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TED Português, Ser mulher negra em Lisboa | Carla Fernandes | TEDxLisboa (1)

Ser mulher negra em Lisboa | Carla Fernandes | TEDxLisboa (1)

Tradutor: Gislene Kucker Arantes Revisor: Leonardo Silva

Quando falamos, falamos de um lugar,

de um lugar de manifestação,

de um contexto.

Pois bem, o meu nome é Carla Fernandes,

e eu sou uma mulher negra.

O que é que isso quer dizer?

Eu sou uma mulher que foi violada na frente do seu marido

e que foi obrigada a amamentar o filho do seu agressor,

porque a sua mulher não tinha leite para lhe dar.

Eu sou uma mulher que foi forçada a entregar o seu filho

para trabalhar em casa desse mesmo agressor.

Eu sou uma mulher negra.

Muitos de vocês podem dizer:

"Sim, mas essas histórias vêm lá de trás são da altura da escravatura".

O que digo a vocês é que os estereótipos se alimentam dessas narrativas antigas

que dizemos que estão cristalizadas lá no passado,

mas que vão tendo novos elementos, vão se atualizando

e vão resultar em estereótipos,

que fazem com que privemos as outras pessoas da sua humanidade.

Despertei para estas questões do racismo muito cedo, na infância na realidade.

Na escola primária.

Na escola primária, tínhamos um hábito fantástico,

que era no final de cada período, tínhamos uma festinha.

Nessas festinhas, os rapazes cantavam quase sempre

uma música dos Xutos e Pontapés que era aquela:

"Que saudades que eu já tinha da minha alegre casinha, la-la-la."

Cantavam essa música e depois dela,

eles tinham um hábito que era menos simpático.

Eles elegiam a menina mais feia da turma.

Todos os anos, era quase sempre a mesma.

Então um rapaz dizia:

"Quem é a garota mais feia da turma?"

E os outros, em coro: "É a Ana Teresa!"

A Ana Teresa era uma garota grandona, robusta

e, quando eles diziam isso, ela se punha a correr atrás deles

e aquilo mais parecia um filme do Charlie Chaplin,

porque os rapazes se metiam debaixo da mesa, fugiam,

aquilo era superengraçado, para todos,

menos para a Ana Teresa, é óbvio.

Houve um ano em que a Ana Teresa não foi à aula.

Não foi à aula e eles cantaram novamente a música dos Xutos e Pontapés

e elegeram igualmente a menina mais feia da turma.

"Quem é a garota mais feia da turma?"

"É a Carla!"

Eu congelei.

Fiquei presa dentro dos meus pensamentos.

E comecei a olhar para os lados, claro que foi tudo muito rápido.

Comecei a olhar para os lados e a dizer:

"Mas a Isabel é mais feia do que eu."

"A Sofia... OK, a Sofia não é mais feia do que eu,

mas também não é mais bonita do que eu."

"A Sara... OK, a Sara é mais bonita do que eu."

E fiquei pensando: "Mas por que sou a garota mais feia da turma?"

E um dos rapazes disse:

"É a Carla, porque ela é preta!"

Eu me senti desaperecer.

A Carla que eu conhecia desapareceu e a "feia" me substituiu,

a partir do momento em que o meu colega disse:

"É a Carla."

Ainda no universo do que é a infância,

mas nessa altura eu já era professora,

eu dava aulas de inglês numa escola primária na margem sul.

Vinte alunos, entre os seis e os oito anos.

Sempre quis dar aulas.

Adoro crianças e achava que ia ser o máximo,

mas saía das aulas sempre com tendências suicidas,

porque 20 crianças, dos seis aos oito, não é engraçado nem é fácil, mas pronto.

Mas, no final das aulas,

vinha sempre uma ou outra criança com um desenho, com um carinho

e eu ficava toda derretida e eu:

"Amanhã vamos dar aula" e ela ficava toda contente.

Mas eles nem sempre vinham com desenhos e carinhos.

Houve um dia em que um dos meus alunos veio para mim e diz:

"Teacher...", que era assim que eles me chamavam...

"Teacher, a minha mãe disse que os pretos são ladrões e bandidos".

Olhei para ele e pensei:

"O que é que estão fazendo com esta criança?"

Eu me virei para ele e disse: "É assim. Eu sou preta",

e utilizei o termo "preta", o termo dele,

porque acho que ele já estava suficientemente embaralhado

para explicar ainda:

"Negro é o que você devia utilizar e preto é o que se utiliza para ofender",

mas utilizei o termo dele.

Eu disse: "Eu sou preta, e não roubo e também não sou bandida."

E o menino se vira: "Mas a minha mãe disse!"

E aqui está a questão do dizer novamente.

Quando eu era menina, na escola, os meus colegas disseram:

"A Carla é a garota mais feia da turma."

Disseram e passei a ser, apesar de antes não me considerar.

Aqui, novamente, esta criança diz que os negros,

é difícil para mim dizer, que os negros são ladrões e bandidos,

e para ele era uma verdade,

porque foi dito, ainda mais por uma autoridade que era a mãe dele.

Quero que fiquemos com esta questão do dizer

porque eu vou retomá-la mais tarde.

Esses episódios foram fazendo com que eu me afastasse da realidade

que seria Portugal,

que era uma realidade que eu não abraçava,

que era uma realidade em que eu não me via

pelo que eu achava que era.

Fui me afastando e fui tentando procurar o meu lugar em outros espaços.

Com a África, por exemplo.

Quis me aproximar da África, que era a escolha mais lógica.

Quis me aproximar da África, através de livros, através da música,

de amigos, de locais que eu queria frequentar também.

Não funcionou muito bem.

Procurei a minha mãe: "Me conte, como viemos da Angola?

O que aconteceu, como é que é?"

A minha mãe começou a contar histórias de como atravessamos rios em canoas,

começou a falar como o meu pai negociou em estradas bloqueadas, com militares.

Era a minha história.

Só que me parecia uma história do Indiana Jones.

Parecia muito ficcional, estava muito distante,

não consegui me aproximar dessa história vinda da minha mãe.

Já em idade adulta também, eu fui trabalhar,

estive em Angola, sou angolana.

Cheguei a Angola e pensei:

"Vamos para Angola, vou para o meu país,

vou abraçar o país, o país vai me abraçar e vai ser um grande reencontro."

Não aconteceu!

Mais uma vez fui lançada para uma realidade que não era a minha.

Pensei: "Tenho que procurar o meu espaço".

"Eu vou procurar o meu espaço no local onde fiz a minha socialização,

onde eu cresci, Portugal/Europa".

Em 2014, eu criei um projeto

que é o "audioblog" Rádio AfroLis.

É um audioblog em que tento estabelecer uma ligação

com pessoas como eu,

afrodescendentes que vivem aqui em Lisboa.

Dei o nome Afro... Lis.

É uma junção.

O que fazemos aqui?

Conversamos com outras pessoas que vivem aqui,

afrodescendentes que vivem em Lisboa,

para termos conversas de pares para pares,

para criar hábitos de pronunciação.

Por isso é que falei da questão de nós tentarmos reter o "dizer".

Aqui, neste espaço, na AfroLis, nós dizemos,

nós falamos sobre a nossa realidade.

Quando você fala sobre a sua realidade, de início,

você já está agindo sobre a mesma,

já está fazendo com que ela mude, com que ela se altere.

É óbvio que nós, como afrodescendentes vivendo em Lisboa,

nós não nos vamos associar ao "feio",

nós não nos vamos associar ao "bandido",

nós não nos vamos associar ao "ladrão".

Nós estamos tentando criar uma identidade própria.

(Vídeo)

(Mulher) Afrolisboeta.

Serão, provavelmente, os que habitam Lisboa,

como se ela fosse a sua terra mãe.

(Homem) Alguém que tem África dentro de si e vive nesse espaço.

(Rapaz) É uma pessoa que veio da África, África de língua portuguesa ou não,

mas que veio da África, e que passou a gostar tanto disto

que se deixou ficar aqui, vai de férias quando pode, quando consegue,

mas é aqui que passa a viver, que é o meu caso.

(Mulher) Acho que o afrolisboeta é aquele que tem um certo "swing" no pé

porque gosta de dançar, porque é afro,

mas também é lisboeta porque tem uma manha de europeu

e tem manias de europeu,

tem luxos de europeu.

(Homem) Afrolisboeta... eu diria especial, por exemplo.

Diria especial, afrolisboeta é um conjunto de coisas, de riquezas.

Às vezes fico triste, porque não há um aproveitamento,

não há um aproveitamento propriamente dito,

uma espécie que ainda vai dar o que fazer, vai dar o que falar.

E é a partir deste lugar de manifestação

que tentamos retratar a nossa realidade aqui em Lisboa,

através deste audioblog.

E o que acontece?

Queremos mudar o que está acontecendo.

Queremos mudar a narrativa porque é uma forma também

que eu acredito que podemos combater o racismo.

O racismo, que é esse sistema de opressão.

Nós temos que ter oportunidades para nos pronunciar, para dizer,

mas para dizermos, também temos que criar condições para sermos ouvidos.

Temos que ser ouvidos também.

Quando nós dizemos e ouvimos,

nós estamos assumindo uma posição.

A partir dessa posição, nós podemos agir,

no contexto do que é o combate ao racismo, neste caso.

É uma coisa que não é assim tão fácil de coordenar.

Uma vez, fui ao hospital, com a cabeça aberta,

tive que levar sete pontos de um lado e quatro pontos do outro.

A médica de serviço veio e começou a me costurar,

eu me virei para essa senhora e disse:

"Olha, está doendo".

E ela: "Mas está doendo ou está fingindo?"

E eu disse: "Está doendo mesmo!"

E ela: "Não pode estar doendo, porque já dei uma ampola e meia de anestesia".

E eu: "Mas está doendo".

E ela continuou a costurar.

De repente, ela se vira para mim e diz assim:

"Pronto, já não dói, já lhe dei mais anestesia".

Ela decidiu.

Agora, voltamos aos quatro passos que nós temos:

dizer, ouvir, nos posicionarmos e também agir.

A médica realmente agiu,

mas ela não se posicionou.

Acho que é algo que acontece muitas vezes com o racismo.

Há muitas pessoas que querem combater o racismo,

mas não falam sobre o racismo.

Agem, muitas vezes, mas não falam sobre o racismo.

Há muitas etapas que nós, provavelmente, saltamos

e achamos que estamos contribuindo para esse combate,

mas temos que tentar coordenar esses três passos.

Não é fácil, mas eu acho que vale a pena tentar.

Eu queria agora terminar a minha palestra

porque sei que não é fácil tentarmos agir

e não é fácil visualizar qual é o problema.

Eu comecei esta minha palestra dizendo:

"Eu sou uma mulher negra."

"Eu sou uma mulher que foi violada na frente do seu marido

e que amamentou o filho do seu agressor, e ainda deu o seu próprio filho

para o trabalho forçado na casa desse mesmo agressor".

Eu não quero continuar a repetir esta história.

Eu não quero continuar a falar deste lugar de manifestação.

Eu quero mudar essa história, não quero continuar a ser a vítima.

Eu não quero que o meu marido continue a ser o...

como é que se chama a pessoa que não faz nada,

que não consegue fazer nada?

... o impotente.

Não quero que a outra mulher, a mulher branca, neste caso,

seja a pessoa que está passiva.

Eu não quero que o homem branco continue a ser o meu agressor.

Quero mudar essa história, mas não vou conseguir mudá-la sozinha.

E vou precisar da ajuda de vocês.

Eu vou pedir a todos os homens brancos que se levantem,

por favor,

e digam a frase que vou dizer, depois de mim, está bem?

"Eu sou um homem branco".

(Homens) Eu sou um homem branco.

Obrigada. Podem sentar.

Vou pedir também a todas as mulheres brancas que se levantem

por favor,

e que digam a frase depois de mim:

"Eu sou uma mulher branca".

(Mulheres) Eu sou uma mulher branca.

Obrigada.

Peço a todos os homens negros que se levantem

e que digam, depois de mim:

"Eu sou um homem negro".

(Homem) Eu sou um homem negro.

Obrigada.

Peço a todas as mulheres negras que se levantem

e digam, depois de mim:

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Ser mulher negra em Lisboa | Carla Fernandes | TEDxLisboa (1) ||black|||Carla|Fernandes|TEDxLisbon Eine schwarze Frau in Lissabon sein | Carla Fernandes | TEDxLisbon (1) Being a black woman in Lisbon | Carla Fernandes | TEDxLisbon (1) Ser una mujer negra en Lisboa | Carla Fernandes | TEDxLisboa (1) Etre une femme noire à Lisbonne | Carla Fernandes | TEDxLisboa (1) Essere una donna nera a Lisbona | Carla Fernandes | TEDxLisbon (1) リスボンの黒人女性であること|カルラ・フェルナンデス|TEDxLisboa (1) Bycie czarnoskórą kobietą w Lizbonie | Carla Fernandes | TEDxLisboa (1) 里斯本的一名黑人女性 |卡拉·费尔南德斯 | TEDx里斯本 (1) 里斯本的一名黑人女性 |卡拉費爾南德斯 | TEDx里斯本 (1)

Tradutor: Gislene Kucker Arantes Revisor: Leonardo Silva |Gislene|Kucker|Arantes||| |Gislene Kucker|Kucker|Arantes|||

Quando falamos, falamos de um lugar,

de um lugar de manifestação, ||||protest site

de um contexto.

Pois bem, o meu nome é Carla Fernandes,

e eu sou uma mulher negra.

O que é que isso quer dizer?

Eu sou uma mulher que foi violada na frente do seu marido ||||||||глазах||| ||||||raped||in front of|||husband

e que foi obrigada a amamentar o filho do seu agressor, |||||stillen||||| |||thankful||breastfeed|||||aggressor and that she was forced to breastfeed her aggressor's child,

porque a sua mulher não tinha leite para lhe dar. because|||||||||

Eu sou uma mulher que foi forçada a entregar o seu filho |||woman|||forced||give up||| I'm a woman who was forced to give up her son

para trabalhar em casa desse mesmo agressor. to work in the home of the same aggressor.

Eu sou uma mulher negra. I'm a black woman.

Muitos de vocês podem dizer:

"Sim, mas essas histórias vêm lá de trás são da altura da escravatura". ||||||||||||Sklaverei Yes (1)|||stories|come|||back|||time||slavery "Yes, but those stories go back to the time of slavery."

O que digo a vocês é que os estereótipos se alimentam dessas narrativas antigas ||||||||||feed on||| What I'm telling you is that stereotypes feed on these old narratives

que dizemos que estão cristalizadas lá no passado, ||||crystallized||| that we say are crystallized in the past,

mas que vão tendo novos elementos, vão se atualizando ||they||||||updating themselves

e vão resultar em estereótipos, and will result in stereotypes,

que fazem com que privemos as outras pessoas da sua humanidade. ||||entziehen|||||| ||||deprive||||||humanity that make us deprive other people of their humanity.

Despertei para estas questões do racismo muito cedo, na infância na realidade. Ich wachte auf||||||||||| I awoke||||||||||| I became aware of these issues of racism very early on, in childhood in fact.

Na escola primária. ||primary school

Na escola primária, tínhamos um hábito fantástico, ||primary school|||habit|

que era no final de cada período, tínhamos uma festinha. ||||||period|we had||little party

Nessas festinhas, os rapazes cantavam quase sempre |little parties||the boys|sang||

uma música dos Xutos e Pontapés que era aquela: a|||Xutos band||kick||| a song by Xutos e Pontapés that was the one:

"Que saudades que eu já tinha da minha alegre casinha, la-la-la." |longing||||||||little house||| "How I missed my happy little house, la-la-la."

Cantavam essa música e depois dela, They sang that song and after it,

eles tinham um hábito que era menos simpático.

Eles elegiam a menina mais feia da turma. |||||||класса |would choose||||||

Todos os anos, era quase sempre a mesma. Every year, it was almost always the same.

Então um rapaz dizia: Then a boy said:

"Quem é a garota mais feia da turma?" |||||ugly||class "Who's the ugliest girl in the class?"

E os outros, em coro: "É a Ana Teresa!" ||||im Chor|||| ||||in unison|||Ana Teresa|Teresa

A Ana Teresa era uma garota grandona, robusta |||||||robust ||||||big girl|sturdy

e, quando eles diziam isso, ela se punha a correr atrás deles ||||||sich|begann|||| |||said||||would start|a|running|after|them

e aquilo mais parecia um filme do Charlie Chaplin, |||||||Charlie Chaplin|Chaplin |||seemed||||Charlie Chaplin|Chaplin movie and it was more like a Charlie Chaplin movie,

porque os rapazes se metiam debaixo da mesa, fugiam, ||||would hide|under|||they fled because the boys would get under the table and run away,

aquilo era superengraçado, para todos, ||super lustig|| ||super funny|| that was super funny for everyone,

menos para a Ana Teresa, é óbvio.

Houve um ano em que a Ana Teresa não foi à aula. ||||||||||to the| There was a year when Ana Teresa didn't go to class.

Não foi à aula e eles cantaram novamente a música dos Xutos e Pontapés ||||||sang|||||Xutos and Pontap|| He didn't go to class and they sang the Xutos e Pontapés song again

e elegeram igualmente a menina mais feia da turma. |elected||||||| and they also chose the ugliest girl in the class.

"Quem é a garota mais feia da turma?" ||||||из (определённый артикль)|

"É a Carla!" "It's Carla!"

Eu congelei. |froze I froze.

Fiquei presa dentro dos meus pensamentos. |stuck||||thoughts I was trapped inside my thoughts.

E comecei a olhar para os lados, claro que foi tudo muito rápido. |||||||||||очень|

Comecei a olhar para os lados e a dizer:

"Mas a Isabel é mais feia do que eu." "But Isabel is uglier than me."

"A Sofia... OK, a Sofia não é mais feia do que eu, ||||Sofia||||||| a|Sofia|||||||||| "Sofia... OK, Sofia is no uglier than me,

mas também não é mais bonita do que eu." but she's not prettier than me either."

"A Sara... OK, a Sara é mais bonita do que eu."

E fiquei pensando: "Mas por que sou a garota mais feia da turma?"

E um dos rapazes disse:

"É a Carla, porque ela é preta!"

Eu me senti desaperecer. |||verschwinden |||disappear I felt myself getting unstuck.

A Carla que eu conhecia desapareceu e a "feia" me substituiu, ||||||||ugly|| The Carla I knew disappeared and the "ugly" one replaced me,

a partir do momento em que o meu colega disse: |leave|||||||colleague| from the moment my colleague said:

"É a Carla."

Ainda no universo do que é a infância, still||||||| Still in the universe of what childhood is,

mas nessa altura eu já era professora, ||age||already||teacher But by then I was already a teacher,

eu dava aulas de inglês numa escola primária na margem sul. |||||||||south bank| I used to teach English at an elementary school on the south bank.

Vinte alunos, entre os seis e os oito anos. Twenty students, aged between six and eight.

Sempre quis dar aulas.

Adoro crianças e achava que ia ser o máximo, |||thought||||| I love children and I thought it would be great,

mas saía das aulas sempre com tendências suicidas, ||||||suicidal tendencies|suicidal but he always left class with suicidal tendencies,

porque 20 crianças, dos seis aos oito, não é engraçado nem é fácil, mas pronto. |||||||||||||ready because 20 children, from six to eight, is neither funny nor easy, but that's it.

Mas, no final das aulas,

vinha sempre uma ou outra criança com um desenho, com um carinho ||||||||drawing|||affection There was always one child or another with a drawing, a cuddle

e eu ficava toda derretida e eu: ||||melted|| and I'd get all melty and me:

"Amanhã vamos dar aula" e ela ficava toda contente. ||||||||happy "Tomorrow we're going to teach" and she was so happy.

Mas eles nem sempre vinham com desenhos e carinhos. ||||came||drawings||affection But they didn't always come with drawings and cuddles.

Houve um dia em que um dos meus alunos veio para mim e diz: One day, one of my students came up to me and said:

"Teacher...", que era assim que eles me chamavam... Lehrerin||||||| Teacher|||||||called "Teacher...", that's what they called me...

"Teacher, a minha mãe disse que os pretos são ladrões e bandidos". ||||||the|||||bandits "Teacher, my mother said that black people are thieves and bandits."

Olhei para ele e pensei: I looked at him and thought:

"O que é que estão fazendo com esta criança?" "What are you doing with this child?"

Eu me virei para ele e disse: "É assim. Eu sou preta", ||turned|||||it is|like this|||black I turned to him and said: "That's it, I'm black",

e utilizei o termo "preta", o termo dele, |I used||term|||| and I used the term "black", his term,

porque acho que ele já estava suficientemente embaralhado |||||||verwirrt |||||||confused because I think that he was already shuffled around enough

para explicar ainda: |to explain| to explain yet:

"Negro é o que você devia utilizar e preto é o que se utiliza para ofender", Black|||||should|||||||||| "Black is what you should use and black is what you use to offend."

mas utilizei o termo dele. but I used his term.

Eu disse: "Eu sou preta, e não roubo e também não sou bandida." |||||||steal|||||bandit I said: "I'm black, I don't steal and I'm not a bandit either."

E o menino se vira: "Mas a minha mãe disse!" ||boy||turns||||| And the boy turns around: "But my mother said so!"

E aqui está a questão do dizer novamente. And here's the question of saying it again.

Quando eu era menina, na escola, os meus colegas disseram:

"A Carla é a garota mais feia da turma."

Disseram e passei a ser, apesar de antes não me considerar. Said|||||despite||||| They said so and I became one, even though I didn't consider myself one before.

Aqui, novamente, esta criança diz que os negros, Here again, this child says that black people,

é difícil para mim dizer, que os negros são ladrões e bandidos, it's hard for me to say that black people are thieves and bandits,

e para ele era uma verdade, and for him it was the truth,

porque foi dito, ainda mais por uma autoridade que era a mãe dele. because it was said, especially by an authority who was his mother.

Quero que fiquemos com esta questão do dizer ||let's stay|||issue|| I want us to stay with this question of saying

porque eu vou retomá-la mais tarde. |||wieder aufnehmen||| |||take it|it|| because I'll pick it up later.

Esses episódios foram fazendo com que eu me afastasse da realidade ||||||||distance myself|| These episodes made me drift away from reality

que seria Portugal, which would be Portugal,

que era uma realidade que eu não abraçava, |||||||embraced which was a reality that I didn't embrace,

que era uma realidade em que eu não me via that it was a reality in which I didn't see myself

pelo que eu achava que era. for|||thought|| for what I thought it was.

Fui me afastando e fui tentando procurar o meu lugar em outros espaços. ||to distancing||||find|||||| I drifted away and tried to find my place in other spaces.

Com a África, por exemplo. With Africa, for example.

Quis me aproximar da África, que era a escolha mais lógica. I wanted||approach|||||||| I wanted to get closer to Africa, which was the most logical choice.

Quis me aproximar da África, através de livros, através da música, ||get closer|||through|||through|| I wanted to get closer to Africa, through books, through music,

de amigos, de locais que eu queria frequentar também. |||||||hang out| of friends, of places I wanted to go too.

Não funcionou muito bem. It didn't work very well.

Procurei a minha mãe: "Me conte, como viemos da Angola? I looked for|||||tell me||we came||Angola

O que aconteceu, como é que é?"

A minha mãe começou a contar histórias de como atravessamos rios em canoas, |||||||||we crossed|rivers||canoes

começou a falar como o meu pai negociou em estradas bloqueadas, com militares. ||||||father|||roads|blocked||military personnel

Era a minha história.

Só que me parecia uma história do Indiana Jones. |||||||Indiana Jones|Jones

Parecia muito ficcional, estava muito distante, |||||distant

não consegui me aproximar dessa história vinda da minha mãe.

Já em idade adulta também, eu fui trabalhar, |||adult||||

estive em Angola, sou angolana. ||||Angolan

Cheguei a Angola e pensei: I arrived||||

"Vamos para Angola, vou para o meu país,

vou abraçar o país, o país vai me abraçar e vai ser um grande reencontro." |embrace|||||||||||||reunion

Não aconteceu! |happened

Mais uma vez fui lançada para uma realidade que não era a minha. ||||launched||||||||

Pensei: "Tenho que procurar o meu espaço".

"Eu vou procurar o meu espaço no local onde fiz a minha socialização, ||look for||||||where||||socializing

onde eu cresci, Portugal/Europa". ||grew up||

Em 2014, eu criei um projeto ||||project

que é o "audioblog" Rádio AfroLis. |||Audioblog||AfroLis Radio |||audioblog||AfroLis Radio

É um audioblog em que tento estabelecer uma ligação ||||in dem|||| ||||||||connection

com pessoas como eu,

afrodescendentes que vivem aqui em Lisboa. Afro-descendants|||||

Dei o nome Afro... Lis. ||||Lis I gave|||Afro|Lis

É uma junção. ||junction

O que fazemos aqui?

Conversamos com outras pessoas que vivem aqui, we talked||||||

afrodescendentes que vivem em Lisboa,

para termos conversas de pares para pares, ||||pairs||

para criar hábitos de pronunciação. ||||pronunciation habits

Por isso é que falei da questão de nós tentarmos reter o "dizer". ||||||issue||||retain||

Aqui, neste espaço, na AfroLis, nós dizemos, |in this|||||

nós falamos sobre a nossa realidade.

Quando você fala sobre a sua realidade, de início, |||||your|||

você já está agindo sobre a mesma, |||acting|||same

já está fazendo com que ela mude, com que ela se altere. ||||||change|||||alters

É óbvio que nós, como afrodescendentes vivendo em Lisboa,

nós não nos vamos associar ao "feio", we||ourselves||associate||ugly

nós não nos vamos associar ao "bandido", ||||||bandit

nós não nos vamos associar ao "ladrão". ||||||thief

Nós estamos tentando criar uma identidade própria.

(Vídeo) Video

(Mulher) Afrolisboeta. |afrolisboet |Afro-Lisbon

Serão, provavelmente, os que habitam Lisboa, ||||die in| |probably|||they inhabit|

como se ela fosse a sua terra mãe. |||||your|| as if it were their motherland.

(Homem) Alguém que tem África dentro de si e vive nesse espaço. Man|someone|||||||||in that| (Man) Someone who has Africa inside him and lives in that space.

(Rapaz) É uma pessoa que veio da África, África de língua portuguesa ou não, (Boy) It's a person who came from Africa, Portuguese-speaking Africa or not,

mas que veio da África, e que passou a gostar tanto disto |||||||||||of this but who came from Africa, and who came to love it so much

que se deixou ficar aqui, vai de férias quando pode, quando consegue, ||let|stay|||||||| who let himself stay here, goes on vacation when he can, when he can,

mas é aqui que passa a viver, que é o meu caso. but this is where you live, which is my case.

(Mulher) Acho que o afrolisboeta é aquele que tem um certo "swing" no pé |||||||||||Rhythmus|| |||||||||||rhythm||foot (Woman) I think the afrolisboeta is the one who has a certain swing in his foot

porque gosta de dançar, porque é afro, because he likes to dance, because he's Afro,

mas também é lisboeta porque tem uma manha de europeu |||Lisboner||||manner|| but he's also from Lisbon because he has a European flair

e tem manias de europeu, ||Manierismen|| ||European quirks|| and has European manias,

tem luxos de europeu. |European luxuries|| has European luxuries.

(Homem) Afrolisboeta... eu diria especial, por exemplo. |||would say||| (Man) Afrolisboeta... I'd say special, for example.

Diria especial, afrolisboeta é um conjunto de coisas, de riquezas. |||||||||riches I would say special, Afrolisboeta is a collection of things, of riches.

Às vezes fico triste, porque não há um aproveitamento, ||||||||Nutzung ||get||||||utilization Sometimes I'm sad because there's no use for it,

não há um aproveitamento propriamente dito, there's no real utilization,

uma espécie que ainda vai dar o que fazer, vai dar o que falar. |species||||||||||||talk a species that is still going to make a splash.

E é a partir deste lugar de manifestação And it is from this place of manifestation

que tentamos retratar a nossa realidade aqui em Lisboa, ||darstellen|||||| ||portray|||||| that we try to portray our reality here in Lisbon,

através deste audioblog. through this audioblog.

E o que acontece? |||happens And what happens?

Queremos mudar o que está acontecendo. We want to change what is happening.

Queremos mudar a narrativa porque é uma forma também we want|||narrative||||| We want to change the narrative because it's also a way of

que eu acredito que podemos combater o racismo. ||believe|||fight|| that I believe we can fight racism.

O racismo, que é esse sistema de opressão. |||||||oppression Racism, which is this system of oppression.

Nós temos que ter oportunidades para nos pronunciar, para dizer, |||||||speak out|| We have to have opportunities to speak out, to say,

mas para dizermos, também temos que criar condições para sermos ouvidos. ||saying|||||conditions||be|heard But in order to say it, we also have to create the conditions to be heard.

Temos que ser ouvidos também. We need to be heard too.

Quando nós dizemos e ouvimos, ||||we hear When we say and listen,

nós estamos assumindo uma posição. ||assuming|| we are taking a stand.

A partir dessa posição, nós podemos agir, ||||||act From that position, we can act,

no contexto do que é o combate ao racismo, neste caso. ||||||combat|||in this| in the context of fighting racism, in this case.

É uma coisa que não é assim tão fácil de coordenar. ||||||||||koordinieren ||||||that||||coordinate It's something that's not so easy to coordinate.

Uma vez, fui ao hospital, com a cabeça aberta, Once, I went to the hospital with my head open,

tive que levar sete pontos de um lado e quatro pontos do outro. I had to have seven stitches on one side and four stitches on the other.

A médica de serviço veio e começou a me costurar, |||||||||nähte ||||she came|||||to stitch The doctor on duty came and started stitching me up,

eu me virei para essa senhora e disse: ||turned||||| I turned to this lady and said:

"Olha, está doendo". ||hurting "Look, it hurts".

E ela: "Mas está doendo ou está fingindo?" ||||hurting|||pretending And she: "But is it hurting or are you faking it?"

E eu disse: "Está doendo mesmo!" And I said: "It really hurts!"

E ela: "Não pode estar doendo, porque já dei uma ampola e meia de anestesia". ||||||||||Ampulle||||Anästhesie |||||hurting|||gave||ampoule||||anesthesia And she: "It can't be hurting, because I've already given you an ampoule and a half of anesthesia".

E eu: "Mas está doendo". ||||hurting And I said: "But it hurts.

E ela continuou a costurar. And she continued to sew.

De repente, ela se vira para mim e diz assim: |suddenly|||turns|||||like this Suddenly, she turns to me and says:

"Pronto, já não dói, já lhe dei mais anestesia". |||it hurts|||gave you|| "Okay, it doesn't hurt anymore, I've given you more anesthetic".

Ela decidiu. She decided.

Agora, voltamos aos quatro passos que nós temos: |return|to||steps||| Now, back to the four steps we have:

dizer, ouvir, nos posicionarmos e também agir. |||position ourselves|||act saying, listening, positioning ourselves and also acting.

A médica realmente agiu, |||acted The doctor really acted,

mas ela não se posicionou. but she didn't take a stand.

Acho que é algo que acontece muitas vezes com o racismo. |||||happens||||| I think it's something that often happens with racism.

Há muitas pessoas que querem combater o racismo, There are many people who want to fight racism,

mas não falam sobre o racismo.

Agem, muitas vezes, mas não falam sobre o racismo. Alter|||||||| they age||||||||

Há muitas etapas que nós, provavelmente, saltamos ||||||we skip

e achamos que estamos contribuindo para esse combate, |we think||||||

mas temos que tentar coordenar esses três passos.

Não é fácil, mas eu acho que vale a pena tentar.

Eu queria agora terminar a minha palestra ||||||Vortrag ||||||lecture

porque sei que não é fácil tentarmos agir |||||||act because I know it's not easy to try to act

e não é fácil visualizar qual é o problema. ||||visualize|||| and it's not easy to see what the problem is.

Eu comecei esta minha palestra dizendo: ||||lecture| I began my talk by saying:

"Eu sou uma mulher negra."

"Eu sou uma mulher que foi violada na frente do seu marido |||woman|||raped|||||husband

e que amamentou o filho do seu agressor, e ainda deu o seu próprio filho ||still still breastfeeding|||||||||||| ||nursed||son||||||||||

para o trabalho forçado na casa desse mesmo agressor". |||forced|||||

Eu não quero continuar a repetir esta história. |||||repeat||

Eu não quero continuar a falar deste lugar de manifestação. |||||||||demonstration

Eu quero mudar essa história, não quero continuar a ser a vítima. |||||||||||victim I want to change this story, I don't want to be the victim any more.

Eu não quero que o meu marido continue a ser o... I don't want my husband to continue to be the...

como é que se chama a pessoa que não faz nada, ||||is called|||||| what do you call the person who does nothing?

que não consegue fazer nada?

... o impotente. |der Impotente |impotent

Não quero que a outra mulher, a mulher branca, neste caso, |||||woman||woman||in this|

seja a pessoa que está passiva. |||||passive

Eu não quero que o homem branco continue a ser o meu agressor. |||||man|||||||

Quero mudar essa história, mas não vou conseguir mudá-la sozinha. ||||||||change|it|alone I want to change this story, but I won't be able to change it alone.

E vou precisar da ajuda de vocês. And I'm going to need your help.

Eu vou pedir a todos os homens brancos que se levantem, ||||||men|white||| I'm going to ask all white men to stand up,

por favor, please,

e digam a frase que vou dizer, depois de mim, está bem? and say the sentence I'm going to say, after me, okay?

"Eu sou um homem branco". "I'm a white man".

(Homens) Eu sou um homem branco. ||||man|

Obrigada. Podem sentar. Thank you, you can sit down.

Vou pedir também a todas as mulheres brancas que se levantem ||||||women|||| I will also ask all white women to stand up

por favor, please| please,

e que digam a frase depois de mim:

"Eu sou uma mulher branca". |||woman|white

(Mulheres) Eu sou uma mulher branca. Women|||||white

Obrigada.

Peço a todos os homens negros que se levantem I ask|||||||| I ask all black men to stand up

e que digam, depois de mim:

"Eu sou um homem negro". I||||

(Homem) Eu sou um homem negro.

Obrigada.

Peço a todas as mulheres negras que se levantem |||||black||| I ask all black women to stand up

e digam, depois de mim: and||||