Carcará, com Maria Bethânia, O ARRANJO #27 (English subtitles)
Maria Bethânia virou imediatamente uma estrela da música brasileira quando,
aos 18 anos, substituiu a cantora Nara Leão no espetáculo Opinião
A sua interpretação para Carcará, fez a música sobre a ave nordestina voar muito alto
A voz forte de contralto junto com o figurino meio andrógino e toda a encenação do espetáculo,
tudo isso junto criou uma personagem pública que nada tinha a ver com a verdadeira Berré, seu apelido na época
Ao contrário do que podia parecer, Bethânia era de uma família de classe média do recôncavo baiano,
nunca chegou perto de passar fome ou de conhecer a seca do sertão nordestino e nunca tinha visto um carcará
Mas a força da canção na sua voz e as vendas do compacto com a música
aprisionaram a jovem artista num rótulo que era tudo o que ela não era e nem queria ser:
uma cantora nordestina de canções de protesto
Depois de mais de um ano trabalhando no Rio e em São Paulo e tendo sempre que cantar Carcará, resolveu voltar pra Bahia
Ficou lá por uns meses, até receber o convite do empresário e produtor Guilherme Araújo para fazer uma temporada numa boate do Rio
Ela disse: Eu aceito, mas com uma condição: eu não vou cantar Carcará e nem nada parecido!
Guilherme aceitou e durante a temporada ela não cantou nem uma vez a música, nem se a plateia implorasse
Se consolidava, ali, a artista Maria Bethânia, a cantora senhora de si e livre, sem rótulos, pra cantar sempre o que quiser
Eu sou Flávio Mendes, músico e arranjador, esse é O ARRANJO, seja bem vindo
Se você está gostando de assistir aos episódios, pense na possibilidade de apoiar O ARRANJO
e assim contribuir para que eu continue a produzir os programas
A partir de apenas 10 reais
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Carcará é uma composição de João do Vale e José Cândido, lançada no espetáculo Opinião, de 1964
Originalmente foi cantada por Nara Leão no teatro e no disco lançado com as músicas da peça
João Batista Vale, o João do Vale, nasceu na cidade de Pedreiras, no Maranhão
Segundo ele, pobre no Maranhão ou era Batista ou era Ribamar, e ele foi Batista
Na época do Opinião ele já morava no Rio de Janeiro há mais de 10 anos, com 230 músicas gravadas,
fora as que ele tinha vendido, segundo ele mesmo falava na divulgação da peça
Chegou no Rio trabalhando como assistente de pedreiro, mas logo começou a ter algumas músicas gravadas,
como o baião Estrela Miúda, com a cantora Marlene
A sorte mudou quando ele começou a cantar no restaurante Zicartola, no centro do Rio de Janeiro,
e foi lá que nasceu a ideia do espetáculo Opinião
É a versão de Carcará gravada por Maria Bethânia no seu primeiro compacto, de 1965,
com arranjo adaptado do original de Dori Caymmi, que eu vou analisar nesse vídeo
UM POUCO DE HISTÓRIA
Caetano Veloso não tinha completado quatro anos de idade e já sabia cantar algumas músicas que ele ouvia no rádio
Uma dessas canções era Maria Betânia, uma valsa do compositor pernambucano Capiba
que era um grande sucesso naquele ano de 1946, na voz de Nelson Gonçalves
Capiba compôs a valsa para uma peça de teatro encenada em Recife, mas errou o nome da personagem que ele deveria citar
O nome da personagem era Maria da Betânia, ela era a heroína da peça,
mas a melodia não encaixava com o "da", e ficou Maria Betânia
Com o sucesso da canção o nome passou a ser popular e a batizar muitas meninas nascidas na época
Caetano pediu pra seus pais que a sua irmã, que estava pra nascer, recebesse esse nome,
mas os pais achavam um nome um pouco pesado pra um bebê
O pai deles fez um sorteio com diversos nomes escritos em papeis dobrados
e Caetano tiraria um deles de dentro de um chapé u, e o nome sorteado acabou sendo o que ele queria
Anos mais tarde as irmãs mais velhas contaram que o pai teria escrito o nome Maria Bethânia em todos os papeis, pra agradar o menino
Os irmãos cresceram na pequena cidade de Santo Amaro, no recôncavo baiano, a 80 quilômetros de Salvador
Pra prosseguirem os estudos, Caetano e Bethânia se mudaram para Salvador,
mas eles e todos no recôncavo a chamavam de Cidade da Bahia
Ele, com 17 anos, faria o clássico, o atual ensino médio, e ela, com 13 entrava no antigo ginásio
Caetano não sentia vontade de sair de Santo Amaro, e Betânia era radical: ela não queria ir de jeito nenhum
Segundo Caetano conta no seu livro Verdade Tropical, a irmã passou muito tempo odiando morar na capital,
e só pensando nas férias, quando ela voltava pra Santo Amaro
Mas os encantos da cidade eram muitos, e a insistência do irmão era imensa pra que a menina se encantasse com Salvador
E a aproximação se deu através da arte:
Caetano começou a levar Bethânia para peças de teatro, concertos, exposições e festas de rua
Os irmãos se enturmaram com os jovens artistas de Salvador
e Caetano foi convidado pelo diretor Álvaro Guimarães pra fazer as trilhas dos seus espetáculos
Quando o mesmo diretor foi fazer o seu primeiro filme,
Caetano imaginou uma canção sem letras e intimou Bethânia a cantá-la
Ela, com 16 anos, a princípio recusou, ela não gostava da sua voz, não pensava em ser cantora,
o seu sonho sempre foi ser atriz
Mas cantou e encantou o diretor que a convidou em 1963 para cantar na abertura
de sua montagem da peça Boca de Ouro, de Nelson Rodrigues
Antes da primeira cena da peça Bethânia entrava com o palco e a plateia às escuras e cantava "Na Cadência do Samba",
de Ataulfo Alves, a cappella, sem nenhum acompanhamento,
O efeito era incrível com a voz grave da Bethânia, e o nome dela passou a ser comentado no meio musical da cidade
Quando os irmãos se encontraram com Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, Alcivando Luz e outros músicos,
estava formado o núcleo baiano básico que poucos anos depois faria o movimento tropicalista -
menos Bethânia, porque ela nunca se prendeu a grupos e nem a rótulos
Esse grupo montou um espetáculo para inaugurar o Teatro Vila Velha, o show Nós, por exemplo,
e fez ainda outros shows coletivos, quando decidiram produzir shows individuais
O primeiro dessses shows foi de Bethânia - todos achavam que ela era a mais pronta pra fazer uma apresentação solo
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, outra jovem cantora, Nara Leão, lutava pra se livrar do rótulo de "Musa da Bossa Nova"
Em seu primeiro disco Nara gravou sambas de Cartola, Nelson Cavaquinho e Zé Kéti,
o que já era um afastamento da turma da Bossa Nova
Eu fiz um programa sobre esse primeiro disco da Nara, analisando a gravação de Diz que Fui Por Aí, vou colocar o link no fim do vídeo
Em 1964, Nara aproveitou uma viagem pra se apresentar em Belém e resolveu voltar fazendo escalas em capitais do nordeste,
ela queria se aprofundar nas pesquisas sobre as raízes da música brasileira
Salvador foi a última parada, e Nara chegou na cidade pouco antes da estreia do show da Bethânia
Lá ela conheceu os talentosos Caetano Veloso e Gilberto Gil, ambos com 21 anos,
mas quem chamou a atenção dela foi Bethânia, então com 17 anos
Nara foi muito generosa com ela,
e inclusive mostrou sambas que ela iria gravar em seu segundo disco para que Bethânia incluísse as músicas no seu show
O segundo disco de Nara se chamou Opinião,
e foi o rompimento definitivo dela com a Bossa Nova, ou pelo menos parecia ser
Desse disco surgiu o espetáculo Opinião, que estreou em dezembro de 1964, com direção de Augusto Boal
O espetáculo foi concebido por artistas ligados ao Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes,
o CPC da UNE, mas que estava na clandestinidade desde abril de 64, depois do golpe militar
É um teatro de AgitProp, ou agitação e propaganda,
uma forma de teatro que surgiu na Rússia depois da revolução comunista de 1917,
e está vinculado a um teatro relacionado a movimentos de luta dos trabalhadores
Não era exatamente um teatro convencional,
mas uma narrativa feita pelos atores-cantores, baseada na própria experiência deles no meio musical
Os protagonistas eram Nara Leão, Zé Kéti e João do Vale: uma mocinha da Zona Sul,
um personagem do subúrbio carioca e um nordestino
A peça foi um grande sucesso, com apresentações diárias, de segunda a segunda,
com sessões duplas nas quintas, sábados e domingos
Era uma maratona de apresentações, e em menos de dois meses a garganta da Nara não aguentou:
ela ficou afônica e foi proibida pelo seu médico de continuar no espetáculo
Para substituí-la, de emergência, chamaram Susana de Moraes, filha de Vinícius, que era namorada de um dos autores,
Oduvaldo Viana Filho, mas ela avisou que só ficaria até acharem uma substituta definitiva, ela não era cantora
E Nara indicou aquela menina que tinha conhecido em Salvador há menos de um ano,
e garantiu aos produtores que era a pessoa certa
Bethânia e Caetano estavam de férias em Santo Amaro quando uma atriz da Escola de Teatro da Bahia ligou
dizendo que a produção do Opinião estava convidando Bethânia pra ir ao Rio
"O teatro Opinião, o Vianinha, está ligando e quer que você vá pro Rio amanhã de manhã,
pra você substituir a Nara fazendo o show Opinião
Eu disse: Caetano, aconteceu isso, e ele falou 'vamos agora pra Salvador,
que loucura Berré, vamos embora, vai ser ótimo'"
Caetano já tinha passado um ano morando no Rio na casa de uma prima quando era adolescente,
mas Bethânia nunca tinha saído da Bahia
O começo não foi fácil: a peça tinha sido escrita pra Nara, uma moça branca, bonitinha e moderna,
e Bethânia era bem diferente, de uma beleza menos padrão
A produção demorou pra encontrar o figurino, o cabelo, uma imagem pra nova artista que eles iriam lançar,
como seria o marketing
E começaram a surgir na imprensa, como divulgação da biografia dela, informações inventadas,
como a que ela teria sido ponta esquerda de um time de futebol em Santo Amaro, note-se, esquerda sendo destacado
A imagem dela na peça, com o cabelo preso atrás, com uma roupa larga, com um ar sério e dessexualizado,
foi uma decisão dos autores e do diretor
Mas como ela era completamente desconhecida, ficou a imagem de que ela tinha vindo assim da Bahia:
uma cantora nordestina de canções de protesto
A estreia de Bethânia foi no dia 11 de fevereiro de 65, num espetáculo extra à meia-noite,
pra artistas e jornalistas, pra apresentar Bethânia pra alguns influenciadores
Otto Lara Rezende, Sergio Cabral e Millôr Fernandes escreveram na propaganda do espetáculo publicada nos jornais, dando o aval pra novata
Com Nara, o número de Carcará já era o clímax do espetáculo,
mas com a força dramática de interpretação de Bethânia o número ganhou uma força extra
É incrível olhar as imagens do espetáculo hoje, porque se nota que a artista Maria Bethânia,
hoje com mais de 50 anos de carreira, já está ali, na inexperiente menina de 18 anos, recém chegada da Bahia
1. MELODIA A melodia de Carcará é construída sobre o modo Dórico, um dos modos gregos,
que também é conhecido no Brasil como escala menor nordestina
A nota que caracteriza esse modo é o sexto grau maior, numa escala menor
No tom da gravação da Bethânia, si menor, essa nota é o sol sustenido
Carcará é uma ave de rapina, parente do falcão, e que se alimenta de quase tudo,
especialmente presas fáceis como filhotes, mas também se alimenta de animais mortos ou restos de lixo
Na letra é retratado um ataque a um mamífero muito jovem, um borrego, um cordeirinho
"Os borrego novinho não pode andar Ele pega no umbigo até matar"
Segundo ainda Caetano Veloso no seu livro, no meio de tantas músicas na peça falando de exploração, de reforma agrária,
talvez um único verso, "Carcará, mais coragem do que homem", somado ao contexto político da época,
era suficiente pra transformar a canção num vago, porém poderoso, argumento revolucionário
2. ORQUESTRAÇÃO A montagem de Opinião foi uma montagem de baixo orçamento, não se tinha dinheiro
Para a direção musical convidaram Dorival Caymmi Filho, que depois virou Dori Caymmi, que era jovem, tinha 21 anos
Dori montou um grupo enxuto, com o vioão dele e mais flauta, com Alberto Heckel Tavares, e bateria com João José Vargas
Dori chegou a chamar o irmão dele, Danilo Caymmi, então com 16 anos, pra tocar a flauta no espetáculo
Mas o pai deles, "Seu" Dorival Caymmi, não deixou
Todos os arranjos do espetáculo são do Dori,
que tocou pouco tempo na temporada porque foi convidado pra um trabalho nos Estados Unidos
Ele não se considera o arranjador dessa gravação que eu estou analisando aqui,
mas pode-se dizer, no mínimo, que o arranjo é baseado no original do Dori
Para a gravação desse compacto, além da formação da peça, com violão, flauta e bateria, foi acrescentado um contrabaixo
3. A FORMA DO ARRANJO Essa gravação de Carcará começa com uma citação da Missa Agrária, de Carlos Lyra e Gianfrancesco Guarnieri
Carlos Lyra foi trabalhar em São Paulo com o Teatro de Arena no fim dos anos 1950 e lá conheceu Guarnieri,
que sugeriu que eles fizessem juntos uma comédia musical
Segundo Lyra, sendo ele de formação jesuítica, adquirida em anos de Colégio Santo Inácio,
e Guarnieri de formação socialista, a primeira ideia foi fazer uma Missa Agrária, mas que não chegou a ser encenada
Ficaram algumas músicas, como "Gloria in Excelsis", que serviu de introdução para a apresentação de Carcará em Opinião
Bethânia canta esse trecho a cappella, exatamente como fazia na abertura da peça Boca de Ouro em Salvador,
a primeira apresentação profissional da Bethânia em um palco
Cantar a cappella, como eu falei, é cantar sem nenhum acompanhamento, só a voz,
nesse caso é a cappella em rubato, não há marcação rítmica de tempo, o tempo é à vontade do cantor, solto
Uma frase descendente na flauta e dois acordes no violão, definindo o tom da música
O contrabaixo é bem melódico, não faz apenas o básico de acompanhamento de samba
Sai a bateria, o ritmo; uma resposta na flauta e outra no violão, em frases descendentes
Volta a cappella mas agora não é rubato: a Bethânia está já no andamento da música, cantando a tempo
O ritmo da bateria e do violão é de samba com muito acento de Bossa Nova, a bateira tocando no aro da caixa
A flauta faz uma segunda voz da melodia, tocando no mesmo ritmo da melodia
A música toda é praticamente só com dois acordes, e essa repetição cria um estado meio de transe
A bateria sai do contratempo e vai pro prato de condução, bem samba jazz
Cai a dinâmica para uma dinâmica piano, para declamação do texto sobre imigrações do nordeste brasileiro
Para um efeito de criar o clímax a banda começa a subir o tom, primeiro meio tom acima
Depois sobe um tom inteiro
e depois outro tom inteiro,
e a tonalidade se estabiliza uma quarta acima do resto da música para a repetição do refrão
Bom, esse foi O ARRANJO, se você gostou dá um like, se inscreve no canal, compartilha o vídeo
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Muito obrigado, até uma próxima
"Augusto Boal... eu dei uma bronca porque levou uma semana sem falar comigo.
Eu subia e descia escada, me mostravam as músicas, me ensinavam as músicas, e ele não falava comigo nunca
Aí um dia eu disse: Moço, o senhor não é o diretor?
Ele falou: 'Sou' e eu digo: o senhor não vai falar comigo? Me conhecer, pelo menos
Aí ele morreu de rir e disse 'agora' e me chamou
Mas acontece que ele tava dirigindo a Suzaninha de Moraes que fez a substituição enquanto eu aprendia o show
'Carcará, lá no sertão, é um bicho que voa que nem avião;
é um pássaro malvado, tem o bico volteado que nem gavião
Carcará quando vê roça queimada, sai voando e cantando Carcará'
Eu tenho uma alegria quanto eu canto isso, sempre
Sabe o que é? Me parece que eu vivo o sertão quando eu canto isso"