2. O pecado original - Part 1
Pouca gente estava lá na hora do grito da independência,
que a gente sabe que tem muito de mito, mas não deixa de ter acontecido.
Dom Pedro I estava no meio da viagem para conseguir o apoio da boa elite brasileira, dos escravistas,
quando ele recebeu a notícia de que o caldo tinha entornado,
e aí ele anunciou que o caldo tinha sido desmantelado.
O caldo tinha entornado e aí ele anunciou o rompimento com Portugal.
E era um grupo pequeno que acabou presenciando esse momento fundador da nação brasileira.
Estava o Dom Pedro, os criados dele, os escravizados,
porque afinal gente rica não pode até hoje nem lavar a própria cueca no Brasil,
imagine naquela época e imagine a realeza.
E estava também um grupo bem reservado de homens brancos.
E na verdade aquilo foi mais uma cavalgada, uma farra de garotos rumo a São Paulo.
A cavalgada tinha começado uns dias antes pela fazenda Santa Cruz,
que era a casa de veraneio da família Real.
É onde hoje é o bairro Santa Cruz, na zona oeste do Rio de Janeiro.
Aliás, essa fazenda chegou a ter de uma só vez mais de 2 mil escravizados.
Se você já ouviu que a família Real, depois imperial, não tinha escravizados,
já saiba que isso é laurota, tá?
Bom, a primeira parada da comitiva depois de sair do Rio foi em Santa Cruz.
E a segunda parada foi numa outra fazenda em São João Marcos, a uns 120 quilômetros do Rio.
A comitiva passou a noite ali e o dono dessa propriedade se juntou ao grupo.
Ali em São João Marcos o Joaquim se incorporou à comitiva,
mais cavaleiros se ofereceram para acompanhar.
E assim se deu o famoso Grito do Ipiranga, né?
Que é romantizado, né?
Com aqueles cavalos brancos e aquela coisa napoleônica.
Na verdade, estavam todos montados em bestas, né? Em burros,
porque cavalo nenhum aguentava essa jornada Rio-São Paulo.
Por mais que tenha sido um perrengue,
era um sinal de muito prestígio poder fazer parte dessa cavalgada,
poder compor a guarda de honra do futuro imperador.
E o que era necessário para estar nesse seleto grupo?
Além de ser homem, claro, e de ser branco,
precisava ter muito dinheiro. Muito dinheiro.
Você lembra de um dos objetivos principais dessa romaria, né?
Garantir para as elites que mesmo com a separação de Portugal,
a escravidão seria mantida.
Daí, quando chegava o Dom Pedro para fazer essa promessa,
não era só ele quem estava falando.
Eram também todos aqueles fazendeiros ricos que estavam acompanhando ele,
referendando ele, dando credibilidade.
E no meio dessa turma estava o Joaquim.
O Joaquim distribuía essa mão de obra
pelas fazendas que ele tinha na Serra Fluminense.
Nas 70 propriedades, ou quase 100 propriedades que ele tinha em toda a serra.
Números gigantescos, milhares de escravizados,
aquisição de terras novas para você desmatar e plantar o café,
e com isso você tinha alta produção de café.
Esse que está falando é o Aloísio.
Meu nome é Aloísio Clemente Maria Infante de Jesus Breves Beiler.
O Aloísio é advogado e pesquisador.
Sabe tudo da vida do Joaquim.
O Joaquim é contemporâneo do Barão de Mauá, que era um industrial,
foi o homem mais rico do Brasil na época.
O Joaquim alcançou o ponto mais alto de riqueza,
logo depois o Barão de Mauá.
Então, quer dizer, essas pessoas eram empresários,
empresários de grande sucesso.
O Joaquim era um empreendedor.
Se fosse hoje, Joaquim seria citado como exemplo
por tudo quanto é coach,
sujeito de visão, multiplicava dinheiro.
Ele era chamado de Rei do Café.
Está com saudades da novela Império
e das aventuras do Comendador José Alfredo?
Bom, Comendador é um título dado a pessoas
que se destacam por algum motivo.
E você sabia que em outras épocas
houve um comendador que foi praticamente
dono da maior parte das terras aqui do sul do estado?
Fomos atrás da história do Rei do Café.
Ah sim, o Joaquim era comendador.
Tem um peso essa palavra, comendador.
Era um título, uma ordem honorífica
concedida pelo Império,
em agradecimento pelos serviços prestados à nação.
E não só o Joaquim chegou a comendador
como o irmão dele também, o José de Souza Breves.
O Joaquim e o José eram os irmãos brasileiros.
E o Joaquim era o comendador.
É um nome que eu gosto muito, o Tempo dos Breves.
Foi um período de 100 anos, vamos dizer assim,
em que a família Breves dominou a região do Vale Fluminense.
O Vale Fluminense foi o maior produtor de café do mundo na época.
Os dois tinham dezenas de fazendas, dezenas.
Era tanta fazenda que o Joaquim dizia
que dava para fazer um negócio de café.
Por exemplo, São Joaquim da Grama,
que era a sede e residência do comendador Joaquim Breves.
São Joaquim da Grama era um verdadeiro palácio,
murada por muros altos, no alto de uma pequena colina.
Dali ele comandou e construiu o Império dele.
Então tem uma coisa que eu gosto muito,
que é a idade de Joaquim e o seu pai,
que é a idade de Joaquim e o seu pai.
E o Joaquim era o comendador.
E o Joaquim era o comendador.
Dali ele comandou e construiu o Império dele.
Então tem muitos relatos da visita de embaixadores,
de pessoas de outros países, sobre a fazenda da Grama.
Do luxo, estalheres de ouro, toalhas de linho importadas da Ilha da Madeira,
móveis e porcelanas francesas.
Os irmãos Breves, assim como muitos outros indivíduos fazendeiros
do século XIX, representam o que nós podemos chamar de classe orial, elite imperial.
Este é o Tiago Campos Pessoa.
Ele é historiador e professor e escreveu o livro
O Império da Escravidão – O Complexo Breves, no Vale do Café.
De maneira resumida, eu diria que o José e Joaquim Breves,
os dois representam um dos maiores senhores de escravo do período imperial.
Você tem uma ideia, Tiago?
José Breves, quando a sua esposa morre em 1868,
ele era senhor de cerca de 1.350 indivíduos.
Isso, para a realidade brasileira, era completamente fora de padrão.
E o Joaquim também.
Os observadores de época, os jornais de época,
dizem que o Joaquim Breves era senhor de 3.000 ofrecidos.
Então a gente pode dizer com uma certa tranquilidade
que esses dois irmãos, José e o Joaquim Breves,
eram senhores de quase 5.000 pessoas.
Eu queria que você pensasse um pouco nesses números.
Que, aliás, nunca são só números.
Eram vidas, eram pessoas, cada uma delas.
Mas, por enquanto, vamos focar só nessa quantidade.
Quando a gente pensa na escravidão, em quem é que tinha escravizados,
os proprietários, os senhores e assimás,
é comum imaginar um grande fazendeiro, dono de dezenas, centenas de escravizados.
Fazendeiros como os irmãos Breves.
Mas naquele tempo, naquele Brasil, a escravidão era algo totalmente naturalizado.
Era a estrutura daquela sociedade, a base de tudo.
E por isso muita gente tinha escravizados.
Um terço dos chefes de família do Brasil era dono de pessoas escravizadas.
E olha que custava caro comprar um escravizado.
Mas dava até para comprar a prazo.
Aumentava o custo, claro, mas com o tempo aquele escravizado acabaria pagando o próprio custo por meio do trabalho dele.
Isso se não morresse por causa do trabalho forçado, mas muita gente preferia arriscar.
Por isso que não só gente rica tinha escravizados.
E havia até pessoas negras que tinham também.
O escravizado era a moeda naquela sociedade, a moeda mais valiosa.
Então quando uma pessoa negra livre conseguia ascender um pouquinho, e isso era bem difícil,
mas quando uma ou outra conseguia alguma mobilidade, ela tentava adquirir bens,
adquirir posses, e o escravizado era a posse mais valiosa de todas.
Isso que eu estou dizendo não é novidade nenhuma.
Inclusive tem muito supremacista branco que gosta de citar esses casos excepcionais como se fossem a regra.
Mas o que esses mesmos supremacistas não citam é que essas pessoas negras donas de escravizados eram a minoria da minoria.
Dois pesquisadores, o Francisco Vidal Luna e o Herbert S. Klein, analisaram os dados de São Paulo no começo da década de 1830.
94% dos donos de escravizados eram brancos.
94%.
Só 6% eram pardos ou pretos.
A minoria da minoria.
E eu nem preciso dizer que para cada pessoa negra que tinha um escravizado,
tinha muitas outras pessoas negras lutando por liberdade.
Não só de si, mas dos outros nos milhares de quilombos pelo país, por exemplo.
E sendo dono, branco ou negro, quando se olha para o Brasil nesse período...
Todo o Brasil era escravista. Todos os municípios do Império, todos, sem exceção,
em meados do século XIX existia alguém que possuía escravo.
Mas essa posse era uma posse pequena.
Geralmente as pessoas tinham um, dois, no máximo três escravos.
Esse era o padrão do Brasil.
Só uns 5% ou 6% dos senhores tinham mais de 20 escravizados.
E os irmãos Breves tinham milhares. Milhares.
Ah, mas eles eram empreendedores, grandes empresários.
Com certeza foi por meritocracia que eles acumularam essa riqueza toda.
Em 1829, o Joaquim Breves tinha 50 escravizados.
É muito, mas ainda não são milhares.
20 anos depois, já eram 3 mil.
Certamente a fortuna dos irmãos Breves tem como ponto inicial
o tráfico de africanos.
O comendador Joaquim e o comendador José, os irmãos Breves,
os grandes empreendedores, eram traficantes de escravizados.
Então você tem essa figura do traficante, que a gente sempre remete a ele,
quase como uma figura simbólica, quase sempre era o consignatário
ou o proprietário do navio negreiro.
Mas esse sujeito, na verdade, era um grande empresário,
um sujeito que articulava interesses e financiamentos seus e de outras pessoas.
A gente já falou um pouco sobre isso no primeiro episódio.
O tráfico de escravizados era um empreendimento que custava muito dinheiro,
porque o sujeito tinha que ter não só o navio,
mas o pessoal para fazer toda a operação e também os produtos,
tanto para alimentar a tripulação e os escravizados,
quanto para trocar por mais escravizados na costa africana.
E o tráfico também era um negócio arriscado,
porque muita coisa podia dar errado no caminho
e uma parte enorme das pessoas que eram sequestradas
simplesmente não conseguiam sobreviver à viagem.
Cerca de 670 mil africanos morreram antes de chegar ao Brasil,
porque as condições eram desumanas.
670 mil.
O tráfico era arriscado, mas se desse certo, dava muito lucro.
Então, muita gente rica participava.
Se não fosse o cabeça da operação, entrava como sócio.
Eu encontrei um livro carga, que é uma das coisas mais impactantes
que eu já tive contato em relação à documentação do tráfico e da escravidão.
Você tinha ali descrito a carga do navio e eram crianças, jovens,
já demarcados com os próprios sinais de propriedade.
E o cabeçalho do navio dizia
meninos ou moleques pertencentes a fulano de tal.
E aí vinha a marca que representava esse fulano de tal,
certamente no caderno e na pele daquele menino ou daquela menina.
E a violência não parava no desembarque.
Nas fazendas de café, por exemplo,
a jornada de trabalho era de umas 15 horas por dia,
com meta de produtividade.
Que não cumprisse a meta era torturado.
E a partir dos anos 30 do século XIX, o café começa a desplontar
como commodity de excelência para o Império do Brasil.
Não é à toa que a bandeira do Império do Brasil nasce com um ramo de café.
Então o café é projetado nos anos 20
como a principal aposta econômica do Brasil na ação que surgia.
O espírito empreendedor dos irmãos Breves
fez com que eles investissem no tráfico de escravizados
no momento de explosão do café.
O que os senhores fazem, senhores como José e Joaquim,
e tantos outros senhores do Vale do Paraíba,
é permitir que politicamente e economicamente, socialmente,
a escravidão se propulsione no exato momento
que o café se coloca como um projeto nacional.
E a escravidão se propulsiona como um elemento importante,
basilar, eu diria, dessa economia cafeira
de uma maneira muito particular no caso do Brasil.
A escolha por manter a escravidão
não garantiu só a unidade do Brasil independente.
Foi graças à exploração e foi graças à tortura de pessoas negras
que o novo país se tornou viável economicamente.
Foi só por causa da escravidão
que a própria colonização portuguesa finalmente se pagou.
Lá em 1500, todas as primeiras décadas
tinham sido de prejuízo para a coroa,
até que os portugueses começaram a escravizar pessoas
para produzir açúcar.
Primeiro foram os indígenas.
Aliás, é importante lembrar que houve escravização indígena,
que teve um genocídio dos nossos povos originários
e que essa escravidão durou muito mais tempo
do que a gente geralmente aprende na escola.
Nas primeiras décadas de colonização,
e em algumas regiões até séculos,
a maioria da mão de obra escravizada era de pessoas indígenas.
Daí, por uma série de motivos,
houve uma transição para a mão de obra africana,
que começou a chegar a partir da década de 1560.
Entre esses muitos motivos,
teve uma série de epidemias
que acabaram dizimando as populações indígenas.
E essa transição de uma escravidão para outra
também não foi da noite para o dia.
As duas, a escravidão indígena e a africana,
ainda foram empregadas juntas por muito tempo.
No Paraná ou em Minas Gerais, por exemplo,
só começou a ter mais escravizados africanos do que indígenas
no começo do século XVIII.
E é no colégio que a gente aprende sobre os ciclos econômicos.
Açúcar, ouro, café.
Não teria tido nenhum desses ciclos
sem a mão de obra escravizada.
Desde os tempos da colônia,
todas, todas, todas as riquezas que o Brasil acumulou
foram graças à escravidão.
E o Brasil foi onde o comércio negreiro
tomou uma dimensão inédita.
Já tinha tráfico no mundo.
Outros países também traficavam
e dependiam do trabalho escravo.
Mas nenhuma colônia ou país no mundo
recebeu tanta gente africana escravizada
quanto o Brasil.
Nenhuma.
Das 12 milhões e meio de pessoas africanas
que foram arrancadas de seus lares,
5 milhões e meio tinham o Brasil como destino.
É o triplo da América Espanhola inteira,
de todos os nossos vizinhos aqui da América do Sul somados.
É 12 vezes mais do que os Estados Unidos.
O porto que mais recebeu escravizados no mundo
ficava no Brasil, o Cais do Valongo, no Rio de Janeiro.
Não houve setor da economia brasileira
que não tenha tido trabalho escravo.
Não teve.
Do comerciante ao grande latifundiário,
do industrial ao médico.
Desde sempre foram mãos e mentes negras
que enriqueceram famílias brancas
que até hoje se beneficiam dessa riqueza.
Na empresa Brasil, o trabalho é negro e o lucro é branco.
Eu sou o Tiago Rogero,
este é o podcast do Projeto Quirino,
produzido pela Rádio Novelo.
Episódio 2, o pecado original.
No Brasil, ele se projeta como uma grande nação escravista
atrelada ao comércio atlântico de africanos.
Um comércio que era clandestino pelo direito internacional,
clandestino nos estatutos jurídicos nacionais
e que a despeito disso ele tem um poder de atribuição
e de autoridade.
O Brasil é um país que tem um poder de atribuição
e de autoridade.
O Brasil é um país que tem um poder de atribuição
e de autoridade.
O Brasil é um país que tem um poder de atribuição
e de autoridade.
Um país que é uma grande nação escravista
através de estatutos jurídicos nacionais
e que a despeito disso ele tomou uma proporção inédita
a partir dos anos 30 por agências de senhores
como o Joaquim e o José de Sousa Breves.
Faltou contar esse pequeno detalhe sobre os Irmãos Breves.
Não só que eles eram dois dos homens mais ricos do Brasil,
o Joaquim e o José de Sousa Breves foram traficantes
quando o tráfico já era ilegal.
Eles foram contrabandistas de pessoas ilegalmente escravizadas.
Até para os padrões daquela época, o que eles estavam fazendo era contra a lei.
Lei de 7 de novembro de 1831.
Essa foi a primeira lei que regulou o fim do tráfico negreiro transatlântico
da África para o Brasil.
Este é o Tâmis Parron, historiador e professor.
Essa lei está entre as dez leis mais importantes da história do Brasil.
Ao lado de outras leis muito importantes,
como a própria Lei da Abolição da Escravidão, a CLT, o ECA,
que é o Instituto da Criança e do Adolescente.
Voltando um pouquinho mais no tempo,
a Inglaterra era aliada dos portugueses desde a vinda da família real para cá.
E depois da independência, continuou como principal parceira comercial do Brasil.
Para reconhecer o Brasil como nação independente,
os ingleses exigiram um monte de coisa.
Por exemplo, condições alfandegárias especiais
para os produtos industrializados deles quando chegassem aqui.
Mas só isso não garantiria igualdade de preço.
Afinal, além dos custos de importação,
a produção no Brasil tinha uma vantagem considerável.
Podia importar mão de obra escravizada.
Daí, em 1826, Brasil e Inglaterra assinaram o Tratado Anglo-Brasileiro.
Os ingleses reconheceram o Brasil como nação independente,
e o Brasil, além de baixar os impostos de importação,
se comprometeu a acabar com o tráfico de escravizados em três anos.
Ainda assim, tinha muito senhor achando que o Brasil ia continuar
não dar muita pelota para os ingleses.
Afinal, esse nem era o primeiro tratado pelo fim do tráfico.
Outros dois bem parecidos já tinham sido assinados antes,
pelo Dom João, e nada aconteceu.
E no meio disso tudo, o Dom Pedro acabou cometendo um erro
que custaria bem caro para ele.
Ele ratificou o tratado com a Inglaterra.
A partir daquele momento, o acordo oficialmente entrava em vigor,
e em três anos o tráfico ia acabar.
Só que o imperador fez isso sem consultar a classe política,
os deputados e senadores, a elite política do império,
as mesmas pessoas que tinham ajudado ele a romper com Portugal.
A elite política brasileira quer ser uma elite colocada como um poder.
Ela quer ser uma elite colocada como diplomada,
mas ela é uma elite escravista até o núcleo da medula.
E esses deputados e senadores dependiam da escravidão.
Então, quando o imperador oficializou tudo sem falar com eles,
a relação azedou.
É importante dizer também que isso tudo é ainda antes do boom do café,
e a economia do Brasil independente não estava lá essas coisas.
Fora isso, tinha muito português ocupando cargo de confiança no governo,
então começou a rolar um boato de que Portugal poderia recolonizar o Brasil.
O Dom Pedro, é sempre bom lembrar, era português.
Foi uma bela do Independência essa em que o colonizador ficou como líder do novo país.
Aliás, um rápido parênteses aqui, uma fofoquinha.
Em 1929, o Dom Pedro terminou um relacionamento extraconjugal
que ele tinha com a Domitila de Castro do Canto e Melo, a Marquesa de Santos.
Daí precisava de alguém para transportar os móveis dela do Rio para Santos.
Sabe quem emprestou o barco?
O Joaquim de Souza Breves.
O nome do navio era União Feliz.
Bom, mas aí corta para 1830.
Para melhorar a relação com o Congresso,
o Dom Pedro escolheu como braço direito, como principal ministro, o Marquês de Barbacena.
O nome dele era Caldeira Branche, ele era senador e tinha um ótimo trânsito com a Câmara dos Deputados.
Mas ele tinha tanto trânsito que o Dom Pedro ficou com ciúme e em 1931 ele demitiu o ministro.
Daí o Caldem tornou de vez com o Congresso
e os parlamentares conseguiram o apoio do exército para pressionar o imperador.
O Dom Pedro estava coado e aceitou trocar todos os ministros portugueses por brasileiros.
Mas depois ele voltou atrás.
Teve uma confusão na cidade e uma multidão foi para a rua exigindo a partida do imperador.
O exército do Dom Pedro desertou e o imperador renunciou.
Abdicou do trono em favor do filho, o Dom Pedro II, que tinha só 5 anos.
Daí sabe a quem que o Pedro I confiou a tutoria do imperador criança?
Ao José Bonifácio, que tinha sido o braço direito dele no processo da independência,
mas que depois foi demitido e exilado.
Já tinha uns dois anos que o Bonifácio tinha voltado do exílio.
E aí essa queda do Pedro I criou no país um clima geral de segunda independência,
agora totalmente livre de Portugal.
Afinal, o imperador criança tinha só 5 anos, mas era nascido no Brasil.
Para marcar esses novos tempos, o Marquês de Barbacena,
o outro braço direito que também tinha sido demitido pelo imperador,
propôs uma lei brasileira para acabar com o tráfico negreiro.
Se está difícil de acompanhar, é assim mesmo.
Essa história é tudo puro suquinho de Brasil.
A ideia com essa lei era fazer uma afirmação da soberania nacional.
Não eram só os ingleses pressionando pelo fim do tráfico.
Agora era o parlamento brasileiro que estava tomando a iniciativa.
O que essa lei diz é muito simples.
Ela prevê que nenhum africano escravizado entraria no Brasil a partir da data dela.
Isso é muito importante.
Primeiro, o tráfico negreiro transatlântico existia fazia mais de 200 anos, quase 300.
E essa lei coloca um fim em uma instituição multissecular.
Ela diz que aqueles africanos introduzidos no país ao arrepio dela, da lei,
receberão a liberdade, serão declarados livres.
E nisso, Thiago, ela foi muito radical.
Porque na história atlântica, outros países que também traficavam,
quando aboliram o tráfico, não saíram concedendo liberdade
aos africanos introduzidos por debaixo dos panos.
O país que mais traficava no mundo agora era o mais radical na hora de combater esse tráfico.
E não parava por aí.
Ela manda prender o financiador do navio negreiro, o comandante do navio,
e as pessoas que ajudassem no desembarque dos africanos.
E aí você pode estar se perguntando por que eu também estou.
Mas como um país escravista fez uma lei nesses termos?
A lei foi feita num dos momentos mais radicais da história política brasileira.
O imperador, o Dom Pedro I, tinha acabado de cair.
As ruas estavam agitadas, o parlamento inquieto,
e a imprensa andava cheia de ideias novas.
Chegando a propor impostos sobre propriedade rural, chegando a propor o fim da escravidão,
chegando até a contemplar votos para as mulheres, o que na época também era bastante polêmico.
A lei é fruto desse espírito inflamado.
Talvez você já saiba que essa é aquela que ficou conhecida como a lei para inglês ver.
Você já ouviu essa expressão, né?
Para inglês ver é algo que é meio que de mentirinha, só funciona na aparência, mas não de verdade.
Foi essa lei, ou melhor, foi o descumprimento dessa lei que deu origem à expressão.
Só que o que talvez você não saiba é que essa lei foi cumprida.
Por cerca de quatro anos, mais ou menos, e isso não é pouco tempo,
basta pensar na tortura coletiva que é viver quatro anos sob Bolsonaro,
essa lei foi relativamente respeitada por quatro anos.
O desembarque de africanos escravizados no Brasil, depois da aprovação dessa lei,
caiu para um mínimo histórico, um menor volume, numa longa série histórica,
que chega a recuar até o século 17. Ela bateu lá embaixo.
A lei não nasceu para inglês ver.
A expressão para inglês ver é gestada num segundo momento,
quando essa lei é atacada, bombardeada, deslegitimada e enterrada viva em favor de interesses negreiros.
Não sei se você lembra de algo que a professora Inaê Lopes dos Santos,
a nossa consultora em história para esse projeto, falou no primeiro episódio.
A escravidão é uma instituição e ela perdurou porque você tinha um grupo de senhores escravizados,
que era um grupo que também formou a elite política brasileira,
ou as elites políticas brasileiras, nas suas multiplicidades, nas suas discordâncias,
elas tinham essa base comum que era o fato de eles serem proprietários de escravizados.
As elites brasileiras, elas tinham suas diferenças, elas discordavam, elas brigavam,
mas se tinha um lugar que elas compartilhavam, um ponto em comum, era o lugar de senhores de escravos.
Bem agora que a economia podia explodir por causa do café, uma leizinha ia atrapalhar o progresso?
O Brasil tem dessas coisas incríveis.
Uma potência para surpreender positivamente, como a lei de 31,
e uma enorme capacidade de autodestruição, como a reabertura do tráfico negreiro no Brasil.