Ou enfim, todos os pentecostais ou neopentecostais, é claro que não são todos.

Obviamente há muitos evangélicos que discordam disso, que combatem isso.

E a gente precisa lembrar que os evangélicos também sofrem preconceito.

E uma boa parte desse preconceito está fundada justamente em todos aqueles elementos

que, como a gente ouviu há pouco, remetem à africanidade.

Como o transe.

Como se falar em línguas fosse algo risível, como se fosse algo primitivo.

A gente já ouviu essa história.

É preconceito puro e simples.

Preconceito contra uma religião majoritariamente negra.

É uma violência que se retroalimenta.

E também é importante destacar que tem gente de outras religiões que também ataca as de matriz africana.

Gente que também é racista.

O que no mínimo cruza os braços, que se cala diante do racismo.

O que é tão baixo quanto.

A sociedade precisa entender que o ataque às religiões de matriz africana é o ataque à democracia e às liberdades.

Só isso que as pessoas pensam.

Porque hoje somos nós.

Eu sempre digo, né?

Primeiro vamos para a fogueira, mas depois vamos outros.

Entre os católicos tem um grupo ultraconservador no Rio de Janeiro

que recentemente impediu a realização de uma missa histórica do dia da consciência negra

porque tinha atabaque na celebração.

Depois de a igreja passar séculos lucrando com a escravidão,

foi só em 1839 que um papa, pela primeira vez, condenou o regime escravocrata.

Do outro lado da moeda, é inegável que alguns avanços sociais dos últimos anos no Brasil

foram graças a movimentos que surgiram dentro da igreja católica,

como por exemplo os pré-vestibulares comunitários

que garantiram a entrada de muita gente negra nas faculdades.

Assim como tem muito projeto social de igrejas evangélicas literalmente salvando vidas de pessoas negras.

Nem tanto ao céu, nem tanto ao inferno.

Mas é difícil demais entender que em qualquer religião haja pessoas racistas.

Ainda mais num país em que mais da metade da população é negra.

Entre os muitos evangélicos progressistas e antirracistas que existem,

um que eu acho que você deve conhecer é o pastor Henrique Vieira.

Ele é autor de livro, já declamou em música do Emicida.

Eu entrevistei ele pro Vidas Negras, que é o podcast que eu fiz antes desse aqui.

E eu não esqueço de algo que ele me disse nessa entrevista.

Ele me contou que a primeira igreja protestante do Brasil era negra.

Nasceu no Recife.

Quem criou ela foi o Agostinho José Pereira, o divino mestre.

Foi um líder rebelde, um líder popular, um líder da população negra do Recife.

E que era cristão.

Este é o historiador e professor Marcos Joaquim Maciel de Carvalho.

O primeiro documento que ele encontrou sobre o divino mestre relatava a prisão dele

em meio à Revolução Praieira, que foi uma revolta que aconteceu

por causa de uma briga política entre liberais e conservadores no fim dos anos 1840.

E o divino mestre foi preso sob uma legação.

Suspeição de estar insuflando uma revolta escrava.

Aquela mobilização de negros, de presentes negros e tal.

E aí a defesa dele diz que ele é só um líder lutarano,

ele é um líder religioso, no Brasil tem liberdade religiosa.

Mas as autoridades acham que ele, por trás disso, não é só um líder religioso.

Quando ele foi preso, foi com ele mais de 16 pessoas.

E alguns quiseram ser presos com ele, porque não queriam deixar o divino mestre,

que é um dos nomes de Cristo, divino mestre.

Não queriam deixar ele ir sozinho para a cadeia, queriam acompanhar ele,

no infortúnio dele.

16 foram esses que foram presos junto com ele.

Mas está na documentação que o divino mestre tinha uns 300 seguidores, 300 fiéis.

Quando o divino mestre se considera um verdadeiro cristão, cristão ortodoxo,

é assim que ele se percebe.

Ele dizia que as imagens dos santos não tinham valor espiritual

e que os católicos não cumpriam os mandamentos.

E que ele estava em contato constante com Deus.

Ele se acha o verdadeiro portador da fé cristã.

Então isso incomoda em dobro, porque ele está confrontando

um dos grandes pilares do Estado, que é a igreja.

Porque havia nessa época a União Igreja-Estado.

Mas aos olhos das autoridades daquela época,

essa nem de longe era a maior ameaça representada pelo divino mestre.

É um herói, rapaz.

Eu fico imaginando, rapaz, naquela época, no Recife,

o cara alfabetizando negros.

Claro que isso é rebelde.

Não pode alfabetizar negro.

Você está entregando um instrumento a essa população escravizada, poderosíssimo.

E você lembra, e a gente já falou sobre isso,

da quantidade de impedimentos que havia, como leis, por exemplo,

para que pessoas negras pudessem aprender a ler e a escrever.

Isso tudo que o divino mestre estava fazendo

foi uns 40 anos antes da abolição.

E ele, então, foi capturado porque ele representava uma grande ameaça,

porque ele estava alfabetizando negros e negras na cidade do Recife

e defendia um cristianismo próprio, não era o católico.

No julgamento, a esposa dele contou que ela viu Deus num sonho.

E aí o desembargador pergunta se ele era branco ou preto.

E ela responde que ele era acaboclado.

E aí os caras riem, um riso, provavelmente, de um certo travo de nervosismo,

porque esse cara está alfabetizando 300 negros.

A maior parte deles são mulheres.

É muito interessante também como é que eles lidam com essa questão cromática.

Moreno, acaboclado.

Isso a gente tentar evitar as perspectivas contemporâneas

e pensar nas perspectivas da época como estratégia de resistência e de sobrevivência.

O significado do uso dessas expressões.

Esse ver o Senhor num sonho vincula o pentecostaleiro.

Eu puxaria para ir os pentecostais mesmo por um cristianismo que não é o católico

e que tem elementos e tradições que se misturam com elementos e tradições africanas.

E o mais próximo disso, no meu entendimento, é o cristianismo negro americano.

A pessoa também recebe espíritos, a pessoa tem sonhos.

Antes de se tornar o Divino Mestre, o Agostinho José Pereira nasceu livre no Recife em 1799.

A mãe dele tinha sido escravizada.

E tem um instrumento que é o pentecostaleiro.

E tem um instrumento, rapaz, didático, arretado, que é o ABC.

Naquela época, você aprendia a ler e escrever isso mesmo. ABCDEF.

Eu encontrei essa documentação Divino Mestre, mas eu não tinha encontrado o ABC.

Muitos anos depois, o Marcos encontrou o ABC.

É o primeiro documento que a gente tem escrito por um negro contra o racismo

e a favor da revolução, meu amigo.

Eu não conheço outro na história brasileira, anterior a esse, porque o ABC é fascinante.

Então, se você tem um verso revolucionário conclamando a revolução,

é um texto em favor do orgulho da cor morena.

Ele diz que é a cor dos faraóis, é a cor de Jesus.

É a cor daquelas pessoas que fizeram os dois impérios

e que estão sendo oprimidos aqui e que vai ter uma revirada.

Ele usa a expressão moreno.

Aí você vai para o Moraes, que é um dicionário de 1817,

moreno é um par de escuros, né? É o negro.

O ABC também cita a Revolução do Haiti,

a revolta de escravizados que libertou a ilha da colonização francesa

e criou um novo país, o primeiro país das Américas, a abolir a escravidão.

A íntegra do ABC você pode ler lá no site do Quirino, www.projetoquirino.com.br

O Divino Mestre acabou solto, mas não se sabe o que aconteceu com ele depois.

E toda essa história de resistência dele

me fez pensar de novo nas religiões de matriz africana.

Quando a gente vê todas essas notícias de que traficantes se expulsaram

o povo de santos das comunidades,

é óbvio que isso deve ser combatido,

que não pode ser feito por um único povo,

mas tem uma outra coisa também.

E aqui de novo o Babalaô Ivanir dos Santos.

Expulsou da comunidade não tem mais, só que se acha.

Mas se tu for dar direitinho aí, a turma já sabe que segunda-feira

o cara deu fuma, tá na casa de cicrano.

Quando a gente vai lá ver e tal, tá lá alguém virado no eixo, dando consulta.

Apesar de todas essas pressões, fica quietinho,

não tem nada a ver com o que aconteceu.

Não tem publicamente, não pode.

Não pode não quer dizer que não faça.

E a comunidade às vezes é coberta mesmo,

tem gente que é coberta, não quer nem saber.

É, resistência sempre.

A lógica da existência negra no Brasil é resistência.

É isso, por isso que vai sobreviver.

Por que você acha que esses anos todos,

perseguida pela igreja católica,

mais de 350 anos,

perseguida pelo Estado, pela República,

para parar da República,

a gente não vai conseguir.

E agora tu acha que o Pedro vai acabar?

Não vai acabar com isso.

Como é chegar na igreja católica,

é ver o cara lá, o ministro da cadeia, o Cade Chê.

Aí quando de noite você vai na Umbanda,

tá o cara lá, é o Ogão.

É assim que sobreviveu, entendeu?

E aí?

O projeto Querino é apoiado pelo Instituto Ibiraputanga.

O podcast é produzido pela Rádio ONU.

O nosso site projetoquerino.com.br

reúne todas as informações sobre o projeto

e conteúdo adicional.

O site foi desenvolvido pela AIE.

E eu te convido a conferir também

todo o material do projeto Querino

que está sendo publicado pela revista Piauí

nas bancas e no site da revista.

Este episódio teve pesquisa de Gilberto Porcidônio,

Rafael Domingos Oliveira

e Angélica Paulo,

que também fez a produção.

O projeto Querino é um projeto

que foi criado em 2013

e foi publicado em 2014.

A edição é do Luca Mendes,

a sonorização da Júlia Matos

e a finalização da Pipoca Sound.

A checagem é do Gilberto Porcidônio

e a música original

do Vitor Rodrigues Dias.

Estratégia de promoção,

distribuição e conteúdo digital

Bia Ribeiro.

A identidade visual é do Draco Imagem.

Os transcritores das entrevistas

foram Guilherme Póvoas

e Rodolfo Viana.

A locução foi gravada no estúdio da Pipoca Sound

com trabalhos técnicos do Luiz Rodrigues.

Consultoria em roteiro

de Mariana Jaspe,

Paula Escarpim e Flora Thompson Devoe

com revisão de Natália Silva.

Consultoria em história

Inaê Lopes dos Santos.

Produção executiva

Guilherme Alpendre.

A execução financeira do projeto é do ESPIS,

Instituto Sincronicidade para Interação Social.

Idealização,

reportagem, roteiro,

apresentação e coordenação

Thiago Rogero.

Este episódio usou áudios de TV Globo,

TV Brasil e SBT.

Até o próximo.

Legendas pela comunidade Amara.org