Como o Brasil que alimenta 1 bilhão no mundo tem 10 milhões passando fome
[Sep 27, 2020].
Um dos pontos mais importantes e menos comentados do discurso do presidente Jair Bolsonaro na Assembleia-Geral da ONU foi esse:
"No Brasil, apesar da crise mundial, a produção rural não parou. O homem do campo trabalhou como nunca, produziu como sempre, alimentos para mais de 1 bilhão de pessoas. O Brasil contribuiu para que o mundo continuasse alimentado. Garantimos a segurança alimentar a um sexto da população mundial. O Brasil desponta como o maior produtor mundial de alimentos."
Impressionante, né?
Mas talvez mais impressionantes ainda sejam os dados divulgados pelo IBGE menos de uma semana antes da fala do presidente: Mais de 10 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar grave, segundo o órgão.
Em outras palavras, essa multidão, que inclui crianças, literalmente passa fome no Brasil.
Mas como afinal de contas o mesmo país que alimenta boa parte do planeta tem ao mesmo tempo tantos milhões de famintos?
Eu sou Ricardo Senra, repórter da BBC News Brasil aqui em Londres, e neste vídeo eu explico três pontos-chave dessa triste contradição.
E também faço um raio-x da fome e da produção de alimentos no Brasil.
Para isso, eu conversei com alguns dos principais especialistas do país em temas como acesso à alimentação adequada e fome.
Já já eu falo mais sobre isso, mas vamos começar pelo raio-x da fome com base na pesquisa de orçamentos familiares, a POF, do IBGE, divulgada no dia 17 de setembro, e que se refere aos anos de 2017 e 2018.
Ela identificou que o total de pessoas com alimentação em quantidade suficiente e satisfatória no Brasil é a mais baixa dos últimos 15 anos.
Vale lembrar que isso tudo acontece pouco depois de o país finalmente a sair do Mapa da Fome das Nações Unidas, uma conquista que foi aplaudida no mundo inteiro em 2014.
Pois é, de acordo com uma nova pesquisa 10,3 milhões de brasileiros passavam fome durante o levantamento.
Esse é um aumento de 3 milhões de pessoas sem acesso normal a refeições em apenas cinco anos.
Essa conta não inclui pessoas em situação de rua, o que tornaria esse cenário, segundo especialistas, ainda mais dramático A fome no Brasil é registrada principalmente em áreas rurais, outra contradição já que os alimentos são produzidos nestas regiões.
Desses mais de 10 milhões de brasileiros que passam fome, segundo o IBGE, 7,7 milhões vivem em áreas urbanas, enquanto 2,6 milhões estão em áreas rurais.
O X da questão aqui é proporção.
Esses dados mostram que 23,3% da população urbana têm fome, enquanto 40,1% da população rural passam pela mesma situação.
Ainda segundo a pesquisa, do total de brasileiros que passavam fome no período investigado, 41,5% viviam na região Nordeste, seguidos pelo Sudeste e pelo Norte.
Aqui é preciso que a gente entenda três conceitos importantes nessa discussão.
O que são a insegurança alimentar leve, a moderada e a grave.
A insegurança alimentar leve acontece quando a família não tem certeza se vai conseguir ter acesso a alimentos no futuro e quando a qualidade da comida na mesa já é ruim.
Segundo o IBGE: "Nesse contexto, os moradores assumem estratégias para manter uma quantidade mínima de alimentos disponíveis."
Trocar um alimento por outro que esteja mais barato, por exemplo.
Já a insegurança moderada surge quando os moradores têm uma quantidade restrita de alimentos.
Ou seja, quando tem menos comida na despensa do que o satisfatório.
Por fim, a insegurança grave aparece, nas palavras IBGE, quando os moradores passaram por privação severa no consumo de alimentos.
É aí que se encaixa definição de fome.
E se a gente considerar esses 3 tipos de insegurança, a gente chega no problema do acesso à alimentação de qualidade, que também é grave no Brasil.
Segundo o IBGE, pelo menos metade das crianças com menos de 5 anos viviam em casas com algum grau de insegurança alimentar.
Isso equivale a 6,5 milhões de crianças.
Agora, se a referência for a insegurança grave, a fome de fato, 5,1% das crianças com menos de 5 anos e 7,3% das pessoas entre 5 e 17 anos vivem nessa condição no Brasil.
É muita gente! Isso me traz para o segundo ponto deste vídeo: o raio-x da produção de alimentos no Brasil.
Diferentemente do que o presidente Jair Bolsonaro afirmou, o Brasil não desponta como o principal produtor de alimentos do planeta.
Hoje é o terceiro, atrás só da China e dos Estados Unidos, segundo a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos, que é o maior representante da indústria de alimentação do país, o Brasil exportou comida para mais de 180 países no último ano.
E essas exportações movimentaram US$ 34,1 bilhões no ano passado.
A maior parte US$ 36,8 bilhões foi para a Ásia, principalmente na China.
Em seguida, vêm a União Europeia, com 18,8% das exportações, e Oriente Médio, com 14,3%.
A associação traz informações interessantes: a gente é o segundo exportador mundial de alimentos industrializados em volume e o quinto em valor.
Somos o primeiro produtor e exportador de suco de laranja em todo mundo, o segundo produtor e o primeiro exportador mundial de açúcar.
O segundo produtor e o primeiro exportador mundial de carne bovina e idem para carne de aves.
A gente também é o segundo exportador mundial de café solúvel e essa me surpreendeu!
O Brasil é o segundo produtor mundial de bombons e doces.
Pois é, mas aqui a gente vai para o coração desse vídeo: por que produzindo tanta comida e tendo tanta comida para exportar nós temos tantos brasileiros com fome.
O primeiro ponto aqui é quem alimenta quem.
É importante diferenciar o papel do agronegócio dos pequenos produtores familiares na produção de alimentos no Brasil.
Talvez você se surpreenda de novo.
De acordo com o último censo agropecuário do IBGE, 70% dos alimentos consumidos pelos brasileiros vêm da agricultura familiar.
A gente está falando aqui de terras pequenas, administradas por pessoas da mesma família ou de famílias próximas, que produzem para própria alimentação e vendem o excedente.
Agricultura familiar é diferente das grandes monoculturas de soja ou de café ou daqueles grandes pastos da pecuária e agronegócio.
Ela produz uma diversidade enorme de alimentos: de mandioca e hortaliças a milho, leite e frutas.
E é graças a ela que o nosso prato pode ser farto e colorido, como recomendam os nutricionistas.
Já o famoso agronegócio, que corresponde aos grandes produtores, é responsável por boa parte do PIB brasileiro, tem representantes em vários níveis da política, ele é principalmente destinado à exportação.
Eu falei sobre esse assunto com o Daniel Balaban, que é o diretor do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos da ONU no Brasil.
Ele me disse o seguinte: "O agronegócio, por isso que o nome é negócio, né?
Ele vai aonde pagam mai, aonde ele mais ganha, tem mais lucro.
Então, como um dólar a R$ 5,50, um dólar supervalorizado, fez com que o produto brasileiro ficasse muito barato para exportação.
Ele prefere exportar, no qual ele vai conseguir a cada dólar que ele receber está recebendo R$ 5,50 do que botar aqui no Brasil a R$ 5,50 e, claro, perante os preços básicos dos alimentos aqui, entendeu?
Vamos ver um pacote de 1 kg de arroz, né?
Como é o caso do arroz que subiu demais, então, ele vai preferir sempre exportar, enquanto ele tiver mercado lá fora.
Tanto é que o agronegócio brasileiro ele exporta tudo que tem e só o que não tiver mercado lá fora é que ele bota aqui dentro."
Já o Kiko Afonso, que é diretor-executivo da Ação da Cidadania, aquela ONG fundada pelo Betinho, para combater a fome e a miséria no Brasil, diz que a política de agricultura brasileira se orienta para as exportações.
O que nas palavras dele pode ser bom para balança econômica, mas péssimo para consumo local, principalmente para as populações mais vulneráveis.
"Olha só, então você soma dois grandes fatores, né?
Uma política de governo que olha para o agronegócio para exportação em detrimento do pequeno produtor, o que encarece o alimento.
E uma segunda vertente, onde você tem uma desigualdade social absurda, onde a grande maioria da população vive com um salário muito abaixo de um média aceitável para se sobreviver."
E aqui a gente entra em mais um ponto importante dessa história: a atenção destinada à agricultura familiar, aquela que põe comida na mesa do brasileiro, como a gente viu, tem encolhido.
"Por exemplo, os pequenos agricultores familiares eles tinham o PAA, Programa de Aquisição de Alimentos, né?
Este programa chegou a ter orçamento bilionário, né?
Um R$ 1,5 bilhão por ano Hoje, não chega a R$ 100 milhões.
O Pronaf, que é o Programa de Apoio ao Agricultor Familiar, né.
Diminuiu bastante o número de empréstimos para eles, que tinham com juro subsidiado e outros programas, por exemplo, de captação de água da chuva.
O Brasil também tinha programa de cisternas que apoiava.
Isso também caiu drasticamente.
Essa população de campo ela é muito vulnerável.
Então, ela precisa que esteja sempre sendo incentivada e sendo apoiada por políticas públicas do governo", "E estamos falando de muita gente que pode morrer por causa de fome nos próximos meses no Brasil.
Nosso fundador, o Betinho, sempre dizia isso: que a fome é uma das piores senão a pior indignidade que o ser humano pode ter."
E eu aproveito esse gancho para entrar no terceiro ponto.
Chama muita atenção o fato de que a fome no Brasil esteja concentrada nas regiões rurais, como a gente disse, aquelas onde se produz a comida.
O que dizem os especialistas sobre isso?
Eu também falei com o economista Marcelo Neri, que é professor da FGV e ex-presidente do Ipea e ex-ministro-chefe da secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República entre 2013 e 2015.
Ele me disse que "o morador do campo é o mais pobre, é o que produz alimentos mas não ganha o suficiente para comprá-los."
Em 2019, segundo o professor 53% dos 20% mais pobres do Brasil e 10% dos 20% mais ricos do Brasil declaravam que faltava dinheiro para alimentação.
Já no resto do mundo, segundo ele, os números eram 48% nos 20% mais pobres, e 21% nos 20% mais ricos.
Ou seja, ele explica, os nossos pobres têm hoje mais insegurança alimentar do que no resto do mundo, enquanto os nossos mais ricos têm menos.
É a famosa "desigualdade tupiniquim", ele diz.
Os outros especialistas concordam com ele.
"O Brasil teve muitas políticas de ajuda aos pequenos agricultores familiares no passado, e essas políticas perderam força nos últimos governos.
Já no final do Governo da Dilma, Temer e agora.
Então, isso faz com que, além de diminuírem a produção, eles não produzirem e acaba tendo fome no campo."
"E elas acabam tendo que migrar ou para centros urbanos para morar em favelas e regiões super pobres, em condições super difíceis, ou elas têm que se adequar a trabalhar para esses grandes agronegócios."
Agora, uma pergunta que muitos de vocês podem estar se fazendo é a seguinte: como é que a pandemia do novo coronavírus afeta o cenário da fome no Brasil.
O Daniel Balaban, do Centro de Excelência contra a Fome do Programa Mundial de Alimentos da ONU, responde essa pergunta: "É triste dizer isso, mas o Brasil tem uma renda, uma renda média de R$ 480.
De repente, quando 65 milhões de pessoas receberam R$ 600 na sua conta, o Brasil diminuiu incrivelmente, durante este período dos recursos emergenciais, o número de pessoas abaixo da linha da pobreza."
De fato, uma pesquisa da FGV divulgada em julho mostrou que a faixa da população que vive em extrema pobreza caiu de 4,2 para 3,3% da população.
É a menor taxa dos últimos 40 anos no Brasil.
O conceito de extrema pobreza se refere àquelas pessoas que vivem com menos de um US$ 1,90 por dia ou R$ 154 mensais.
Mas então isso é motivo para comemorar?
"Se a gente já tinha antes esses mais de 80 milhões de brasileiros em algum grau de insegurança alimentar, seja leve, moderado ou grave, né? Esse número certamente vai aumentar.
A recessão e a crise claramente não são questões que vão ser resolvidos no curto prazo.
O desemprego já é quase recorde no Brasil e a gente vê claramente que o auxílio emergencial é insustentável no modelo atual."
O diretor da ONU concorda: "O problema todo é que quando acabarem esses recursos emergenciais volta-se ao problema anterior, porque o problema anterior era estrutural, e esse recurso é emergencial."
Já o Marcelo Neri, da FGV, me disse o seguinte sobre a fome e a pandemia no Brasil: "Segundo o nosso último levantamento, apesar da queda da renda do trabalho recorde de 20,5% na pandemia, cerca de 13,1 milhões de pessoas saíram da pobreza em plena pandemia."
O que explica esse paradoxo, ele diz é a generosa entre aspas concessão do auxílio emergencial que chegou a 67 milhões de brasileiros ao custo de R$ 322 bilhões durante 2020.
O problema é que o auxílio termina em 31 de dezembro.
Ele diz: "E aí não são só os ex-pobres que vão voltar à condição inicial.
Eles vão ter a companhia de novos pobres deslocados pela pandemia."
Eu também quis saber se os números sobre a fome no Brasil divulgados pelo IBGE surpreenderam esses especialistas.
Dá uma olhada nas respostas: "Infelizmente, para a Ação da Cidadania, não surpreendem, é porque a gente sabia dessa da dimensão, né, do do que vinha por aí.
Sabia da dimensão das famílias que estavam na ponta nos pedindo alimento, ao invés de educação, saúde etc.
Quando a pessoa abre mão desses outros direitos para pedir comida, é porque a situação está realmente muito grave."
O Marcelo Neri trouxe novos dados e disse que os resultados da pesquisa do IBGE desafiam aqueles que acreditam que a fome é coisa do passado no Brasil.
"Antes que ataquem o mensageiro, observamos o mesmo drama em evidências internacionais sobre o Brasil."
A proporção daqueles que não tem dinheiro para comprar alimentos cai de 20% até 18% e depois sobe para 30% em 2017/2018, o que é consistente em termos de período e prazos com a última pesquisa do IBGE.
Esse mesmo patamar de 30% é mantido em 2019.
A gente aqui na BBC News Brasil vai continuar acompanhando os números e principalmente as histórias reais de milhões de brasileiros e brasileiros que estão passando fome nesse momento.
Obrigado por nos seguir até aqui.
Eu espero que este vídeo tenha ajudado vocês a entenderem, a conhecerem mais sobre esse triste cenário e logo logo a gente volta com mais vídeos.
Até lá!