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Podcast do projeto Querino (*Generated Transcript*), 5. Os piores patrões - Part 1

5. Os piores patrões - Part 1

Antes de começar, um aviso. Este episódio contém relatos de casos de assédio sexual

e assédio moral, então fique a se alerta. Eu sou o Tiago Rogero, e este é o podcast

do Projeto Quirino, produzido pela Rádio Novelo.

Tem uma novela que fez muito sucesso nos anos 80, Sim, a Moça. A trama era toda numa

cidade fictícia do interior de São Paulo, nos anos que antecederam a abolição. E o

protagonismo, claro, como uma boa novela brasileira, era branco. Tinha uma figura lá que era o

Irmão do Quilombo, o nome do personagem era esse. Era tipo um zorro, um Batman, um

sujeito mascarado que entrava na senzala da fazenda e libertava os escravizados. Daí

num ponto lá eles finalmente revelam a identidade dele. E era um homem branco. Mas nem é isso

que me chama atenção nessa novela. É a cena final. A Lei Áurea já tinha sido assinada,

e daí estava tocando essa música enquanto mostrava um grupo enorme de pessoas andando

em direção à fazenda. Os homens estavam de terno e chapéu, alguns estavam de boina,

e as mulheres de camisa de linho, saia comprida, lenço no cabelo, todo mundo branco.

Meu Deus, os italianos!

A única personagem negra nessa cena é a Bá, interpretada pela grande Chica Xavier. Ela era

uma escravizada da fazenda, mas ela trabalhava na casa, doméstica. Na época da escravidão se

chamava também Mucama. E a Bá tinha sido também ama de leite da protagonista. Ah,

sim, a moça. A única coisa que a personagem diz na cena toda é isso aqui. Ela tá segurando um

bebê branco dos patrões na sacada, olhando para os italianos que acabaram de chegar.

O que é que eles estão falando, senhora? Eu não sei, Bá. O que que acho de língua essa?

É italiano, Bá. Italiano. Hum, eu não gostei deles.

Daí ela sai andando pela sacada, olhando feio para os italianos, e entra na casa. E assim a

moça começa a falar com aquela multidão que tinha acabado de chegar. Diga a eles que são

todos bem-vindos à Fazenda Araruna. Que eles ficarão alojados da melhor maneira possível,

por enquanto. Mas nós cuidaremos para que todos possam construir as suas casas. Diga a eles que

eles são livres para andarem pela fazenda, as crianças para brincar, mas tomem cuidado com o

bebê. Diga também que depois que eles descansarem eu chamarei um a um para conhecê-los melhor.

Daremos um jeito de nos entender. Daí assim a moça fala mais um pouquinho, entra esta música

de fundo e a câmera começa a mostrar um monte de pés caminhando. Pés descalços.

A câmera depois se move para um contraluz visto de baixo. Dá para ver só as silhuetas das pessoas,

mas dá para perceber que os homens, por exemplo, não tem chapéu, nem terno e nem sequer camisa.

A câmera finalmente mostra o rosto das pessoas. E são pessoas negras. São os ex-escravizados da

fazenda. Os italianos chegaram, os negros estão indo embora. O que mais me incomoda nessa cena

é essa ideia que está cristalizada até hoje na mente das pessoas dessa transição quase que automática

entre o trabalho escravo e o trabalho livre. Como se tivesse sido de uma hora para outra,

como se já não tivesse começado muito antes, porque havia muitas pessoas negras que tinham

conquistado a própria liberdade e já trabalhavam livres há muito tempo. E como se o europeu

não tivesse sido trazido para finalmente superar uma inaptidão do trabalhador africano e afrodescendente.

Como se o negro fosse um incapaz, um preguiçoso. Como se agora o país enfim pudesse avançar,

não porque acabaram com a obscenidade que foi a escravidão, mas porque o trabalho seria

finalmente executado por mãos mais capazes, o grande trabalhador europeu.

Você sabe por que que houve um incentivo à migração europeia, né? Já que não dava mais

para explorar, a elite branca e as autoridades queriam dizimar a parcela negra, branquear a

população. E olha, aqui nada contra os italianos que vieram, muitos de origem humilde. E nem foram

os italianos que vieram nessa época, espanhóis e portugueses também. A gente sabe que muitos

deles acabaram também explorados pela boa gente rica, trabalhando muito e ganhando quase nada.

Mas a gente sabe também que num país que foi construído graças a mais de 300 anos de escravidão,

o simples fato de serem brancos, europeus, de terem os olhos claros, já configurava um privilégio e

uma baita diferencial no mercado de trabalho na hora de disputar um emprego com uma pessoa negra.

Mas o que realmente importa aqui para mim, é que diferentemente do que está cristalizado na mente

das pessoas, o trabalho no Brasil não começou quando foi assinada a Lei Áurea. Não começou

quando a mão de obra negra foi substituída pela mão de obra europeia, que nem na novela.

Se teve um povo que sempre trabalhou no Brasil, foi o negro.

Eu sou Blue Sleede, Mafra. Eu nasci em Cururu, por interior do Maranhão. É uma cidade que fica

mais ou menos a seis horas de São Luís, da capital do Maranhão. E meus pais eram camponeses.

E é uma questão de acabar também, de uma vez por todas, com essa ideia do escravizado

ignorante, desprovido de conhecimento. Um bicho que foi colocado ali só para executar o que era

mandado. Os povos africanos que foram trazidos por Brasil trouxeram consigo suas tecnologias,

e isso está marcado já na chegada dos primeiros, lá no século 16. Eram povos que vinham de sociedades

que já desenvolviam a pecuária, por exemplo, ou então sistemas agrícolas complexos.

Nos engenhos, muitos africanos chegavam e já eram colocados como mestres de açúcar,

que era a principal função na parte do beneficiamento do açúcar, de transformação do

melasso em açúcar de fato, refinado. Mestre de açúcar era um posto alto na hierarquia.

Ou então se a gente pensar no ciclo do ouro. No começo, os exploradores eram basicamente

catadores, encontrando aqui e ali as pepitas. Mas uma técnica trazida pelos africanos mudou

esse jogo. O nome era bateia, e servia para tirar o ouro que vinha no curso da água. Foi também por

causa dos africanos que começaram a extrair ouro do cascalho, das encostas dos morros. Porque era

uma atividade que eles já desempenhavam nos seus países, no continente africano,

que acabaram trazendo para cá. Na África Central, onde hoje é o Zimbábue, o processo de fundição

do minério de ferro já era conhecido desde antes de 1500. Até os 12 anos, eu trabalhava na roça

com meus pais. A gente nunca teve Natal, porque o Natal, para a gente, a gente passava dentro daquele

poção de manjoca, tirando manjoca para fazer farinha. Então a gente não tem tradição de Natal lá em casa.

Eu amei uma árvore de Natal na minha vida. E aos 12 anos eu vim para o Pará, morar com meu irmão,

ser babá do meu sobrinho. Tem um alemão, o Barão de Eschwege, ele fundou a primeira siderúrgica do

Brasil, a Patriótica, em Minas Gerais, em 1812. E quem trabalhava, claro, eram os escravizados. E o

barão se apropriou de um método trazido por esses africanos, o cadinho, que é um tipo de recipiente

com formato de pote, que é usado para fundir metais. O alemão fez lá uma pequena adaptação no cadinho,

e isso potencializou a capacidade de produção dos fornos. Foi uma revolução tecnológica na época.

Hoje, tem um monte de livro e de faculdade de engenharia que homenageiam o barão, que é chamado

de pioneiro da siderurgia no Brasil. Dos africanos que ensinaram isso a ele, não se sabe nem o nome.

O meu irmão era sargento do Exército, e ele passava muito tempo, de três meses para a mata. E eu morava,

ficava com a minha cunhada, a mãe dela, a família dela morava com ela, na casa do meu irmão. E aí eu

tinha que lavar roupa para 15 pessoas na casa.

A historiadora Natália Garcia Pinto analisou 244 anúncios de compra, venda e aluguel de escravizados

homens, publicados ali por volta de 1850, no Rio Grande do Sul. Ela listou 44 profissões diferentes.

Cozinheiro, pintor, marinheiro, alfaiate, marceneiro, ferreiro, charqueador, tanueiro, que eu precisei

jogar no Google para saber o que é. Quer dizer, não dá para dizer que faltava qualificação, né?

E tinham também, claro, assunções que não exigiam tanta qualificação ou especialização,

até porque os escravizados precisavam fazer tudo. Os senhores não podiam mover uma palha.

Eu tinha que limpar a casa, eu não podia comer as comidas que eles comiam normalmente.

Quando um dia aqui o ferro me deu um choque, aí eu joguei o ferro no chão, quebrou e ela me botou na rua.

Tem vários relatos de viajantes estrangeiros que ficavam impressionados com a forma exagerada

com que a mão de obra escrava era empregada no Brasil. Por exemplo, mesmo não faltando animais

na carga, os senhores preferiam que o transporte fosse feito por pessoas escravizadas puxando as

carroças. Eram muito comuns também umas cadeirinhas. Para o rico não precisar andar,

não precisar pisar na rua, ele era levado de um lado para o outro carregado.

Tem um relato de um viajante específico que é perfeito para ilustrar tudo isso.

Está numa pesquisa do historiador Claudio Honorato. Ele conta lá que esse viajante,

um estadunidense, tinha passado uns dias no Rio. Aí uma vez ele estava num escritório de advocacia.

Um dos sócios pegou um pacote pequeno e entregou para um rapaz de 18 anos, filho de uma boa família,

que tinha começado a trabalhar por lá. E o sócio pediu para o rapaz levar aquele pacotinho para

uma outra firma que ficava lá nas Redondezas. Daí esse viajante, que estava vendo a cena toda,

falou assim. O jovem olhou para o pacotinho, olhou para o comerciante, segurou o pacote

entre o polegar e o indicador, tornou a olhar novamente para o comerciante e para o pacote,

meditou um momento, saiu porta afora e, depois de dar alguns passos, chamou um negro que,

atrás dele, levou o pacote para o destinatário. E obviamente as pessoas negras não trabalhavam

só na condição de escravizados. Foi como trabalhadores livres também. Afinal, e a gente

já falou sobre isso, mesmo durante o período da escravidão havia um contingente enorme de pessoas

negras que já tinham conquistado a própria liberdade. E essas pessoas foram responsáveis

pelas criações dos primeiros sindicatos de trabalhadores do país. O sindicato que costuma

ser chamado como o primeiro do Brasil surgiu já na época da República, em 1903, e era o dos

estivadores do Porto do Rio, que eram majoritariamente homens negros. Aí eu comecei também

a trabalhar em casa de família, cuidando de uma senhora, limpando o quintal, enfim, como babá mesmo.

E como eu tinha bastante facilidade, aprendi a cozinhar muito rápido. Eu já com 16 anos,

era chefe de cozinha de um dos melhores restaurantes da Alta Mira.

O que marcou a contribuição portuguesa, europeia e branca em todos esses séculos de formação do

Brasil, o que marcou essa contribuição foi sobretudo a preguiça. Essa história de que o escravizado

era preguiçoso surgiu graças ao projeto político que queria desqualificar a população negra e

legitimar as políticas públicas de imigração. E a preguiça das elites era tanta que as mães

brancas não podiam nem dar de mamar a seus próprios bebês. Isso está representado na figura da ama de

Chica Xaviera. No começo, tinha até uma crença de que o leite das africanas era mais forte. Depois,

quando a classe médica ganhou mais força no Brasil, começaram a espalhar que, na verdade,

o leite das mulheres negras era perigoso para os bebês brancos. Mas a prática estava tão enraizada

que as madames continuaram colocando mulheres escravizadas para amamentar seus bebês, que nem

a imagem da Chica Xaviera, e sim a moça. Era um sinal de status ter uma ama de leite. E era uma

fonte de renda também, porque a escravizada, quando ficava grávida, já começava a ser anunciada pelos

patrões em jornais, colocada para aluguel. As amas de leite mais valorizadas eram as que tinham

acabado de dar à luz. E se acha que a mãe negra podia levar junto o próprio filho para poder amamentar?

Nada disso. Se a ama viesse desacompanhada do próprio bebê, tinha madame que pagava até o triplo.

Daí, para poder lucrar ainda mais, tinha muito senhor que desaparecia com os filhos dessas mulheres

negras. Desaparecia mesmo, vendia, abandonava na rua, deixava na roda dos expostos, que era uma

organização da igreja que cuidava das crianças abandonadas. Enfim, se a gente parar para pensar,

não é muito diferente do que acontece hoje com a figura da babá, né? Não essa parte de desaparecer

com os filhos, claro, mas quantas babás não passam a vida inteira tomando conta do filho dos outros

sem poder criar os seus? Ou então, sem poder pelo menos estar tão próxima da própria família quanto gostaria?

Aí foi quando eu vim para Belém, né? Continuar meus estudos e trabalhar. Até os 15 anos eu não sabia

nem assinar o meu nome, porque o meu pai não deixava as mulheres estudar lá em casa. E aos 16 anos eu vim para Belém

e comecei, continuei meus estudos e trabalhando sempre em casa de família.

A profissão de babá ainda guarda muitos elementos desse período da escravidão.

Mas não é a única. Em boa parte dos casos, a babá também precisa ser cozinheira, passadeira,

faxineira, precisa ser até gestora do lar e da vida das pessoas que moram ali. Ela é uma trabalhadora

doméstica. Uma profissão que nem de longe recebe a remuneração, nem o reconhecimento por todo esse

tipo de funções. A origem do trabalho doméstico aqui no Brasil está na escravização, porque durante o período

escravocrata, a gente tinha ali a separação de algumas meninas, de algumas mulheres para trabalharem

nas casas dos senhores. E esse trabalho incluía serviços domésticos, apoio às sinais.

Esta é a professora e pesquisadora Danila Kau. E essa prática hoje, ela ainda guarda resquícios

sociais. Ainda existe essa cultura da servidão, de que uns devem ser servidos enquanto outros servem.

Existe uma cultura também que desclassifica esse tipo de trabalho como um trabalho digno,

que deve ser bem remunerado, que esse tipo de trabalho é como se ele nem fosse um trabalho.

A sociedade brasileira tem muitos resquícios da escravidão, muitos. Mas é difícil pensar numa

situação profissional em que os patrões assumam tanto a postura de senhor e de sinhar, quanto no trabalho doméstico.

Tem uma frase da Sueli Carneiro, que é uma pesquisadora muito importante para a nossa pesquisa,

que ela diz o seguinte, que o trabalho doméstico é um elemento heurístico para que a gente compreenda

as relações sociais no Brasil. Então, olhando o trabalho doméstico, a gente pode entender muito

de como são constituídas as hierarquias sociais e de valor na nossa sociedade.

Não sei se existe algo mais brasileiro do que essa dependência que a classe média e as elites têm do trabalho doméstico.

Tem uma outra autora que é muito importante para a gente, que é a Lélia Gonzalez, e ela fala como as mulheres negras

tipicamente são vistas, são consideradas no Brasil. Então, tem a ideia da mucamba.

E isso continua, permeia ainda o imaginário. E além disso, ainda tem duas relações aí,

que é a mulher negra, que deve prestar serviços para a família, essa lógica da cultura da servidão, do racismo e tudo mais,

mas tem ainda as violências relacionadas, por exemplo, à violência sexual, de acharem que aquela mulher que está ali,

ela está ali não para prestar um serviço de cuidar da casa ou serviços domésticos, mas está ali para servir

aquela família, com toda a amplitude que esse termo pode gerar.

Quando eu vim para Belém, eu fui trabalhar em uma residência que eu dormia na cozinha, numa rede, e o patrão me assediava direto.

Ele deixava a esposa sair, voltava para casa e ficava me assediando.

Aqui de novo, a Lucy Leide Mafra, que a gente está ouvindo ao longo do episódio.

Quando anoteci, eu já pensava, para mim era um terror. E eu não podia falar nada, porque ela ia acordar,

e o medo dela ia mandar embora, eu não sabia o que fazer.

Até que um dia eu falei para a vizinha, e a vizinha me disse, olha, conta para a esposa dele.

Quando ela chegou, eu contei, e ela me botou na rua, tamo ali a 9 horas da noite, eu sem conhecer ninguém na cidade praticamente.

E ela ainda prendeu minhas coisas, eu só peguei parte das minhas roupas que ela jogou no chão, na rua,

e que eu era uma sem-vergonha, que eu estava dando confiança para o marido dela, e o marido dela não tinha feito isso.

Eu estava com 16, e eu não tinha para onde ir, eu tive que ficar em cima de uma calçada aqui.

E muitas outras casas que eu tive que passar por isso, não foi só uma vez.

Teve casas que eu tinha que escorar o guarda-roupa à noite, eu tinha que escorar a máquina de costura na porta,

porque o patrão fazia isso com todas, e nós éramos cinco empregadas,

mas em compensação era um salário mínimo dividido para todas, para as cinco.

A gente não podia sentar no sofá deles, e eu tinha que sentar num banquinho,

porque eu não podia sentar em nenhuma outra cadeira que não fosse aquele banquinho de madeira, para não contaminar eles.

Então, assim, eu não digo que o trabalho doméstico é um dos piores trabalhos, mas eu te digo que tem os piores patrões, tem.

E quando se fala que a profissão de trabalhadora doméstica é vista como algo menor,

algo que nem é considerado trabalho, ou que é considerado menos trabalho,

isso não é no sentido figurado, mas literal.

A CLT, Consolidação das Leis do Trabalho, que regulamentou as relações trabalhistas no Brasil, é de 1943.

O trabalho doméstico ficou de fora, e foi assim por mais 70 anos. 70 anos.

Só em 2013, com a aprovação da PEC das Domestas,

que sofreu muitos ataques das patroas, dos patrões, da classe política e da mídia,

é que as trabalhadoras domésticas finalmente tiveram seus direitos equiparados aos das demais profissões.

Demorou 70 anos. E só aconteceu por causa da luta dessas mulheres.

Até para a gente saber que a conquista das mulheres negras empregadas domésticas

foi uma conquista que não foi nenhum homem branco ou uma mulher branca que deu.

Foram as próprias trabalhadoras domésticas, foram as próprias mulheres negras.

Esta é a Elisabeth Pinto, professora e pesquisadora.

Ela é a biógrafa de uma mulher que simboliza toda essa luta.

A que começou tudo isso.

Se não fosse por essa mulher, talvez até hoje as trabalhadoras domésticas

ainda estivessem sem esses direitos.

Dona Laudelina de Campos Melo é uma heroína da nossa história.

Ela conseguiu não só elaborar teoricamente, mas intervir politicamente.

Foi uma mulher que esteve à frente do seu tempo, mas também no front de várias áreas.

Na área do trabalho, com a questão das empregadas negras,

era uma mulher que lutou pela sua dignidade, pela dignidade do povo negro.

Dona Laudelina era uma mulher de coragem,

que teve coragem de defender a sua dignidade pessoal e a dignidade do seu povo.

Primeiro já vou explicar por que a Laudelina de Campos Melo é revolucionária.

Pensa na profissão de trabalhadora doméstica hoje.

Aliás, eu estou falando sempre no feminino, porque mais de 90% são mulheres.

E a maioria entre elas é formada por mulheres negras.

Bom, mas pensa nessa profissão hoje.

Agora pensa quase 100 anos atrás.

Imagina como devia ser a relação entre patrão e trabalhadora.

Dona Laudelina nasceu numa família de empregadas domésticas,

como a maioria dos nossos antepassados, das nossas antepassadas,

nossas bisavós, das taravós.

Raras são aquelas que tiveram outras oportunidades.

Então, a mãe da Laudelina era empregada doméstica.

Uma vez, a Laudelina viu a mãe dela sendo chicoteada pelos patrões.

E isso em 1914, quase 30 anos depois da abolição.

Em 1936, a Laudelina criou o que é considerado o primeiro sindicato

de trabalhadoras domésticas do Brasil,

a Associação de Empregadas Domésticas de Santos.

Ela era uma pessoa que tinha o máximo de consciência possível para a sua época.

Então, ela não admitia a injustiça e a humilhação.

O trabalho, sim, tudo bem. Ela sempre trabalhou e defendeu as domésticas.

Em Santos, quando ela funda a primeira Associação de Empregadas Domésticas,

aí ela já o faz pela necessidade dessas empregadas.

E vendo a realidade da classe trabalhadora,

ela começa a lutar pelas empregadas domésticas, pelos direitos,

para que essas mulheres pudessem ter os mesmos direitos dos trabalhadores.

A história da dona Laudelina é tão incrível que olha isso.

Quando teve a Segunda Guerra Mundial, ela se alistou e serviu ao Exército Brasileiro.

Ela ficava de prontidão no Brasil, num forte em Praia Grande, na Baixada Santista.

Daí, nos anos 50, a Laudelina se mudou para Campinas.

Campinas, caso você não saiba, é uma cidade que tem um enorme histórico racista.

Tinha muita fazenda de café e tem registros de pessoas sendo mantidas escravizadas por ali até 1920.

E lá em Campinas, a dona Laudelina criou uma outra associação para as trabalhadoras domésticas.

Quando veio o golpe militar de 1964, a associação acabou fechada.

Ela era uma mulher que estava no meio dos homens, lutando, pressionando politicamente.

Ela também pensava na educação.

5. Os piores patrões - Part 1 5. Die schlimmsten Chefs - Teil 1 5. The Worst Bosses - Part 1 5. Los peores jefes - Parte 1 5. Les pires patrons - Partie 1

Antes de começar, um aviso. Este episódio contém relatos de casos de assédio sexual

e assédio moral, então fique a se alerta. Eu sou o Tiago Rogero, e este é o podcast

do Projeto Quirino, produzido pela Rádio Novelo.

Tem uma novela que fez muito sucesso nos anos 80, Sim, a Moça. A trama era toda numa

cidade fictícia do interior de São Paulo, nos anos que antecederam a abolição. E o

protagonismo, claro, como uma boa novela brasileira, era branco. Tinha uma figura lá que era o

Irmão do Quilombo, o nome do personagem era esse. Era tipo um zorro, um Batman, um

sujeito mascarado que entrava na senzala da fazenda e libertava os escravizados. Daí

num ponto lá eles finalmente revelam a identidade dele. E era um homem branco. Mas nem é isso

que me chama atenção nessa novela. É a cena final. A Lei Áurea já tinha sido assinada,

e daí estava tocando essa música enquanto mostrava um grupo enorme de pessoas andando

em direção à fazenda. Os homens estavam de terno e chapéu, alguns estavam de boina,

e as mulheres de camisa de linho, saia comprida, lenço no cabelo, todo mundo branco.

Meu Deus, os italianos!

A única personagem negra nessa cena é a Bá, interpretada pela grande Chica Xavier. Ela era

uma escravizada da fazenda, mas ela trabalhava na casa, doméstica. Na época da escravidão se

chamava também Mucama. E a Bá tinha sido também ama de leite da protagonista. Ah,

sim, a moça. A única coisa que a personagem diz na cena toda é isso aqui. Ela tá segurando um

bebê branco dos patrões na sacada, olhando para os italianos que acabaram de chegar.

O que é que eles estão falando, senhora? Eu não sei, Bá. O que que acho de língua essa?

É italiano, Bá. Italiano. Hum, eu não gostei deles.

Daí ela sai andando pela sacada, olhando feio para os italianos, e entra na casa. E assim a

moça começa a falar com aquela multidão que tinha acabado de chegar. Diga a eles que são

todos bem-vindos à Fazenda Araruna. Que eles ficarão alojados da melhor maneira possível,

por enquanto. Mas nós cuidaremos para que todos possam construir as suas casas. Diga a eles que

eles são livres para andarem pela fazenda, as crianças para brincar, mas tomem cuidado com o

bebê. Diga também que depois que eles descansarem eu chamarei um a um para conhecê-los melhor.

Daremos um jeito de nos entender. Daí assim a moça fala mais um pouquinho, entra esta música

de fundo e a câmera começa a mostrar um monte de pés caminhando. Pés descalços.

A câmera depois se move para um contraluz visto de baixo. Dá para ver só as silhuetas das pessoas,

mas dá para perceber que os homens, por exemplo, não tem chapéu, nem terno e nem sequer camisa.

A câmera finalmente mostra o rosto das pessoas. E são pessoas negras. São os ex-escravizados da

fazenda. Os italianos chegaram, os negros estão indo embora. O que mais me incomoda nessa cena

é essa ideia que está cristalizada até hoje na mente das pessoas dessa transição quase que automática

entre o trabalho escravo e o trabalho livre. Como se tivesse sido de uma hora para outra,

como se já não tivesse começado muito antes, porque havia muitas pessoas negras que tinham

conquistado a própria liberdade e já trabalhavam livres há muito tempo. E como se o europeu

não tivesse sido trazido para finalmente superar uma inaptidão do trabalhador africano e afrodescendente.

Como se o negro fosse um incapaz, um preguiçoso. Como se agora o país enfim pudesse avançar,

não porque acabaram com a obscenidade que foi a escravidão, mas porque o trabalho seria

finalmente executado por mãos mais capazes, o grande trabalhador europeu.

Você sabe por que que houve um incentivo à migração europeia, né? Já que não dava mais

para explorar, a elite branca e as autoridades queriam dizimar a parcela negra, branquear a

população. E olha, aqui nada contra os italianos que vieram, muitos de origem humilde. E nem foram

os italianos que vieram nessa época, espanhóis e portugueses também. A gente sabe que muitos

deles acabaram também explorados pela boa gente rica, trabalhando muito e ganhando quase nada.

Mas a gente sabe também que num país que foi construído graças a mais de 300 anos de escravidão,

o simples fato de serem brancos, europeus, de terem os olhos claros, já configurava um privilégio e

uma baita diferencial no mercado de trabalho na hora de disputar um emprego com uma pessoa negra.

Mas o que realmente importa aqui para mim, é que diferentemente do que está cristalizado na mente

das pessoas, o trabalho no Brasil não começou quando foi assinada a Lei Áurea. Não começou

quando a mão de obra negra foi substituída pela mão de obra europeia, que nem na novela.

Se teve um povo que sempre trabalhou no Brasil, foi o negro.

Eu sou Blue Sleede, Mafra. Eu nasci em Cururu, por interior do Maranhão. É uma cidade que fica

mais ou menos a seis horas de São Luís, da capital do Maranhão. E meus pais eram camponeses.

E é uma questão de acabar também, de uma vez por todas, com essa ideia do escravizado

ignorante, desprovido de conhecimento. Um bicho que foi colocado ali só para executar o que era

mandado. Os povos africanos que foram trazidos por Brasil trouxeram consigo suas tecnologias,

e isso está marcado já na chegada dos primeiros, lá no século 16. Eram povos que vinham de sociedades

que já desenvolviam a pecuária, por exemplo, ou então sistemas agrícolas complexos.

Nos engenhos, muitos africanos chegavam e já eram colocados como mestres de açúcar,

que era a principal função na parte do beneficiamento do açúcar, de transformação do

melasso em açúcar de fato, refinado. Mestre de açúcar era um posto alto na hierarquia.

Ou então se a gente pensar no ciclo do ouro. No começo, os exploradores eram basicamente

catadores, encontrando aqui e ali as pepitas. Mas uma técnica trazida pelos africanos mudou

esse jogo. O nome era bateia, e servia para tirar o ouro que vinha no curso da água. Foi também por

causa dos africanos que começaram a extrair ouro do cascalho, das encostas dos morros. Porque era

uma atividade que eles já desempenhavam nos seus países, no continente africano,

que acabaram trazendo para cá. Na África Central, onde hoje é o Zimbábue, o processo de fundição

do minério de ferro já era conhecido desde antes de 1500. Até os 12 anos, eu trabalhava na roça

com meus pais. A gente nunca teve Natal, porque o Natal, para a gente, a gente passava dentro daquele

poção de manjoca, tirando manjoca para fazer farinha. Então a gente não tem tradição de Natal lá em casa.

Eu amei uma árvore de Natal na minha vida. E aos 12 anos eu vim para o Pará, morar com meu irmão,

ser babá do meu sobrinho. Tem um alemão, o Barão de Eschwege, ele fundou a primeira siderúrgica do

Brasil, a Patriótica, em Minas Gerais, em 1812. E quem trabalhava, claro, eram os escravizados. E o

barão se apropriou de um método trazido por esses africanos, o cadinho, que é um tipo de recipiente

com formato de pote, que é usado para fundir metais. O alemão fez lá uma pequena adaptação no cadinho,

e isso potencializou a capacidade de produção dos fornos. Foi uma revolução tecnológica na época.

Hoje, tem um monte de livro e de faculdade de engenharia que homenageiam o barão, que é chamado

de pioneiro da siderurgia no Brasil. Dos africanos que ensinaram isso a ele, não se sabe nem o nome.

O meu irmão era sargento do Exército, e ele passava muito tempo, de três meses para a mata. E eu morava,

ficava com a minha cunhada, a mãe dela, a família dela morava com ela, na casa do meu irmão. E aí eu

tinha que lavar roupa para 15 pessoas na casa.

A historiadora Natália Garcia Pinto analisou 244 anúncios de compra, venda e aluguel de escravizados

homens, publicados ali por volta de 1850, no Rio Grande do Sul. Ela listou 44 profissões diferentes.

Cozinheiro, pintor, marinheiro, alfaiate, marceneiro, ferreiro, charqueador, tanueiro, que eu precisei

jogar no Google para saber o que é. Quer dizer, não dá para dizer que faltava qualificação, né?

E tinham também, claro, assunções que não exigiam tanta qualificação ou especialização,

até porque os escravizados precisavam fazer tudo. Os senhores não podiam mover uma palha.

Eu tinha que limpar a casa, eu não podia comer as comidas que eles comiam normalmente.

Quando um dia aqui o ferro me deu um choque, aí eu joguei o ferro no chão, quebrou e ela me botou na rua.

Tem vários relatos de viajantes estrangeiros que ficavam impressionados com a forma exagerada

com que a mão de obra escrava era empregada no Brasil. Por exemplo, mesmo não faltando animais

na carga, os senhores preferiam que o transporte fosse feito por pessoas escravizadas puxando as

carroças. Eram muito comuns também umas cadeirinhas. Para o rico não precisar andar,

não precisar pisar na rua, ele era levado de um lado para o outro carregado.

Tem um relato de um viajante específico que é perfeito para ilustrar tudo isso.

Está numa pesquisa do historiador Claudio Honorato. Ele conta lá que esse viajante,

um estadunidense, tinha passado uns dias no Rio. Aí uma vez ele estava num escritório de advocacia.

Um dos sócios pegou um pacote pequeno e entregou para um rapaz de 18 anos, filho de uma boa família,

que tinha começado a trabalhar por lá. E o sócio pediu para o rapaz levar aquele pacotinho para

uma outra firma que ficava lá nas Redondezas. Daí esse viajante, que estava vendo a cena toda,

falou assim. O jovem olhou para o pacotinho, olhou para o comerciante, segurou o pacote

entre o polegar e o indicador, tornou a olhar novamente para o comerciante e para o pacote,

meditou um momento, saiu porta afora e, depois de dar alguns passos, chamou um negro que,

atrás dele, levou o pacote para o destinatário. E obviamente as pessoas negras não trabalhavam

só na condição de escravizados. Foi como trabalhadores livres também. Afinal, e a gente

já falou sobre isso, mesmo durante o período da escravidão havia um contingente enorme de pessoas

negras que já tinham conquistado a própria liberdade. E essas pessoas foram responsáveis

pelas criações dos primeiros sindicatos de trabalhadores do país. O sindicato que costuma

ser chamado como o primeiro do Brasil surgiu já na época da República, em 1903, e era o dos

estivadores do Porto do Rio, que eram majoritariamente homens negros. Aí eu comecei também

a trabalhar em casa de família, cuidando de uma senhora, limpando o quintal, enfim, como babá mesmo.

E como eu tinha bastante facilidade, aprendi a cozinhar muito rápido. Eu já com 16 anos,

era chefe de cozinha de um dos melhores restaurantes da Alta Mira.

O que marcou a contribuição portuguesa, europeia e branca em todos esses séculos de formação do

Brasil, o que marcou essa contribuição foi sobretudo a preguiça. Essa história de que o escravizado

era preguiçoso surgiu graças ao projeto político que queria desqualificar a população negra e

legitimar as políticas públicas de imigração. E a preguiça das elites era tanta que as mães

brancas não podiam nem dar de mamar a seus próprios bebês. Isso está representado na figura da ama de

Chica Xaviera. No começo, tinha até uma crença de que o leite das africanas era mais forte. Depois,

quando a classe médica ganhou mais força no Brasil, começaram a espalhar que, na verdade,

o leite das mulheres negras era perigoso para os bebês brancos. Mas a prática estava tão enraizada

que as madames continuaram colocando mulheres escravizadas para amamentar seus bebês, que nem

a imagem da Chica Xaviera, e sim a moça. Era um sinal de status ter uma ama de leite. E era uma

fonte de renda também, porque a escravizada, quando ficava grávida, já começava a ser anunciada pelos

patrões em jornais, colocada para aluguel. As amas de leite mais valorizadas eram as que tinham

acabado de dar à luz. E se acha que a mãe negra podia levar junto o próprio filho para poder amamentar?

Nada disso. Se a ama viesse desacompanhada do próprio bebê, tinha madame que pagava até o triplo.

Daí, para poder lucrar ainda mais, tinha muito senhor que desaparecia com os filhos dessas mulheres

negras. Desaparecia mesmo, vendia, abandonava na rua, deixava na roda dos expostos, que era uma

organização da igreja que cuidava das crianças abandonadas. Enfim, se a gente parar para pensar,

não é muito diferente do que acontece hoje com a figura da babá, né? Não essa parte de desaparecer

com os filhos, claro, mas quantas babás não passam a vida inteira tomando conta do filho dos outros

sem poder criar os seus? Ou então, sem poder pelo menos estar tão próxima da própria família quanto gostaria?

Aí foi quando eu vim para Belém, né? Continuar meus estudos e trabalhar. Até os 15 anos eu não sabia

nem assinar o meu nome, porque o meu pai não deixava as mulheres estudar lá em casa. E aos 16 anos eu vim para Belém

e comecei, continuei meus estudos e trabalhando sempre em casa de família.

A profissão de babá ainda guarda muitos elementos desse período da escravidão.

Mas não é a única. Em boa parte dos casos, a babá também precisa ser cozinheira, passadeira,

faxineira, precisa ser até gestora do lar e da vida das pessoas que moram ali. Ela é uma trabalhadora

doméstica. Uma profissão que nem de longe recebe a remuneração, nem o reconhecimento por todo esse

tipo de funções. A origem do trabalho doméstico aqui no Brasil está na escravização, porque durante o período

escravocrata, a gente tinha ali a separação de algumas meninas, de algumas mulheres para trabalharem

nas casas dos senhores. E esse trabalho incluía serviços domésticos, apoio às sinais.

Esta é a professora e pesquisadora Danila Kau. E essa prática hoje, ela ainda guarda resquícios

sociais. Ainda existe essa cultura da servidão, de que uns devem ser servidos enquanto outros servem.

Existe uma cultura também que desclassifica esse tipo de trabalho como um trabalho digno,

que deve ser bem remunerado, que esse tipo de trabalho é como se ele nem fosse um trabalho.

A sociedade brasileira tem muitos resquícios da escravidão, muitos. Mas é difícil pensar numa

situação profissional em que os patrões assumam tanto a postura de senhor e de sinhar, quanto no trabalho doméstico.

Tem uma frase da Sueli Carneiro, que é uma pesquisadora muito importante para a nossa pesquisa,

que ela diz o seguinte, que o trabalho doméstico é um elemento heurístico para que a gente compreenda

as relações sociais no Brasil. Então, olhando o trabalho doméstico, a gente pode entender muito

de como são constituídas as hierarquias sociais e de valor na nossa sociedade.

Não sei se existe algo mais brasileiro do que essa dependência que a classe média e as elites têm do trabalho doméstico.

Tem uma outra autora que é muito importante para a gente, que é a Lélia Gonzalez, e ela fala como as mulheres negras

tipicamente são vistas, são consideradas no Brasil. Então, tem a ideia da mucamba.

E isso continua, permeia ainda o imaginário. E além disso, ainda tem duas relações aí,

que é a mulher negra, que deve prestar serviços para a família, essa lógica da cultura da servidão, do racismo e tudo mais,

mas tem ainda as violências relacionadas, por exemplo, à violência sexual, de acharem que aquela mulher que está ali,

ela está ali não para prestar um serviço de cuidar da casa ou serviços domésticos, mas está ali para servir

aquela família, com toda a amplitude que esse termo pode gerar.

Quando eu vim para Belém, eu fui trabalhar em uma residência que eu dormia na cozinha, numa rede, e o patrão me assediava direto.

Ele deixava a esposa sair, voltava para casa e ficava me assediando.

Aqui de novo, a Lucy Leide Mafra, que a gente está ouvindo ao longo do episódio.

Quando anoteci, eu já pensava, para mim era um terror. E eu não podia falar nada, porque ela ia acordar,

e o medo dela ia mandar embora, eu não sabia o que fazer.

Até que um dia eu falei para a vizinha, e a vizinha me disse, olha, conta para a esposa dele.

Quando ela chegou, eu contei, e ela me botou na rua, tamo ali a 9 horas da noite, eu sem conhecer ninguém na cidade praticamente.

E ela ainda prendeu minhas coisas, eu só peguei parte das minhas roupas que ela jogou no chão, na rua,

e que eu era uma sem-vergonha, que eu estava dando confiança para o marido dela, e o marido dela não tinha feito isso.

Eu estava com 16, e eu não tinha para onde ir, eu tive que ficar em cima de uma calçada aqui.

E muitas outras casas que eu tive que passar por isso, não foi só uma vez.

Teve casas que eu tinha que escorar o guarda-roupa à noite, eu tinha que escorar a máquina de costura na porta,

porque o patrão fazia isso com todas, e nós éramos cinco empregadas,

mas em compensação era um salário mínimo dividido para todas, para as cinco.

A gente não podia sentar no sofá deles, e eu tinha que sentar num banquinho,

porque eu não podia sentar em nenhuma outra cadeira que não fosse aquele banquinho de madeira, para não contaminar eles.

Então, assim, eu não digo que o trabalho doméstico é um dos piores trabalhos, mas eu te digo que tem os piores patrões, tem.

E quando se fala que a profissão de trabalhadora doméstica é vista como algo menor,

algo que nem é considerado trabalho, ou que é considerado menos trabalho,

isso não é no sentido figurado, mas literal.

A CLT, Consolidação das Leis do Trabalho, que regulamentou as relações trabalhistas no Brasil, é de 1943.

O trabalho doméstico ficou de fora, e foi assim por mais 70 anos. 70 anos.

Só em 2013, com a aprovação da PEC das Domestas,

que sofreu muitos ataques das patroas, dos patrões, da classe política e da mídia,

é que as trabalhadoras domésticas finalmente tiveram seus direitos equiparados aos das demais profissões.

Demorou 70 anos. E só aconteceu por causa da luta dessas mulheres.

Até para a gente saber que a conquista das mulheres negras empregadas domésticas

foi uma conquista que não foi nenhum homem branco ou uma mulher branca que deu.

Foram as próprias trabalhadoras domésticas, foram as próprias mulheres negras.

Esta é a Elisabeth Pinto, professora e pesquisadora.

Ela é a biógrafa de uma mulher que simboliza toda essa luta.

A que começou tudo isso.

Se não fosse por essa mulher, talvez até hoje as trabalhadoras domésticas

ainda estivessem sem esses direitos.

Dona Laudelina de Campos Melo é uma heroína da nossa história.

Ela conseguiu não só elaborar teoricamente, mas intervir politicamente.

Foi uma mulher que esteve à frente do seu tempo, mas também no front de várias áreas.

Na área do trabalho, com a questão das empregadas negras,

era uma mulher que lutou pela sua dignidade, pela dignidade do povo negro.

Dona Laudelina era uma mulher de coragem,

que teve coragem de defender a sua dignidade pessoal e a dignidade do seu povo.

Primeiro já vou explicar por que a Laudelina de Campos Melo é revolucionária.

Pensa na profissão de trabalhadora doméstica hoje.

Aliás, eu estou falando sempre no feminino, porque mais de 90% são mulheres.

E a maioria entre elas é formada por mulheres negras.

Bom, mas pensa nessa profissão hoje.

Agora pensa quase 100 anos atrás.

Imagina como devia ser a relação entre patrão e trabalhadora.

Dona Laudelina nasceu numa família de empregadas domésticas,

como a maioria dos nossos antepassados, das nossas antepassadas,

nossas bisavós, das taravós.

Raras são aquelas que tiveram outras oportunidades.

Então, a mãe da Laudelina era empregada doméstica.

Uma vez, a Laudelina viu a mãe dela sendo chicoteada pelos patrões.

E isso em 1914, quase 30 anos depois da abolição.

Em 1936, a Laudelina criou o que é considerado o primeiro sindicato

de trabalhadoras domésticas do Brasil,

a Associação de Empregadas Domésticas de Santos.

Ela era uma pessoa que tinha o máximo de consciência possível para a sua época.

Então, ela não admitia a injustiça e a humilhação.

O trabalho, sim, tudo bem. Ela sempre trabalhou e defendeu as domésticas.

Em Santos, quando ela funda a primeira Associação de Empregadas Domésticas,

aí ela já o faz pela necessidade dessas empregadas.

E vendo a realidade da classe trabalhadora,

ela começa a lutar pelas empregadas domésticas, pelos direitos,

para que essas mulheres pudessem ter os mesmos direitos dos trabalhadores.

A história da dona Laudelina é tão incrível que olha isso.

Quando teve a Segunda Guerra Mundial, ela se alistou e serviu ao Exército Brasileiro.

Ela ficava de prontidão no Brasil, num forte em Praia Grande, na Baixada Santista.

Daí, nos anos 50, a Laudelina se mudou para Campinas.

Campinas, caso você não saiba, é uma cidade que tem um enorme histórico racista.

Tinha muita fazenda de café e tem registros de pessoas sendo mantidas escravizadas por ali até 1920.

E lá em Campinas, a dona Laudelina criou uma outra associação para as trabalhadoras domésticas.

Quando veio o golpe militar de 1964, a associação acabou fechada.

Ela era uma mulher que estava no meio dos homens, lutando, pressionando politicamente.

Ela também pensava na educação.